Friday, December 08, 2023

Quando ser psicótico é mais adaptativo do que ser neurótico

Em minha experiência clínica observei alguns pacientes migrando de posições neuróticas para psicóticas. Um desses casos é curioso porque começou com uma alteração na pronúncia das palavras. O paciente acrescentava a letra r a todas as sílabas que podia. 

- Brom dria Aradrianoro cromro vrai? Vrocerê estara brem?

Esse paciente não tinha um quadro característicamente psicótico e tinhas muitos conflitos pessoais, dentro e fora do CAPS, inclusive com membros da própria equipe. Era um caso de difícil manejo, com grande vulnerabilidade socioeconômica, muita irritabilidade e agressividade verbal, e às vezes até física.

Esse novo modo de se comunicar, com uma pronúncia diferente, fez com que esse paciente ficasse um pouco mais afável. As pessoas passaram a reagir a ele de um modo diferente. Passou a haver mais interações, nas quais as pessoas tentavam falar com a mesma pronúncia que ele utilizava. As pessoas passaram a sentir que essa interação era mais prazerosa e até divertida, e esse paciente passou assim a ser mais intensamente gratificado pelo modo como estava se comportando.

Esse caso ainda está em observação e eu penso que irá se estabilizar nesse padrão de comportamento psicótico, completamente diferente do que houve durante toda a vida desse paciente, que tem mais de 40 anos de idade.

Assim como existe seleção natural de espécies, também existe uma seleção dos comportamentos que apresentamos em nossas interações e durante nossa história de vida. O ambiente sempre seleciona aquilo que é mais adaptativo. Esse paciente tem agora um comportamento muito mais adaptativo do que tinha antes. Sua vida agora, em plena psicose, está muito mais repleta de interações prazerosas do que antes, quando era somente mais uma pessoa neurótica dentre tantas outras.

Wednesday, December 06, 2023

"Está tudo interligado"?

Alguns místicos costumam dizer que “tudo está interligado”, como se isso fosse uma revelação. Mas não passa de truísmo, de uma verdade banal. E, a partir desse truísmo, dão um salto (que mais adiante muitos vão até apelar, chamando-o de “salto quântico”), para fazer associações espúrias. Como tudo está interligado se permitem o salto, que transforma contiguidade em contingência, para praticamente qualquer coisa que lhes desperte algum fascínio. E assim brotam as superstições: tudo está interligado, tudo tem relação com tudo, logo tudo faz sentido! Alcançando-se então o ponto culminante em que se sabe tudo, mas não se resolve nada. E nesse ponto algumas pessoas literalmente entram numa espécie de transe anestésico, como se fluíssem em consonância com os movimentos e as oscilações do universo. Eis seu sentimento oceânico, sua iluminação! Nesse ponto, nessa culminância e nesse estado de plena ignorância, muitas aparentemente morrem em paz.

A regra é não existir

A regra é a extinção. Há mais espécies extintas do que não-extintas. A não-existência é a regra. Cada pessoa nascida é aquele único espermatozoide, dentre bilhões de outros (mortos), que um dia alcançou um óvulo. É exceção. Outros bilhões pereceram. A regra é não existir. Viver é esse constante desafio a essa regra fundamental. Viver pode ser luminoso, mas raramente é fácil.


Thursday, November 09, 2023

A vida não é curta

Sempre que alguém diz que a vida é curta, sinto um cheiro de egocentrismo no ar. O ser humano, em comparação com a maioria dos animais, vive muito. Não vive pouco não.

E quem diz que é curta, assim se expressa por lamentar a finitude. A vida humana não é curta. Somente é finita. 

E essa lamentação parece também se associar com o amor que se tem pela própria vida. Ou seja: para quem está vivendo bem, se sentindo bem em estar vivo, a vida pode realmente ser percebida como curta. É curta para quem está curtindo. 

Por outro lado, para muitas pessoas a vida na verdade é até sentida como longa. Muitos, que sentem a vida como algo extremamente sofrido e insuportável, podem até na verdade a sentirem como muito longa, como algo que deveria acabar o mais breve possível. 

E outra coisa interessante é gente, que acredita em alma eterna (que na verdade é uma crença na vida eterna, convenhamos), se queixando de que a vida é curta, quase numa tentativa desesperada de blindagem dupla contra a angústia inerente à constatação da finitude. Eis a contradição: se a alma é eterna, qual é o sentido de se lamentar que esta vida é curta? 

Em si a vida não é nem longa nem curta. É somente finita. O que produz juízos de valor são comparações ou o desejo de continuar vivendo.

Wednesday, October 11, 2023

Existe "gozo no sofrimento"?

Isso é "gozo no sofrimento", alguém me disse, há poucos dias, para justificar o sofrimento pelo qual passavam algumas pessoas. 

Se for somente sofrimento, ninguém goza com isso. Isso, que essa pessoa genericamente chamou de “gozo no sofrimento”, só parece algo possível ou perto de possível se:

1.Houver pareamento com alguma estimulação prazerosa. Um exemplo: sexo prazeroso com agressividade.

2. Expressão do sofrimento que atrai atenção, carinho ou quaisquer outros benefícios secundários ao sofrimento em si. 

E nada disso é gozo no sofrimento. São outras coisas, bem mais específicas e que demandam análise, caso a caso. Caso contrário corre-se o risco de se culpar vítimas e justificar atrocidades.

