Wednesday, August 22, 2018

Quando fui agredido por uma paciente...

Eu estava em uma das salas do CAPS, a qual costuma ficar repleta de profissionais que ali desenvolvem as mais variadas atividades (tais como evoluções em prontuários, elaboração de relatórios e discussão de casos, por exemplo), quando percebi que havia uma certa gritaria na recepção. Mas não era somente algum paciente gritando. Havia também alguns barulhos estrondosos, como se alguma pessoa, em crise ou com muita raiva, estivesse tentando destruir alguma coisa.

Eu e mais alguns colegas saímos da sala para irmos lá averiguar o que estava acontecendo. Era Janilce (nome fictício), uma paciente que com frequência ficava ríspida e gritava com os servidores da recepção. Ela comparecia com pouca freqüência às atividades terapêuticas. Quando vinha ao CAPS, geralmente se comportava de modo exaltado e ríspido, ordenando que resolvessem todas as suas pendências da forma mais rápida possível, sem qualquer respeito por ordem de chegada ou qualquer coisa parecida com filas. Gritava e exigia que seus desejos fossem realizados imediatamente, e não poupava palavras ofensivas ou xingamentos a quem lhe fizesse qualquer tipo de contraposição.

Muitos de nós já estávamos habituados com esse tipo de comportamento que ela apresentava. Boa parte da equipe sabia manejar a situação, para que seu nível de agressividade não se intensificasse, pois isso na verdade ocorria também com alguns outros pacientes, e é esperado que os servidores de um CAPS saibam lidar com isso de modo bastante sereno e polido.

Contudo nesse dia havia um fator adicional. Janilce não somente usava de agressividade verbal, como já estava jogando coisas no chão, assim como cadeiras que atingiam a grande porta de vidro, com risco de quebrá-la, e ferir outros pacientes e pessoas presentes, fora o problema dos possíveis danos materiais que também poderiam vir a ocorrer.

Aquilo nunca havia ocorrido antes. Janilce nunca antes havia ficado tão agressiva. Como eu já havia anteriormente, por algumas vezes, interagido com ela em momentos de agressividade verbal, e havia tido sucesso em fazer com que se acalmasse, fui rapidamente em sua direção, pois a situação demandava urgência:

- Janilce, por favor, pare! Você não pode fazer isso! Você não pode quebrar as coisas que encontra pela frente! 

- Posso sim! Eu quebro o que eu quiser! Eu quebro essa porra toda! Se vocês não querem me atender, eu vou quebrar essa porra toda! - gritava, sem parar de se movimentar, e tentando jogar no chão o que via pela frente.

- Janilce, por favor, pare! Não faça isso! Não quebre as coisas, senão chamaremos a polícia! 

- Ah, então você quer chamar a polícia, é? Chame quem você quiser, seu palhaço! Eu não tenho medo de polícia não! Pode chamar!

Ela gritava e se movimentava rapidamente, de um lado para o outro, entrando e saindo das salas, tentando jogar ao chão ou quebrar o que encontrava pela frente. E mais ou menos umas 5 pessoas, juntamente comigo, a acompanhavam, fazendo o que era possível para conter os movimentos dela em direção aos objetos tentava destruir.

Tentei adotar uma postura ativa, colocando-me entre ela e as coisas que pretendia destruir, e continuarei alertando-a de que chamaríamos a polícia. Porém isso somente piorou as coisas. Janilce ficou ainda mais agressiva e veio em minha direção com socos e pontapés. Contive seus golpes como pude, tendo também a ajuda do vigilante e de alguns colegas.

Fui agredido por um paciente. Era a primeira vez em que isso ocorria e, apesar da ausência de qualquer tipo de ferimento, apesar de ter conseguido me defender com tranquilidade (principalmente porque a agressora era bem menor e fisicamente mais fraca do que eu), fiquei um pouco ressentido. Não senti que aquilo era algo absolutamente natural ao meu trabalho, e não penso que não errei, que minha atuação foi perfeita, porque geralmente há a possibilidade de melhorar.

No dia da agressão havia, como sempre, uma demanda grande de trabalho, e toda a equipe retomou rapidamente seus afazeres. Após a chegada da polícia, Janilce diminuiu bastante seu tom de voz e agressividade. Ela e seu marido ficaram por mais de meia hora em interlocução com os policiais, que se mostraram sempre muito serenos e amistosos.  

