Há mais de 20 anos lembro-me que em uma aula, na pós-graduação da UnB, uma colega do doutorado se referiu assim aos pacientes psicóticos:
- Eles são fabulosos, não?
Assim como também já ouvi diversas pessoas se referindo a psicóticos, ou até mesmo autistas, com uma série de expressões generalizantes ou equivocadas, tais como: "Eles são muito inteligentes", "São muito criativos".
E logo me vem um estranhamento, pois não penso que a psicose seja algo fabuloso, porque esse tipo de classificação ocorre em função de uma série de problemas sérios que essas pessoas vêm apresentando em sua adaptação ao mundo em que vivem. E todo esse processo causa nelas sofrimentos imensos. São pessoas que padecem de sofrimento psicológico grave.
Certamente que muitas dessas pessoas, assim como muitas pessoas, de tudo o que é jeito, podem fazer coisas fabulosas. Porque a produção de beleza, de algo artístico, em boa medida, independe de nossa estrutura psicológica ou psicopatológica. Como escreveu certa vez, em um dos seus artigos, Francisco Martins, meu orientador de doutorado: "A arte existe em nós, apesar de nosso eu".
Então que fique claro uma coisa: não faz o menor sentido a glamorização. Apesar de uma concepção psicopatológica estrutural propor que há três ou quatro grandes estruturas psicopatológicas, as quais podem ser concebidas como "disposições de espírito", como estruturas que podem ser, de certo modo, visualizadas em todas as ações humanas (assim como foi proposto originariamente por Freud, quando faz a analogia das estruturas de personalidade com a estrutura de um cristal), o elogio dos cristais quebrados (do adoecimento) não faz o menor sentido.
Para quem não sabe dessa analogia, em Freud, tentarei explicar da forma mais simples possível.
Nessa concepção haveria somente três ou quatro grandes estruturas de personalidade. Irei me ater somente a três delas, que são as que percebo como as principais: os neuróticos, os psicóticos e os perversos.
Desse modo então Freud deixa claro que não temos aí necessariamente três grandes grupos de transtornos mentais, mas sim três disposições de espírito fundamentais, as quais estariam presentes em várias dimensões da existência humana.
Para Freud os grandes sistemas filosóficos, por exemplo, teriam a mesma estrutura de uma das formas da psicose, a paranoia (a qual atualmente é denominada como transtorno delirante), assim como os repertórios de um paranoico são fundamentais para se criar uma obra consistente de ficção. Um bom ficcionista, ou um escritor que queira adquirir maestria na criação de histórias elaboradas e amarradas, fazendo com que seu leitor mergulhe em um outro mundo, imaginário, proposto pelas palavras de quem escreve, demanda um repertório de habilidades muito similar ao repertório de um paranoico.
E assim Freud faz outras analogias. Compara também as obras de arte com a estrutura da histeria (uma das formas da neurose, para a Psicanálise), assim como a estrutura das religiões com a neurose obsessiva.
Então se não estamos falando de pessoas que adoeceram, de cristais que se quebraram, é até possível fazer o elogio de algumas virtudes, relacionadas a repertórios que foram assimilados para as artes ou para a obra humana como um todo.
E para quem ainda não compreendeu a analogia com os cristais, finalizo esse texto com algumas considerações básicas a respeito.
As estruturas de personalidade seriam de certo modo análogas a estruturas de cristais. Externamente muitos cristais têm aparência muito similar. Porém existem articulações e estruturas internas das quais somente nos daremos conta após a sua ruptura, quando esse cristal se quebra.
Ou seja: uma estrutura é muito mais detalhadamente conhecida após um período intenso de estresse, de pressão, ou até mesmo de ruptura, de adoecimento.
Segundo essa concepção, muito da verdade, e um conhecimento muitas vezes precioso, advém em momentos de sofrimento ou convalescência. Mas isso também pode ocorrer na sublimação, no que existe de sublime e belo na obra humana.
As artes, as interações afetivas profundas (as interações amorosas fundamentalmente) e o humor também têm a capacidade de trazer à tona esse tipo de verdade e conhecimento precioso. Portanto, como já havia dito antes: não faz o menor sentido o elogio do que é patológico e do sofrimento.
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