Saturday, September 30, 2023

Podemos curar?

Não faz sentido defender que seu método ou sua abordagem psicoterapêutica não trabalha para promover a cura e sim o autoconhecimento. 

Pode-se até adotar a psicopatologia estrutural como argumento para a não existência de uma estrutura normal. Então, nesse sentido haveria umas três ou quatro estruturas básicas dos modos de ser e fazer humanos: neurose, psicose e perversão, por exemplo. Há quem defenda que existiria uma quarta estrutura, mas não entrarei aqui nesse detalhe.

Desse modo essas estruturas se manifestariam, por extensão, em tudo o que os seres humanos fazem. A cultura, nas suas mais variadas formas de expressão, se manifestaria tanto de modo neurótico, psicótico, quanto perverso. 

Somente para citar alguns exemplos, as religiões teriam uma estrutura predominantemente neurótica obsessiva, enquanto as artes teriam uma estrutura mais neurótica histérica. Sendo que há obviamente manifestações psicóticas nas religiões, assim como nas artes. 

Uma das origens dessa concepção é a metáfora do cristal, de Freud. Assim como os cristais, todos teríamos estruturas pré-formadas, que somente aparecem ou se mostram quando o cristal se quebra. Assim nossas estruturas psíquicas somente se manifestariam mais claramente após períodos de intenso estresse, pressão, crise. 

Portanto, nesta concepção não existem estruturas doentes e a patologia só se configura com a cisão, a quebra, o rompimento, o comprometimento da integração da psiquê. Pessoas adoecidas estariam na verdade em um momento de crise, quebra, cisão, desmedida. Psicose, neurose e perversão não são patologias. São predisposições do espírito, modos de ser. E isso justifica alegar que existem neuróticos, psicóticos e perversos saudáveis. Porque não existe estrutura doente. Logo, por este prisma específico, não há o que ser curado.

A alegação, porém, de que não se trabalha em função da cura, ou de qualquer tipo de melhoria, se limita somente a este aspecto estrutural. Porque não há como curar as pessoas daquilo que elas são.

Contudo, curar não é somente remover doenças. Não é tão simples assim. Curar, em sentido mais pleno, ideal, parte de princípios etiológicos, que demandam pela compreensão dos fatores causais envolvidos no adoecimento. Desse modo, a cura é a remoção ou a resolução dos fatores causais envolvidos no processo da doença. Uma gripe se cura quando a carga viral causadora da gripe é eliminada e não quando tomamos um paracetamol e nos sentimos temporariamente melhor. Porque não basta se sentir temporariamente melhor (remediar), é importante curar e voltar a viver de modo saudável.

Por outro lado, sabemos que para muitas enfermidades não existe cura completa, mas a melhoria de uma série de aspectos na vida da pessoa. E essas melhorias, se forem sustentáveis, também podem ser vistas como um tipo de cura, mesmo que parcial. Um queijo curado é um queijo melhorado. O termo curar também tem esse sentido, o de melhorar.

A alegação de que não se trabalha em função da cura, de qualquer tipo de cura, e somente em função do autoconhecimento, é frágil. Expõe nossa própria fragilidade de formação técnica, profissional, para ajudar as pessoas a terem uma vida mais saudável. Serve como desculpa para nossa incapacidade para ajudar quem procura por nossos serviços. É somente isso: racionalização do fracasso.

Friday, September 22, 2023

Fé? Não, desapego.

Obviamente que não puno, mas também não gratifico expressão de imaturidade. Tento puxar a conversa para outros pontos, mais sólidos, realistas ou práticos. Sei que nem sempre é possível trabalhar diretamente ou rapidamente com a realidade. Mas não deixo de fazer aproximações sucessivas à realidade, por mais dura que seja. Porque uma hora a pessoa terá de saber como as coisas são, sem distorções e sem mentiras. Porque isso faz parte do processo de amadurecimento. Porque é necessário crescer, se fortalecer e amadurecer.

A imensa maioria de meus pacientes é cristã. Em circunstâncias extremas, quando possível, gratifico expressões como “Seja o que Deus quiser; seja feita a vontade de Deus”; mas não gratifico “Para Deus nada é impossível”. 

Na vida há mais probabilidades do que certezas. Viver é geralmente navegar por oceanos de incertezas, e tentar compreender o que é mais ou menos provável. Não trabalho com o que é possível mas improvável. Se é muito improvável, saio fora, desisto e parto pra outra. Procuro não me focar no que não depende de mim. Valorizo muito mais o desapego do que a fé. Penso que é muito mais maduro e sólido, sereno, do que a fé. 

Há também desapego no cristianismo. Expressões como “Seja o que Deus quiser; seja feita a vontade de Deus” deixam isso claro. Reforço o uso e a meditação sobre essas expressões de desapego em meus pacientes. Não para que se acomodem, mas para que compreendam que há coisas mais prováveis e outras menos ou bem pouco prováveis. As primeiras merecem nossa atenção e esforço. As últimas não.

