CRÍTICA DO SENSO COMUM E PROSA - Quem quiser adquirir o livro, acesse o link do canto superior direito
Friday, December 08, 2023
Quando ser psicótico é mais adaptativo do que ser neurótico
Wednesday, December 06, 2023
"Está tudo interligado"?
Alguns místicos costumam dizer que “tudo está interligado”, como se isso fosse uma revelação. Mas não passa de truísmo, de uma verdade banal. E, a partir desse truísmo, dão um salto (que mais adiante muitos vão até apelar, chamando-o de “salto quântico”), para fazer associações espúrias. Como tudo está interligado se permitem o salto, que transforma contiguidade em contingência, para praticamente qualquer coisa que lhes desperte algum fascínio. E assim brotam as superstições: tudo está interligado, tudo tem relação com tudo, logo tudo faz sentido! Alcançando-se então o ponto culminante em que se sabe tudo, mas não se resolve nada. E nesse ponto algumas pessoas literalmente entram numa espécie de transe anestésico, como se fluíssem em consonância com os movimentos e as oscilações do universo. Eis seu sentimento oceânico, sua iluminação! Nesse ponto, nessa culminância e nesse estado de plena ignorância, muitas aparentemente morrem em paz.
A regra é não existir
A regra é a extinção. Há mais espécies extintas do que não-extintas. A não-existência é a regra. Cada pessoa nascida é aquele único espermatozoide, dentre bilhões de outros (mortos), que um dia alcançou um óvulo. É exceção. Outros bilhões pereceram. A regra é não existir. Viver é esse constante desafio a essa regra fundamental. Viver pode ser luminoso, mas raramente é fácil.
Thursday, November 09, 2023
A vida não é curta
Sempre que alguém diz que a vida é curta, sinto um cheiro de egocentrismo no ar. O ser humano, em comparação com a maioria dos animais, vive muito. Não vive pouco não.
E quem diz que é curta, assim se expressa por lamentar a finitude. A vida humana não é curta. Somente é finita.
Por outro lado, para muitas pessoas a vida na verdade é até sentida como longa. Muitos, que sentem a vida como algo extremamente sofrido e insuportável, podem até na verdade a sentirem como muito longa, como algo que deveria acabar o mais breve possível.
E outra coisa interessante é gente, que acredita em alma eterna (que na verdade é uma crença na vida eterna, convenhamos), se queixando de que a vida é curta, quase numa tentativa desesperada de blindagem dupla contra a angústia inerente à constatação da finitude. Eis a contradição: se a alma é eterna, qual é o sentido de se lamentar que esta vida é curta?
Em si a vida não é nem longa nem curta. É somente finita. O que produz juízos de valor são comparações ou o desejo de continuar vivendo.
Wednesday, October 11, 2023
Existe "gozo no sofrimento"?
Saturday, September 30, 2023
Podemos curar?
Friday, September 22, 2023
Fé? Não, desapego.
Wednesday, September 20, 2023
Diálogo e TDAH
Saturday, September 16, 2023
Os transtornos mentais e sua complexidade
Está circulando um meme daqueles que tenta comparar doenças (que as pessoas classificam como físicas) com depressão ou os mais diversos transtornos psicológicos. É novamente a tentativa de se mostrar que a depressão é muito mais séria do que as pessoas imaginam, e que deveria ter as mesmas considerações e cuidados que as "doenças físicas" têm.
Neste meme há um quadrinho onde está escrito "Infecção", e ali existe uma série de ilustrações que denotam cuidados por parte das outras pessoas, desejando melhoras, mandando presentes, flores, etc.
No outro quadrinho está escrito "Depressão" e há somente a palavra "Silêncio".
O problema é que esse quadro dificilmente será completamente alterado. Dificilmente ocorrerá equivalência das duas coisas. Enquanto não houver tecnologias que possam demonstrar materialmente, laboratorialmente, a existência de uma depressão, esse quadro tenderá a permanecer inalterado.
Fora o fato de que o fenômeno da depressão é muito mais complexo do que o de uma infecção. A depressão também sofre influência das interações com outras pessoas, podendo melhorar ou se agravar em função disso.