Também retomei rapidamente minhas atividades e, apesar dos olhares cuidadosos e de todo o interesse de meus colegas de trabalho em saber se eu estava bem, não demonstrei qualquer tipo de alteração. Quem olhasse para mim não perceberia qualquer tipo de consternação ou nervosismo. Agi como se aquilo fosse uma intercorrência comum, mas reconheço que foi lamentável, provavelmente evitável, e quero aqui fazer uma breve reflexão sobre meus possíveis erros.

Mesmo sabendo que a situação demandava uma certa urgência, minha primeira atitude não deveria ter sido a repreensão da paciente. Fui precipitado e deixei de agir com empatia. Porque assim como não basta a polidez no conteúdo, também não basta na forma. Mesmo que meu tom de voz tivesse sido suave, o conteúdo foi de repreensão. Faltou fazer a reflexão de sentimentos. Faltou comunicar a ela o que eu percebia o que ela estava sentindo. Faltou espelho. De mim ela somente teve um bloqueio. Houve firmeza e polidez, mas careceu-se de acolhimento. E a primeira coisa a ser feita é sempre isso: acolher, aceitar e comunicar ao outro o que percebemos que está sentindo.

Há, contudo, um questionamento importante que pode ser feito. Ao acolhermos, ao darmos atenção a alguém após manifestações de agressividade ou violência, não estaríamos gratificando (reforçando) esse tipo de comportamento? Acolher os sentimentos de Janilce após seus comportamentos violentos não seria portanto um modo de aumentar sua tendência a agredir para conseguir o que deseja? Então vamos por partes...

Essa paciente já apresentava um repertório mais agressivo para, naquele contexto, obter o que desejava. Bem antes da agressão física a mim, já era conhecida como uma paciente que esbravejava e gritava para ser prontamente atendida. Pode ser que nesse dia ela estivesse mais descompensada e agressiva devido a fatores exteriores ao CAPS. Mas é também possível que ela não tenha sido devidamente acolhida quando chegou à recepção.

Boa parte da equipe já vinha lidando com a agressividade dela de modo empático, e sem responder às suas demandas literais. Quando chegava agressiva, era acolhida. A estratégia da equipe era relativamente bem unificada quanto a não fazer com que a paciente furasse a fila, a lista de espera. Janilce esbravejava e gritava, mas a maioria, senão todos os membros da equipe, não cedia. Ela era tratada com carinho, com escuta, mas não furava fila, não passava na frente de ninguém. 

É possível que tenhamos sim gratificado seu comportamento agressivo para ser escutada e acolhida, já que era isso o que ela persistia em apresentar, com certa frequência, na recepção. Contudo, parece-me esse um mal menor diante do outro, o de ser agressiva para burlar regras de espera e ter vantagens indevidas em relação a outros pacientes.

E o grande dilema diz respeito a como atuar diante da variação e intensificação de alguns comportamentos, que é comum logo após a extinção. Ou seja: o que fazer com a agressividade de Janilce (ainda mais intensa) após não conseguir o que queria, e que estava acostumada a obter? Ao se acolher, se gratifica o que é indesejável. Não acolhendo mais, ocorre, com frequência, a intensificação de comportamentos indesejáveis para se obter as gratificações habituais.

Por enquanto penso que o mais adequado é a antecipação, que o acolhimento, o carinho com Janilce não deveria ocorrer somente após seus comportamentos agressivos. Porque não devemos esperar que o outro se exceda. Carinho e amor devem ser providos seletiva e rotineiramente. Devemos sempre estar atentos para as brechas, para qualquer parte mínima ou insinuação de comportamentos desejáveis que o outro apresenta. Eis as aproximações sucessivas: no início, no deserto dos repertórios ideais, qualquer coisa próxima ou parecida com um comportamento desejável deve ser gratificada (reforçada). 

E isso é agir de modo otimista. É olhar para o outro, procurando, por todos os cantos, pelo que ele tem de bom, por menor e mais insignificante que isso possa parecer.

Porque quando a rotina é o amor, o excesso e a desmedida deixam de ser a regra.

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