Wednesday, September 20, 2023

Diálogo e TDAH

Já atendi pessoas, estudantes, que diziam ter diagnóstico de TDAH, mas não comprovavam isso ou o processo de diagnóstico havia sido realizado de modo muito rápido ou mal feito. 

Um deles não deixou de mexer em seu celular enquanto falava comigo. 

- É urgente? – perguntei.

- Não.

Mesmo assim, mesmo depois de me responder que não era urgente, em atitude até um pouco desrespeitosa, não desgrudou do celular. Não costumava fazer anotações durante as aulas. Tinha caderno, mas não o usava para isso.

Se você é estudante, e tem problemas de concentração, precisa ter caderno e durante as aulas saber fazer anotações nele. E é caderno mesmo, de preferência aqueles que são divididos em matérias. Porque, comprovadamente, anotações no celular ou no computador, não tem o mesmo nível de eficácia. Fora o risco de, numa aula ou numa simples conversa, ser constantemente sequestrado para os algoritmos da internet. E, claro, precisa guardar o celular enquanto conversa com as pessoas. 

Outro me disse que tinha o diagnóstico de TDAH, que tinha dificuldades para se concentrar, para manter o foco, que se distraia com facilidade. Porém, enquanto conversava com ele, e sempre que eu tinha algo a dizer, eu falava e logo em seguida lhe perguntava sobre o conteúdo do que eu havia dito, se ela havia compreendido, pedindo-lhe para que dissesse a mim o que havia entendido.

Nossa conversa, frente a frente, olho no olho, nosso diálogo, foi avançando. E uma coisa para mim estava clara: em um diálogo, em que ambas as pessoas se alternam de modo equilibrado na fala, e que o tempo de cada um falando ininterruptamente não se estende muito, é bastante difícil que alguém se distraia ou perca o foco.

Eis a importância do diálogo, dessa interação cooperativa e naturalmente motivante entre seres humanos, na qual uma pessoa constantemente estimula a outra, fazendo com que se mantenham conectadas, sintonizadas, sincronizadas, para juntas construírem alguma coisa para si ou para o mundo.

O rapaz do celular não queria, naquele dia, naquele contexto, se conectar, e não houve tempo para que eu investigasse melhor por que se comportava assim. Tinha seus motivos. Todos temos nossos motivos

Porém, para mim, por vezes, uma coisa é certa: tentar se esconder debaixo de algum diagnóstico de transtorno mental costuma não ajudar, e pode até piorar alguns problemas, seja lá quais forem.

Saturday, September 16, 2023

Os transtornos mentais e sua complexidade

Está circulando um meme daqueles que tenta comparar doenças (que as pessoas classificam como físicas) com depressão ou os mais diversos transtornos psicológicos. É novamente a tentativa de se mostrar que a depressão é muito mais séria do que as pessoas imaginam, e que deveria ter as mesmas considerações e cuidados que as "doenças físicas" têm.

Neste meme há um quadrinho onde está escrito "Infecção", e ali existe uma série de ilustrações que denotam cuidados por parte das outras pessoas, desejando melhoras, mandando presentes, flores, etc.

No outro quadrinho está escrito "Depressão" e há somente a palavra "Silêncio". 

O problema é que esse quadro dificilmente será completamente alterado. Dificilmente ocorrerá equivalência das duas coisas. Enquanto não houver tecnologias que possam demonstrar materialmente, laboratorialmente, a existência de uma depressão, esse quadro tenderá a permanecer inalterado.

Fora o fato de que o fenômeno da depressão é muito mais complexo do que o de uma infecção. A depressão também sofre influência das interações com outras pessoas, podendo melhorar ou se agravar em função disso.

O comportamento depressivo pode ser punido e assim se agravar. O deprimido que está constantemente reclamando pode, sem perceber, afastar ainda mais as pessoas, e assim piorar seus sentimentos de solidão e baixa autoestima.

Ouvir atentamente uma pessoa deprimida, que está bastante queixosa, pode fazer com que ela se sinta acolhida em alguns contextos. E em outros pode fazer com que esses comportamentos depressivos aumentem em frequência. 

Algumas pessoas podem fazer o uso do diagnóstico ou do rótulo de depressão para se esquivar de obrigações, responsabilidades ou se proteger de juízos condenatórios. Outras pessoas, em outros contextos, talvez precisem desse rótulo ou diagnóstico para parar, descansar e cuidar um pouco

mais de sua saúde que, diante de tantas ameaças ou atribulações, está realmente prejudicada ou em risco.

Muitos talvez precisem urgentemente dessa equivalência com uma infecção, para que possam ser devidamente cuidados e amados. Outros podem, em função dessa equivalência, se enfraquecer e adoecer ainda mais.

E uma coisa é fato: todos precisamos de reconhecimento, companheirismo, respeito e carinho, e não somente quando estamos doentes. Porque isso nos fortalece como um todo, ajudando a prevenir os mais diversos problemas de saúde, inclusive a depressão.

Não existe sofrimento útil

 Quando alguém chega até mim, dizendo "O que não mata, fortalece", e ainda por cima tentando dar uma de erudito, de que essa teria sido uma alegação de Nietzsche, eu olho para a pessoa e respondo, com tranquilidade:

- Ah, sim, entendi: o que não mata, engorda...