O comportamento depressivo pode ser punido e assim se agravar. O deprimido que está constantemente reclamando pode, sem perceber, afastar ainda mais as pessoas, e assim piorar seus sentimentos de solidão e baixa autoestima.
Ouvir atentamente uma pessoa deprimida, que está bastante queixosa, pode fazer com que ela se sinta acolhida em alguns contextos. E em outros pode fazer com que esses comportamentos depressivos aumentem em frequência.
Algumas pessoas podem fazer o uso do diagnóstico ou do rótulo de depressão para se esquivar de obrigações, responsabilidades ou se proteger de juízos condenatórios. Outras pessoas, em outros contextos, talvez precisem desse rótulo ou diagnóstico para parar, descansar e cuidar um pouco
mais de sua saúde que, diante de tantas ameaças ou atribulações, está realmente prejudicada ou em risco.
Muitos talvez precisem urgentemente dessa equivalência com uma infecção, para que possam ser devidamente cuidados e amados. Outros podem, em função dessa equivalência, se enfraquecer e adoecer ainda mais.
E uma coisa é fato: todos precisamos de reconhecimento, companheirismo, respeito e carinho, e não somente quando estamos doentes. Porque isso nos fortalece como um todo, ajudando a prevenir os mais diversos problemas de saúde, inclusive a depressão.
Não existe sofrimento útil
Quando alguém chega até mim, dizendo "O que não mata, fortalece", e ainda por cima tentando dar uma de erudito, de que essa teria sido uma alegação de Nietzsche, eu olho para a pessoa e respondo, com tranquilidade:
- Ah, sim, entendi: o que não mata, engorda...
E, claro, não deixo de fazer as minhas considerações, de que há também aquilo que não mata, mas deixa sequelas, irreversíveis.
Quem acredita que a sobrevivência é sempre fortalecedora, não compreende (ou se nega a compreender) o que é uma sobrevivência sequelada e moribunda.
E há também aqueles que dão continuidade a tais ideias, com a concepção de que todo sofrimento é útil ou fortalecedor. E realmente também não se trata disso. Porque não se trata de ser útil ou inútil. Esse tipo de qualificação não cabe ao sofrimento, que é somente evitável ou inevitável. Sendo que muitos sofrimentos, que outrora eram concebidos como inevitáveis, hoje, após alguns avanços técnicos e tecnológicos, não são mais.
Sentir dor durante a extração de um dente talvez fosse algo inevitável há alguns séculos, mas hoje definitivamente não é inevitável e nem desejável. Para quem me diz que todo sofrimento fortalece, prontamente recomendo que vá ao dentista e faça todos os procedimentos sem anestesia. Porque, em tese então, sairá dali do jeitinho que prega: fortalecido. Se o sofrimento fortalece, não use anestesia. É bem simples.
Esses, que fazem elogio do sofrimento, parecem não ter a menor ideia de que atualmente existem as mais variadas técnicas para produzir fortalecimento com muito menos sofrimento ou sequer sofrimento algum. Negar isso é desconhecer completamente a função das artes, dos jogos, de uma série de atividades lúdicas em grupo e de uma variedade de criações humanas que produzem fortalecimento com envolvimento e diversão.
E quando não há diversão, há pelo menos respeito pelos limiares de cada pessoa, sabendo-se que é possível se fortalecer por meio de aproximações sucessivas e não simplesmente com cassetadas ou coerções.
E o sofrimento é de fato realmente útil para quem se empodera com o sofrimento alheio. Porque tiranos, psicopatas e os mais variados tipos de pessoas e ideologias abusivas têm que ter algum meio para justificar suas atrocidades.
Sunday, September 10, 2023
Será que estamos enlouquecendo?
Wednesday, August 30, 2023
Na pedra do tempo congelado
Há estudos a demonstrar que o consumo de medicamentos psiquiátricos mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Isso produz um aumento muito grande na demanda por médicos psiquiatras, cuja quantidade ficou muito longe de aumentar na mesma proporção. Isso resulta num número muito grande de pacientes que chegam ao CAPS já medicados e muitos desesperados por um atendimento médico, cuja previsão é indeterminada. Renovam suas receitas nas unidades básicas de saúde, mas esperam 6 meses ou mais para serem avaliados por um psiquiatra.
