Existem basicamente dois tipos de ironia: a ironia instrumental e a observável. A primeira se refere basicamente a alguém dizer textualmente uma coisa e significar na verdade seu contrário. O segundo tipo se refere à ironia não-verbal que observamos no mundo, seja na representação de elementos que se se contrapõe com contrastes surpreendentes e avassaladores, ou na observação dos eventos do mundo em sucessão também contrastante e surpreendente.
Apesar de ter, em 2003, defendido um doutorado sobre o tema, nunca discorri sobre ele aqui no Facebook. Porém, quando percebo um volume grande de ironias acontecendo, sejam verbais ou não-verbais, aí não tem jeito: acabo ficando com bastante vontade de comentar o ocorrido.
Há cerca de um mês fiquei sabendo da história de um rapaz pobre que migrou da África, de Camarões, para Paris, na França, há cerca de 5 anos. Pobre, mas com uma estrutura física e muscular absolutamente surpreendente: 1,93 de estatura e quase 120 kg de de uma massa corporal carregada de músculos.
Esse rapaz chegou à capital francesa com 26 anos de idade, e seu objetivo era continuar treinando boxe, como ele fazia em seu país natal. Seu sonho era conseguir uma carreira na área, já que na sua terra natal isso não estava se mostrando como muito promissor, devido principalmente a falta de recursos financeiros.
Porém, chegando à Paris, as coisas inicialmente se mostraram como muito mais difíceis do que imaginava, e acabou assim se transformando em um morador de rua.
Depois de alguns dias ou meses morando nas ruas de Paris tentou ver se conseguia ser empregado em uma instituição filantrópica que fornecia refeições para moradores de rua. Conseguiu um emprego na cozinha dessa entidade. Não sei se era o cozinheiro ou se ajudava na preparação das refeições, mas sei que descascava muitos alimentos. E essa era a sua principal função.
Após alguns dias já trabalhando nessa instituição perguntou para as pessoas ali se elas conheciam alguma academia onde pudesse voltar a treinar boxe. Tendo descoberto onde havia a oportunidade de voltar a treinar, foi até academia indicada, e ali logo perceberam que ele tinha todas as condições para ter sucesso na carreira de lutador.
Contudo, seu treinador nessa academia lhe informou que o caminho mais rápido para o sucesso não era o boxe, mas o MMA. Esse treinador prontamente percebeu que esse rapaz, Francis Ngannou, seria muito em breve um grande campeão, porque além de muito forte, também era muito ágil.
Francis então começou a atuar no circuito de MMA da França. Seu primeiro combate foi em 30 de novembro de 2013, aproximadamente um ano depois de ter chegado à capital francesa. Atuou em meia dúzia de lutas, vencendo cinco delas, e tendo somente perdido a sua segunda luta por pontos. Como nessa etapa teve uma trajetória impressionante, em seu sétimo combate (quase exatamente dois anos depois de seu primeira luta na França) já estava na principal competição de MMA do mundo, o UFC.
Sua estreia no UFC foi absolutamente impressionante, devido à potência e rapidez de seus golpes fulminantes. Fez seis lutas contra adversários poderosos, e venceu cinco delas com nocautes assustadores.
Somente cinco anos depois de ter vivido como morador de rua em Paris, Francis Ngannou já estava nos Estados Unidos disputando, como favorito, o cinturão de campeão dos pesos pesados do UFC.
Toda essa trajetória já é muito irônica, mas não termina aí a sequência de ironias. Um mês antes da ocorrência da luta começaram as entrevistas com os dois lutadores. Pude assistir a duas delas, e assim inclusive conhecer melhor o campeão mundial.
O interessante de ter assistido a essas breves entrevistas foi também a minha surpresa com esse campeão mundial, Stipe Miocic.
Miocic, que é 4 anos mais velho que Ngannou (tem 35 anos e Ngannou tem 31), é americano, filho de pais croatas.
Miocic, após a vitória de ontem se transformou, por enquanto, no maior peso-pesado, do UFC, de todos os tempos. Ninguém antes havia defendido o título por três vezes consecutivas e vencido.
Essa história é recheada de ironias, do começo ao fim, porque tudo começa há 5 anos, com um africano pobre que migra para a capital francesa. Chegando lá não consegue o que queria inicialmente, e se torna um morador de rua. Depois vai trabalhar na cozinha de uma entidade filantrópica e começa a treinar boxe, para cinco anos depois já estar lutando pelo título mundial dos pesos-pesados.
Tudo isso é muito irônico. E continuaria sendo irônico se o africano vencesse. Mas acho que foi mais irônico do que isso. Nessas duas entrevistas que assisti o campeão sempre se comportou de maneira muito discreta e extremamente profissional, e o desafiante sempre de modo muito confiante, e dizendo que agora seria a vez dele e que ele iria vencer fácil.
O campeão parecia muito menor e mais fraco. Contudo ontem, durante a luta de cinco rounds, a história teve um final diferente do que a maioria havia apostado. O campeão, que parecia muito menor e mais fraco, dominou o gigante: Davi venceu Golias. Essa história se completou com esse desfecho também muito irônico. Aliás mais irônico ainda do que se o gigante tivesse vencido.
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