E, claro, não deixo de fazer as minhas considerações, de que há também aquilo que não mata, mas deixa sequelas, irreversíveis.

Quem acredita que a sobrevivência é sempre fortalecedora, não compreende (ou se nega a compreender) o que é uma sobrevivência sequelada e moribunda. 

E há também aqueles que dão continuidade a tais ideias, com a concepção de que todo sofrimento é útil ou fortalecedor. E realmente também não se trata disso. Porque não se trata de ser útil ou inútil. Esse tipo de qualificação não cabe ao sofrimento, que é somente evitável ou inevitável. Sendo que muitos sofrimentos, que outrora eram concebidos como inevitáveis, hoje, após alguns avanços técnicos e tecnológicos, não são mais.

Sentir dor durante a extração de um dente talvez fosse algo inevitável há alguns séculos, mas hoje definitivamente não é inevitável e nem desejável. Para quem me diz que todo sofrimento fortalece, prontamente recomendo que vá ao dentista e faça todos os procedimentos sem anestesia. Porque, em tese então, sairá dali do jeitinho que prega: fortalecido. Se o sofrimento fortalece, não use anestesia. É bem simples.

Esses, que fazem elogio do sofrimento, parecem não ter a menor ideia de que atualmente existem as mais variadas técnicas para produzir fortalecimento com muito menos sofrimento ou sequer sofrimento algum. Negar isso é desconhecer completamente a função das artes, dos jogos, de uma série de atividades lúdicas em grupo e de uma variedade de criações humanas que produzem fortalecimento com envolvimento e diversão. 

E quando não há diversão, há pelo menos respeito pelos limiares de cada pessoa, sabendo-se que é possível se fortalecer por meio de aproximações sucessivas e não simplesmente com cassetadas ou coerções.

E o sofrimento é de fato realmente útil para quem se empodera com o sofrimento alheio. Porque tiranos, psicopatas e os mais variados tipos de pessoas e ideologias abusivas têm que ter algum meio para justificar suas atrocidades.

Sunday, September 10, 2023

Será que estamos enlouquecendo?

Lido com gente doida desde que nasci. Meus pais nunca foram muito bem em termos de equilíbrio emocional.

Minha mãe sempre foi mestre na arte de falar até que alguém perto dela enlouqueça. E meu pai era quase uma unanimidade quando o assunto era loucura ou desequilíbrio emocional.

Lembre-me dele quebrando a casa inteira, por várias vezes, desde bem pequeno. Uma das cenas mais clássicas em minha memória, dele perdendo a cabeça, é a imagem que vi por várias vezes, de quando ele pegava um prato de comida, cheio, e o jogava no chão, espatifando-se, com pedaços de louça e arroz com feijão para todos os lados. Essa é uma imagem clássica em minhas memórias infantis.

Ele inclusive teve seu último dia como morador em casa, conosco, com os filhos e com a esposa, totalmente permeado por essa agressividade. Ele havia, no período da tarde, se desentendido com minha mãe, por telefone. Ela em casa e ele no trabalho. 

Chegou muito agressivo. Para guardar os dois carros na garagem, acelerou e freou demais, várias vezes. Parecia que ia explodir o carro na parede da sala. Entrou muito nervoso, gritando com ela e já começou a quebrar uma série de coisas em casa. E ela teve a ideia (até hoje não sei se boa ou bizarra) de colocar água para ferver. Ficou perto da panela e assim que ele se aproximou, com medo ela pegou a panela com água quente e jogou em seu rosto.

Do quarto somente percebi que alguma coisa pior já estava acontecendo, pois ele urrava muito mais intensamente. Agora, além da raiva, também tinha muita dor porque a água estava bem quente.

Eu estava no quarto porque ali procurava por meu gravador. Queria gravar o áudio daquilo tudo. Naquela época não havia possibilidade de registro quase algum, e eu queria registrar, queria que depois ele ouvisse tudo aquilo. Mas não deu tempo. Tive que correr para ajudar Edu - meu finado irmão mais velho, falecido em 1998, aos 28 anos de idade, que naquele final de 1989 tinha somente 19 para 20 anos de idade. Eu tinha 17.

Meu pai estava completamente descontrolado. Com o rosto em vermelhidão, urrava e babava de ódio. Edu fazia o que podia para tentar impedir que ele thrucidhasse minha mãe. Edu o segurava com força, mas estava todo arranhado por meu pai. Seus braços sangravam. Pegou um cano de aço e o ameaçou:

- Você fica quieto! Fica na tua! Senão eu vou quebrar esse kano na tua khara! - gritava para meu pai.

Os vizinhos apareceram e logo em seguida a polícia.

- Vem aqui me pegar se você for macho, seu bhostha! Você só tem coragem se tiver com esse revólver na mão né, seu mherda? Pode pegar o revólver! Vem pra cima de mim! Pode vir, pode vir, que eu te arrebentho. Pode mether bhala! Não tô nem aí. Vem pra você ver o que que eu faço com você! - dizia meu pai, para um dos policiais que, parado, somente o observava.

Da grande árvore, que fez parte de toda a nossa infância e parte da adolescência, havia então somente o tronco, na porta de casa. Ali estava parada a minha bicicleta. Ele a levantou no alto e a jogou contra o muro. Subiu no tronco e, mudando completamente o tom de voz, fez uma espécie de discurso político, para toda a vizinhança, para demonstrar a eles como era a vítima daquilo tudo. 