Assim os casos de agressividade e hostilidade contra a equipe inevitavelmente aumentaram, e episódios de agressões físicas se tornam mais fáceis e frequentes, principalmente com pacientes que ainda não desenvolveram um vínculo conosco.
Eu estava no grupo de boas-vindas, destinado a receber os pacientes que já haviam tido sua primeira entrevista e classificados como casos severos e persistentes. Então seu segundo atendimento no CAPS é em grupo, no chamado grupo de boas-vindas.
- Eu quero saber quando serei atendida por médico nessa merda! Eu quero marcar atendimento com um médico! - reclamava uma paciente, repetidamente, durante toda a sessão em grupo.
- Percebo e
compreendo tua irritação (…) O CAPS não é uma instituição médica. Temos várias
especialidades: enfermagem, psicologia, assistentes sociais, terapeuta
ocupacional…
Pessoas
gritando, ameaçando colegas de agressão física, de morte, e o CAPS mobilizado,
em tensão, com boa parte dos servidores se desdobrando para acudir, ouvir,
acolher, tentar acalmar, tentar fazer vínculo. Isso transformado em rotina.
Em uma situação como essa, no grupo de boas-vindas, uma paciente começou a gritar descontroladamente, como se arrancasse os cabelos e veio, em fúria, para me agredir. Tomei socos, empurrões, e o vigilante entrou na sala para contê-la. Já era a segunda vez que eu era agredido por paciente. Mas dessa vez foi um pouco pior. A paciente foi retirada da sala e seu filho, com idade entre 25 e 30 anos, permaneceu na sala, apontando o dedo para mim, e fazendo um sermão.
- Você é uma vergonha como profissional! Não devia estar aqui! Também precisa de tratamento psicológico! - em um sermão de alguns minutos, na frente de todas as pessoas presentes.
Tenso, eu somente ouvia e anotava, sem lhe responder, sem demonstrar qualquer tipo de linguagem não-verbal que pudesse ser interpretada como afronta.
- Tirem o Adriano da sala. Isso é muito pesado – dizia uma colega.
Foi bem difícil. Mas eu sempre imagino que poderia ter sido pior. Alguém com mais força física poderia ter me agredido.
Tentei me concentrar no trabalho e dar continuidade ao que precisava ser feito naquela manhã. É sempre corrido, com muitos afazeres. Não há muito tempo para lamentações. Debatemos. Tentamos compreender melhor o que acontece e como melhor prevenir que se repita. Mas a rotina do serviço tem sua conturbação habitual e sempre devemos seguir porque, sejamos práticos, a fila é extensa e a população precisa de atendimento, acolhimento, acompanhamento.
Porém não há como negar que isso pode produzir alguns traumas. Percebemos os sinais. Pacientes e familiares estressados, pedindo por algo que não somos capazes de oferecer, não se acalmando com gentileza ou escuta empática, e a verdade também não podendo ser ocultada, pois haverá um momento em que teremos de dizer que algumas coisas não são possíveis. E é nesses momentos que irrompe a fúria.
Como disse: por vezes vão se produzindo alguns traumas, de modo que nem nos damos conta.
Noutro dia fui atender a uma intercorrência, que são os casos de pessoas que procuram o CAPS em crise, sem agendamento prévio. Peguei o prontuário na recepção e chamei o paciente pelo nome, na sala de espera.
- Luiz Carlos da Silva! (nome fictício).
Adentramos a sala de atendimento individual.
- Olá! Meu nome é Adriano. Sou psicólogo do CAPS. Como posso ajudá-lo?
- Em nada.
- O que trouxe você aqui, Luiz?
- Nada.
- Mas veio até aqui, pedindo por ajuda, não?
- Não.
- Então tá tudo bem com você?
- Sim, tá tudo ótimo.
Essa tentativa de escuta, de diálogo, sem resultado, se estendeu por mais alguns minutos, e sem sucesso.
- Você veio sozinho?
- Não.
- Veio com
quem?
- Vim com uma mulher que acha que é a minha mãe. Mas o espírito santo sabe como que não é nada disso. Ela está junto das maquinações de satanás. Não escuto a quem ousou profanar a mensagem de nosso senhor Jesus Cristo...