E foi assim o último dia de meu pai, quase 20 anos depois, como morador daquela casa conosco, na qual seus três filhos homens haviam crescido. Por sorte, a violência não escalou para uma tragédia, como no caso de alguns conhecidos meus. Lembro-me muito bem de um amigo, cujo pai havia tido um episódio de descontrole emocional muito parecido com esse de meu pai, mas com um desfecho trágico. Foi preso e, durante a madrugada, dentro da cela, se mathou enfhorcadho.

Talvez tenha sido sorte. Ou talvez nossas ações tenham sido suficientes para impedir uma tragédia maior. Assim como no dia em que meu pai, há exatos 20 anos, nos expulsou de sua chácara.

- Você sai daqui agora, senão eu te dou um thiru na kara! - era isso que ele dizia para meu irmão mais novo, após um episódio de ciúme.

Meu irmão mais novo sempre teve uma relação bastante amistosa com um amigo, mais velho, e que também era como um pai. Nesse dia meu pai ficou obcecado por isso ao ponto de seu ciúme escalar e resultar numa ameaça de violência nesse nível.

É muito triste a lembrança da maior parte dos episódios de loucura ou descontrole emocional, em minha família, estarem atreladas a ele. Mas infelizmente é um fato.

Mas na maior parte do tempo era uma pessoa bastante alegre, engraçada e divertida. Sabia curtir a vida e fazer uma série de coisas que são prazerosas, aventureiras e emocionantes. Não tinha medo de que as pessoas pensassem que era desequilibrado ou louco. Em muitas situações fazia o que tinha vontade e o que era mais divertido. Se vestia com simplicidade e às vezes de modo diferente e exótico. Desenhava e pintava muito bem. Pirografava. Era excelente escultor e calígrafo. Produzia réplicas perfeitas de aviões a partir de caixas velhas de maçã. Era um exímio atirador com armas de fogo, estilingues, zarabatanas, bestas e arco e flecha. 

Tinha uma coleção de bicicletas motorizadas antigas. Havia até mesmo comprado a motoquinha bizarra com a qual um urso fazia apresentações em um circo. Andava com essa motoquinha para todos os lados, sem camisa e descalço, com seu cão no colo.

Tinha um grande senso de liberdade. Fazia simplesmente o que dava vontade e costumava não se intrometer na alegria e na liberdade das pessoas.

Era protético dentário e facilitou demais a vida de inúmeras pessoas, com acesso simples, prático e altamente eficiente a próteses. Consertou minha boca em seis meses, sendo que se eu tivesse sido levado a um dentista talvez ficasse por lá durante anos para obter o mesmo resultado. Se não fosse ele, hoje eu seria teria a boca igual a do Ronaldo, jogador de futebol, quando adolescente.

Era o mecânico particular e gratuito de muitos de seus amigos. Porque, além de protético, era também um bom mecânico de motos, de mão cheia. Além de ter todas as carteirinhas de mecânica de aviões e ser um piloto privado, na raça, estudando à noite, a vida toda.

Muitos de seus e de nossos amigos diziam que ele era uma pessoa fantástica, maravilhosa, muito engraçada e divertida. Porém, que tinha somente um único problema: o álcool. Porque, quando bebia, pedia totalmente o controle e fazia muita besteira.

Talvez realmente o maior problema da vida de meu pai tenha sido o álcool. Sinceramente eu não sei. Só sei que tenho, em minha memória, uma coleção grande de histórias bizarras (muitas impublicáveis) nas quais ele é o protagonista insólito.

Por isso que digo que convivo com gente doida desde muito pequeno, e não era somente ele. Sempre fui um imã para pessoas desadaptadas e com o comportamento francamente diferente e até constrangedor, sendo eu geralmente o mais equilibrado nesse contexto. Depois que me tornei psicólogo, isso até se intensificou. Posteriormente à minha entrada na graduação de Psicologia, na USP, em 1991, eu mesmo passei, muitas vezes, a me comportar de modo mais descontrolado ou bizarro, ao ponto de algumas colegas, do 5° ano, terem me rotulado como "o louco do 4° ano". 

Ontem, depois de minha jornada de trabalho, eu saía do CAPS um pouco exausto e um pouco assustado com o aumento do número de diagnósticos de transtornos mentais, no mundo todo, no Brasil e em minha própria realidade diária, de profissional de saúde mental. Minha sensação era a de um certo esgotamento.

"Está difícil. Para onde eu olho e vou sempre encontro com alguém transtornado, adoecido mentalmente. Zeus do céu, parece que todo mundo está enlouquecendo..." - pensava, angustiado.

E eu não tenho me sentido assim somente em meu ambiente de trabalho, no CAPS. Tenho me sentido assim também no dia a dia, nas mais diversas interações sociais e familiares. Porque, como já disse, sou um imã para gente doida.

Mas não tem problema. Sou calejado. Sinto que criei um couro bem grosso para tudo isso. E eu também erro. Erro demais, e por diversas vezes também me desequilibro. Isso quase nunca ocorre em ambiente profissional. Mas, em meus relacionamentos pessoais, não sou modelo para nada. Tenho a minha individualidade, como qualquer pessoa, com o meus defeitos, qualidades e destemperanças.

E, por sorte, algumas coisas boas do louco do 4° ano ainda continuam vivas em mim.

Wednesday, August 30, 2023

Na pedra do tempo congelado

Há estudos a demonstrar que o consumo de medicamentos psiquiátricos mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Isso produz um aumento muito grande na demanda por médicos psiquiatras, cuja quantidade ficou muito longe de aumentar na mesma proporção. Isso resulta num número muito grande de pacientes que chegam ao CAPS já medicados e muitos desesperados por um atendimento médico, cuja previsão é indeterminada. Renovam suas receitas nas unidades básicas de saúde, mas esperam 6 meses ou mais para serem avaliados por um psiquiatra. 

Assim os casos de agressividade e hostilidade contra a equipe inevitavelmente aumentaram, e episódios de agressões físicas se tornam mais fáceis e frequentes, principalmente com pacientes que ainda não desenvolveram um vínculo conosco. 

Eu estava no grupo de boas-vindas, destinado a receber os pacientes que já haviam tido sua primeira entrevista e classificados como casos severos e persistentes. Então seu segundo atendimento no CAPS é em grupo, no chamado grupo de boas-vindas. 

- Eu quero saber quando serei atendida por médico nessa merda! Eu quero marcar atendimento com um médico! - reclamava uma paciente, repetidamente, durante toda a sessão em grupo. 

- Percebo e compreendo tua irritação (…) O CAPS não é uma instituição médica. Temos várias especialidades: enfermagem, psicologia, assistentes sociais, terapeuta ocupacional…

 - Eu preciso de remédio!

 - Sim, e isso não irá faltar. Sua prescrição continuará sendo renovada na UBS. Infelizmente, neste CAPS, a fila de espera para atendimento médico é grande e por tempo indeterminado…

 - Eu não quero saber de nada disso! Eu quero um médico e é meu direito! - gritando, dando socos na mesa, no balcão. 

Pessoas gritando, ameaçando colegas de agressão física, de morte, e o CAPS mobilizado, em tensão, com boa parte dos servidores se desdobrando para acudir, ouvir, acolher, tentar acalmar, tentar fazer vínculo. Isso transformado em rotina.

Em uma situação como essa, no grupo de boas-vindas, uma paciente começou a gritar descontroladamente, como se arrancasse os cabelos e veio, em fúria, para me agredir. Tomei socos, empurrões, e o vigilante entrou na sala para contê-la. Já era a segunda vez que eu era agredido por paciente. Mas dessa vez foi um pouco pior. A paciente foi retirada da sala e seu filho, com idade entre 25 e 30 anos, permaneceu na sala, apontando o dedo para mim, e fazendo um sermão. 

- Você é uma vergonha como profissional! Não devia estar aqui! Também precisa de tratamento psicológico! - em um sermão de alguns minutos, na frente de todas as pessoas presentes. 

Tenso, eu somente ouvia e anotava, sem lhe responder, sem demonstrar qualquer tipo de linguagem não-verbal que pudesse ser interpretada como afronta. 

- Tirem o Adriano da sala. Isso é muito pesado – dizia uma colega. 

Foi bem difícil. Mas eu sempre imagino que poderia ter sido pior. Alguém com mais força física poderia ter me agredido. 

Tentei me concentrar no trabalho e dar continuidade ao que precisava ser feito naquela manhã. É sempre corrido, com muitos afazeres. Não há muito tempo para lamentações. Debatemos. Tentamos compreender melhor o que acontece e como melhor prevenir que se repita. Mas a rotina do serviço tem sua conturbação habitual e sempre devemos seguir porque, sejamos práticos, a fila é extensa e a população precisa de atendimento, acolhimento, acompanhamento. 

Porém não há como negar que isso pode produzir alguns traumas. Percebemos os sinais. Pacientes e familiares estressados, pedindo por algo que não somos capazes de oferecer, não se acalmando com gentileza ou escuta empática, e a verdade também não podendo ser ocultada, pois haverá um momento em que teremos de dizer que algumas coisas não são possíveis. E é nesses momentos que irrompe a fúria. 

Como disse: por vezes vão se produzindo alguns traumas, de modo que nem nos damos conta. 

Noutro dia fui atender a uma intercorrência, que são os casos de pessoas que procuram o CAPS em crise, sem agendamento prévio. Peguei o prontuário na recepção e chamei o paciente pelo nome, na sala de espera. 

- Luiz Carlos da Silva! (nome fictício). 

Adentramos a sala de atendimento individual. 

-  Olá! Meu nome é Adriano. Sou psicólogo do CAPS. Como posso ajudá-lo? 

- Em nada. 

- O que trouxe você aqui, Luiz? 

- Nada. 

- Mas veio até aqui, pedindo por ajuda, não? 

- Não. 

- Então tá tudo bem com você? 

- Sim, tá tudo ótimo. 

Essa tentativa de escuta, de diálogo, sem resultado, se estendeu por mais alguns minutos, e sem sucesso. 

- Você veio sozinho? 

- Não. 

- Veio com quem?