E assim se estendeu em um solilóquio que quase não interagia comigo.
- Posso chamá-la?
- Claro. Fique à vontade! Porque Deus é meu pastor e nada me faltará!
- Ele está em crise – dizia ela. Está impossível conviver com ele em casa. Abre portas de madrugada. Não quer mais tomar os medicamentos. Deixa torneiras abertas, fogo aceso no fogão. Não quer tomar banho. Puxou faca pra mim. Estou com medo dele por fogo na casa. Tenho outras duas crianças pequenas...
Seu discurso se aprofundou e ela chorava de desespero. Ele estava com discurso e comportamentos caracteristicamente desorganizados, com seu juízo de realidade comprometido e com riscos auto e heterolesivo consideráveis. Era caso para procurar o médico escalado na intercorrência e lhe comunicar que Luiz era elegível para o acolhimento integral (internação), porque eu, como psicólogo, não posso assinar o ingresso do paciente na enfermaria, não posso liberar o leito. É competência exclusiva do médico.
Por sorte, naquele dia havia médico na intercorrência, e ele era um dos mais gentis e acessíveis. Havia vaga. Havia leito disponível. Agora eu deveria pedir o consentimento de Luiz, porque CAPS trabalham somente com internações voluntárias.
Correria, como sempre. Havia mais pacientes esperando para serem atendidos. O horário do fim de meu plantão se aproximava e eu tinha de acelerar o passo, para dar conta de todos e evitar estresses maiores.
Fui até Luiz e, sem perceber, eu já estava esperando pelo pior. Sentia que seria mais um caso de agressividade, de violência, em direção à minha pessoa.
Cheguei bem lentamente, do modo mais suave e sereno do qual fui capaz. Ele me avistou a uns 10 metros. Caminhei, vagarosamente, com seu olhar fixo em minha direção. Ele estava sentado numa poltrona. Abaixei-me, para ficar exatamente na mesma altura que ele. Toquei-lhe os ombros calmamente, como se eu pudesse, somente com aquele toque e olhar ternos, lhe acalmar, e lhe comuniquei, do modo mais suave e sereno possível:
- Luiz. Seria bom que você ficasse um pouco aqui conosco. Uns dois ou três dias. O que você acha?
Senti como se eu tivesse lançado silenciosamente uma bomba atômica naquela sala e que em alguns instantes explodiria. Eram alguns segundos suspensos no varal da explosão que não acontecia, quando tudo ali se transformou em pedra do tempo congelado.
Por uma fração de segundos, uma expressão de ódio se apoderou de seu rosto, mas não perdurou. Derreteu-se e também adquiriu tons ternos.
- Sim. Tudo bem – respondeu-me, calmamente.
- Muito obrigado, Luiz – respondi-lhe, com os olhos marejados, e quase lhe dando um abraço.
Ele percebeu que quase chorei. E percebeu também que eu lhe abraçava, com a ternura do olhar e do toque em seu ombro.
Nesse dia eu
tive sorte.
Thursday, August 17, 2023
O mundo invertido
Sunday, June 25, 2023
Dever de casa com TV
Observo minha filha fazer seus deveres de casa e me lembro de como era isso em minha infância. Estudávamos à tarde. Entrávamos às 13 e saíamos às 17 horas. A escola, pública, ficava a 300 metros de minha casa. Chamava-se Escola Estadual de Primeiro Grau João Augusto de Mello e nós, estudantes, a apelidamos de Jamel (marca de cachaça). Morávamos no Jardel (Jardim Independência, em Ribeirão Preto) e estudávamos no Jamel.
Às 17:15 já estávamos em casa e, sem enrolação, sentávamos para fazer a tarefa (o dever de casa). A mesa de jantar era de frente para a televisão, porque a sala e a copa eram somente um único ambiente. Fazíamos o dever com a TV ligada, e assim o era até o fim da novela das 8, que começava depois do Jornal Nacional, mais precisamente às 8:30.