- Vim com uma mulher que acha que é a minha mãe. Mas o espírito santo sabe como que não é nada disso. Ela está junto das maquinações de satanás. Não escuto a quem ousou profanar a mensagem de nosso senhor Jesus Cristo... 

E assim se estendeu em um solilóquio que quase não interagia comigo. 

- Posso chamá-la? 

- Claro. Fique à vontade! Porque Deus é meu pastor e nada me faltará! 

- Ele está em crise – dizia ela. Está impossível conviver com ele em casa. Abre portas de madrugada.  Não quer mais tomar os medicamentos. Deixa torneiras abertas, fogo aceso no fogão. Não quer tomar banho. Puxou faca pra mim. Estou com medo dele por fogo na casa. Tenho outras duas crianças pequenas... 

Seu discurso se aprofundou e ela chorava de desespero. Ele estava com discurso e comportamentos caracteristicamente desorganizados, com seu juízo de realidade comprometido e com riscos auto e heterolesivo consideráveis. Era caso para procurar o médico escalado na intercorrência e lhe comunicar que Luiz era elegível para o acolhimento integral (internação), porque eu, como psicólogo, não posso assinar o ingresso do paciente na enfermaria, não posso liberar o leito. É competência exclusiva do médico. 

Por sorte, naquele dia havia médico na intercorrência, e ele era um dos mais gentis e acessíveis. Havia vaga. Havia leito disponível. Agora eu deveria pedir o consentimento de Luiz, porque CAPS trabalham somente com internações voluntárias. 

Correria, como sempre. Havia mais pacientes esperando para serem atendidos. O horário do fim de meu plantão se aproximava e eu tinha de acelerar o passo, para dar conta de todos e evitar estresses maiores. 

Fui até Luiz e, sem perceber, eu já estava esperando pelo pior. Sentia que seria mais um caso de agressividade, de violência, em direção à minha pessoa. 

Cheguei bem lentamente, do modo mais suave e sereno do qual fui capaz. Ele me avistou a uns 10 metros. Caminhei, vagarosamente, com seu olhar fixo em minha direção. Ele estava sentado numa poltrona. Abaixei-me, para ficar exatamente na mesma altura que ele. Toquei-lhe os ombros calmamente, como se eu pudesse, somente com aquele toque e olhar ternos, lhe acalmar, e lhe comuniquei, do modo mais suave e sereno possível: 

- Luiz. Seria bom que você ficasse um pouco aqui conosco. Uns dois ou três dias. O que você acha? 

Senti como se eu tivesse lançado silenciosamente uma bomba atômica naquela sala e que em alguns instantes explodiria. Eram alguns segundos suspensos no varal da explosão que não acontecia, quando tudo ali se transformou em pedra do tempo congelado. 

Por uma fração de segundos, uma expressão de ódio se apoderou de seu rosto, mas não perdurou. Derreteu-se e também adquiriu tons ternos. 

- Sim. Tudo bem – respondeu-me, calmamente. 

- Muito obrigado, Luiz – respondi-lhe, com os olhos marejados, e quase lhe dando um abraço. 

Ele percebeu que quase chorei. E percebeu também que eu lhe abraçava, com a ternura do olhar e do toque em seu ombro. 

Nesse dia eu tive sorte.

Thursday, August 17, 2023

O mundo invertido

Hoje à tarde, por um breve momento, abriu-se um portal e adentrei o
mundo invertido, da série “Stranger things”.

Peguei minha bicicleta e me dirigi a um comércio, a 200 metros da faculdade, num local um pouco diferente de Samambaia.

Entrei no mercadinho de um bengalês e não encontrei o que queria. Na televisão rolava um debate em bengali. Troquei algumas palavras com o dono sobre sua terra, Bangladesh, e me transportei para o oriente. Era um local e uma situação bem pouco prováveis para a periferia do Distrito Federal.
 
Não tinha o que eu queria. Entrei no mercadinho do lado.

- Há muitos bengaleses em Samambaia, não? – comentei com a dona, no caixa.

- Mas tinha muito mais. Muitos foram embora do Brasil. A maioria foi pros EUA. Porque a situação deles piorou por aqui. 

- Piorou? Por quê?

- Por causa da política. Por causa da vitória do Lula. As vendas diminuíram.

Fiquei estático, sem entender. Mas rapidamente me dei conta de que ela era uma daquelas pessoas que ainda é bolsonarista, logo fanática.

Tudo escureceu e ficou cinza. Seu rosto se deformou e ficou cadavérico, em putrefação. Sua voz era a de um zumbi.

- Quais bengaleses foram para os EUA? – perguntei-lhe, já um pouco aterrorizado.

Ela não sabia responder, porque de seu rosto monstruoso só saiam grunhidos.

- Algum colega teu foi embora do Brasil depois da eleição? – perguntei ao bengalês.

Ele derretia na lama do mundo invertido e assim lembrei-me imediatamente de que no ano passado seu mercadinho tinha um retrato de Bozo presidente-mito total em tamanho real bem na entrada, para espantar qualquer sopro de sensatez e humanidade que pudesse passar por ali. Ele derretia. Somente parte de seus miolos e seus dentes boiavam na lama sob a qual imergira.