Mas a programação, por volta das 17 horas, começava na Tv Cultura, com Daniel Azulay, com seus desenhos e histórias, ou na Record, com o masoquista do Pinóquio japonês. Depois, junto com a tarefa de casa, engatávamos as novelas das 6, das 7, ou algum seriado na Record, como Chips ou congêneres, com pausa para jantar, mas sem jamais tirar o olho da televisão. Um olho na TV e outro na tarefa. Um olho no jantar e outro na TV.
Desse modo os deveres de casa nunca eram um fardo. Sempre em grupo, sempre junto com meus irmãos e minha mãe por perto, e sempre com a televisão a nos embalar. Era leve e divertido.
O Jornal Nacional por vezes funcionava como uma pausa, de 30 minutos, na qual íamos para o quarto, fechávamos a porta, deitávamos de bruços na cama e estudávamos, de véspera, em voz alta, para alguma prova.
E durante um ano e meio ou mais, por volta dos 9 anos de idade, eu e Edu (meu irmão mais velho) acordávamos às 6:40, rapidamente nos vestíamos, tomávamos café (pão com margarina e leite com café) e íamos os dois, de moto, com meu pai, para o trabalho. Sim, os três na mesma Honda Turuna 125 cilindradas, sem capacete, num percurso de 4 ou 5 km até o trabalho de meu pai. Eu e Edu exercíamos a função de office-boys.
Entrávamos às 7:15 no trampo. Saímos às 11:15, chegávamos em casa às 11:30, almoçávamos e íamos para a escola, para recomeçar todo o ciclo.
Meu pai, antes de voltar ao trabalho, depois do almoço, ainda tirava uma soneca de uns 20 minutos.
Mas a rotina dele era mais exigente. Chegava do trabalho às 18:15, tomava banho, jantava, e voltava para mais um turno, que começava às 19:30 e ia até às 22 horas.
Quando ele chegava em casa, às 22:15, nós já estávamos na cama. Só despertávamos rapidamente com seus barulhos, com seu jeito um pouco rápido demais de fazer tudo, como se sempre estivesse a correr contra o relógio. Ele virava as chaves com velocidade, com pressa. No meio da noite isso fazia um bom ruído, que nos acordava, mas nada que fosse incômodo.
Ele ia para a cozinha e, durante um certo período, costumava tomar uma Coca-Cola. Depois de um tempo, passou a tomar um copo de sal de frutas, talvez devido à acidez dos anos de Coca.
Depois da Coca ou do sal de frutas, tampava e fechava tudo com força, desligava as luzes e se deitava. No meio da madrugada às vezes acordava com algum barulho nos arredores da casa. Pegava sua garrucha, a municiava com dois cartuchos, e saia para o quintal, somente de cuecas, para encarar possíveis bandidos. Só víamos sua silhueta um pouco barriguda a sumir na escuridão, no breu de um mundo que podia estar forrado de bandidos.
Poucas noites o tivemos junto de nós, de segunda à sexta-feira. E quando isso ocorria o sentimento era de festa, de uma alegria imensa.
Mas mesmo assim seguíamos suficientemente felizes, com nossa rotina de trabalho, escola e noites de tarefas de casa com televisão e os jantares deliciosos que minha mãe preparava. Pizzas de liquidificador, arroz, feijão, carne, batatas fritas, almôndegas com molho de tomate e sempre uma saladinha bem temperada, com uma comidinha sempre muito equilibradamente temperada, com aqueles temperos feitos no liquidificador, com pimentão, alho, cebola e óleo de soja. Tenho lembranças maravilhosas de uma salada de almeirão que eu mesmo depois, sozinho, nunca consegui reproduzir.
E nas épocas em que não trabalhei nos períodos matutinos, jogava futebol direto, até a hora do almoço.
Não tenho do que me queixar. Sinto que foi uma infância saudável.
Monday, June 12, 2023
Dezessete décimo sétimo
Wednesday, May 10, 2023
A quebra de campo
Friday, May 05, 2023
Acalme-se...
Um de nossos pacientes do CAPS sempre alegra os grupos dos quais participa. Porque é muito espirituoso e realmente engraçado. Sabe que é engraçado e sempre inventa histórias divertidas ou até bizarras. Os outros pacientes dão risadas, se soltam, relaxam. Ficam todos mais leves e ele fica nitidamente feliz em saber que ajudou na descontração geral.
Tem pouco mais de 40 anos de idade e apresenta déficit cognitivo. Não sabe lidar com dinheiro ou números, quando esses passam de 10 unidades ou algo próximo. Mas sabe falar em milhões ou bilhões quando conta suas histórias.
Tem passe-livre e vai, sozinho, para tudo o que é canto do Distrito Federal. Cumprimenta e conversa com todas as pessoas com as quais cruza pelas ruas.
Para seu nível de instrução, tem excelente oratória e retórica. Sua fala é envolvente e ele geralmente se apresenta com outro nome (que não o próprio) como se fosse político ou alguma pessoa poderosa. Diz que é advogado, logo em seguida se apresenta como médico, que tem 74 anos de idade, casos amorosos com suas secretárias e uma história de vida repleta de grandes projetos, aventuras amorosas e também as desventuras de um grande homem.
- Hoje em dias as pessoas estão muito estressadas, se aborrecendo com pouca coisa, e querendo partir para a briga por qualquer motivo! – dizia, como sempre, com vigor, como se estivesse na tribuna de uma câmara legislativa.
- Eu estava no trânsito e quase fui atropela por um rapaz que dirigia uma caminhonete enorme! Freou bem em cima de mim e saiu de seu veículo esbravejando. Era um sujeito enorme. Tinha uns 2 metros de altura. E eu, por sorte, consegui acalmá-lo.
- O que você fez para acalmá-lo? – indaguei.
- Eu lhe disse: “Acalme-se, meu senhor. E dance um bambolê!”.
O tom desse comando para que o sujeito de 2 metros de altura se acalmasse era firme, porém bem suave.
- E ele se acalmou?
- Sim, e começou a dançar com o bambolê. E assim sua expressão foi se alterando ao ponto de ficar bem tranquilo, relaxado e sorrindo plenamente. Desde o momento em que ele esbravejou comigo, juntou uma multidão. Mas, conforme ele foi se acalmando e, por fim, sorriu, plenamente, a multidão se emocionou. Choraram de emoção.
Não cheguei a chorar de emoção, mas essa história memorável ajudou a alegrar meu dia.
E acho que preciso urgentemente providenciar alguns bambolês, para estarem sempre comigo, onde quer que eu esteja. Porque basta um bambolê na mão e cinco palavrinhas mágicas: “Acalme-se... E dance um bambolê!”.
Tuesday, May 02, 2023
A morte no espelho de minha tranquilidade
Wednesday, April 26, 2023
Não é isso, Caetano
"De perto ninguém é normal", certa vez disse Caetano. Mas não se trata disso, porque o sofrimento é ser anormal de longe, bem de longe, com todo mundo percebendo, se irritando, perdendo a paciência e apontando o dedo na nossa cara, para dizer que somos um estorvo que emperra as engrenagens do mundo.
Thursday, March 02, 2023
Azar ou armação?
A vida é assim. Às vezes ela bate mais forte, e repetidamente, ao ponto de pensarmos que estamos atravessando uma onda de azar ou que somos mesmo, por natureza, dotados de bem pouca sorte.
Em 1985, o pior ano de minha vida, aos 12 anos, eu estava, juntamente com uns 20 colegas, debaixo de uma grande marquise, na escola, esperando a tempestade passar.
Estava fascinado com o poder dos ventos, arrancando as folhas e os galhos das árvores, quase derrubando algumas delas, e mal tinha ideia de que aquele poder poderia se voltar contra nós.
Foi tudo muito rápido. Ouvimos um estrondo muito forte, e de repente a marquise, sob a qual estávamos, explodiu em vários pedaços. Era composta por telhas enormes, creio inclusive que as maiores que existem, quando se fala em amianto.
O vento havia arrancado
uma dessas telhas, que desabou sobre a telha acima de nós. Vários pedaços de
telha voaram e desabaram sobre aqueles 20 e poucos adolescentes e pré-adolescentes
que ali estavam. Todos tentaram se proteger e, assim que puderam, correram para
um lugar mais seguro. Minha cabeça doía. Alguma coisa havia caído em cima de
mim.