E assim parece que brotou em mim uma nova metáfora: a de que sempre entrarei no mundo invertido quando estiver interagindo com pessoas que ainda apoiam Bozo. E no esgoto paralelo de tudo, no sombrio e apocalíptico mundo invertido, todo cuidado é pouco, temos de respirar fundo e cada passo tem de ser calculado. Porque há sempre seres bizarros e quiméricos à espreita, para lhe caçar ao limite de tudo, às bordas inimagináveis da loucura humana.

Lá fora um rapaz, ainda ao vivo, bem vivo e em cores, na porta de um buraco de volta para o mundo, desesperadamente me chamava, com um sotaque afrancesado:

- Moçe, foge daí! Corrre, corrre! Nenhum bengalês foi emborra! É mentirre. Esses pessoes se afundarram na lama e nas treves de mentirre há muite tempe. O governe bolsolixe estimulou a xenofobie contre les imigrante de países pobres. Sendo nacionaliste e chupader de role ianque, era obviamente raciste com imigrante pobre e prete. E a fale de que as vendes diminuírram também não bate com o crescimente economique maior neste ane do que no ano passade. Pardon por me sotaque! Estou tentande falar brasileire...

Dez segundos haviam se transformado em 10 minutos. A zumbi-dona do mercadinho já estava quase me mordendo na jugular, quando esse rapaz suavemente me estendeu sua mão retinta e esquálida, como na criação de Adão, na qual o deus de Abraão lhe estende a mão, na recriação de um novo mundo, de uma nova realidade.

Segurei-lhe firmemente e escapei, por pouco, das trevas do mundo invertido. 

Era o haitiano misterioso de 2020, que na frente do Palácio da Alvorada, diante das câmeras, abordara Bolsonaro, com estas palavras misteriosas:

- Você está entendendo, eu estou falando brasileiro. Bolsonaro, acabou. Você está recebendo mensagem no seu celular. Todo mundo, todo brasileiro está recebendo mensagem no celular. Você não é presidente mais!

Foi há 3 anos, diante de todo o Brasil, deixando Bozo absorto, perplexo, mesmerizado. E desapareceu na multidão, como se nunca mais voltasse, o misterioso haitiano profético.

- O que é isso? – perguntava, desesperada, naquela ocasião, uma bolsonarista.

Agora todos sabemos o que era aquilo. Era o futuro. Aquele rapaz havia vindo do futuro e agora estava ali, na periferia do Distrito Federal, me estendendo a mão para que eu fugisse daquele mundo invertido que abria sua bocarra sobre mim nesta tarde insólita.

- Adriano, confie em mim: Bolsonaro acabou! Ele não é presidente mais!

Sunday, June 25, 2023

Dever de casa com TV

Observo minha filha fazer seus deveres de casa e me lembro de como era isso em minha infância. Estudávamos à tarde. Entrávamos às 13 e saíamos às 17 horas. A escola, pública, ficava a 300 metros de minha casa. Chamava-se Escola Estadual de Primeiro Grau João Augusto de Mello e nós, estudantes, a apelidamos de Jamel (marca de cachaça). Morávamos no Jardel (Jardim Independência, em Ribeirão Preto) e estudávamos no Jamel.

Às 17:15 já estávamos em casa e, sem enrolação, sentávamos para fazer a tarefa (o dever de casa). A mesa de jantar era de frente para a televisão, porque a sala e a copa eram somente um único ambiente. Fazíamos o dever com a TV ligada, e assim o era até o fim da novela das 8, que começava depois do Jornal Nacional, mais precisamente às 8:30. 

Mas a programação, por volta das 17 horas, começava na Tv Cultura, com Daniel Azulay, com seus desenhos e histórias, ou na Record, com o masoquista do Pinóquio japonês. Depois, junto com a tarefa de casa, engatávamos as novelas das 6, das 7, ou algum seriado na Record, como Chips ou congêneres, com pausa para jantar, mas sem jamais tirar o olho da televisão. Um olho na TV e outro na tarefa. Um olho no jantar e outro na TV. 

Desse modo os deveres de casa nunca eram um fardo. Sempre em grupo, sempre junto com meus irmãos e minha mãe por perto, e sempre com a televisão a nos embalar. Era leve e divertido.

O Jornal Nacional por vezes funcionava como uma pausa, de 30 minutos, na qual íamos para o quarto, fechávamos a porta, deitávamos de bruços na cama e estudávamos, de véspera, em voz alta, para alguma prova.

E durante um ano e meio ou mais, por volta dos 9 anos de idade, eu e Edu (meu irmão mais velho) acordávamos às 6:40, rapidamente nos vestíamos, tomávamos café (pão com margarina e leite com café) e íamos os dois, de moto, com meu pai, para o trabalho. Sim, os três na mesma Honda Turuna 125 cilindradas, sem capacete, num percurso de 4 ou 5 km até o trabalho de meu pai. Eu e Edu exercíamos a função de office-boys.

Entrávamos às 7:15 no trampo. Saímos às 11:15, chegávamos em casa às 11:30, almoçávamos e íamos para a escola, para recomeçar todo o ciclo. 

Meu pai, antes de voltar ao trabalho, depois do almoço, ainda tirava uma soneca de uns 20 minutos. 

Mas a rotina dele era mais exigente. Chegava do trabalho às 18:15, tomava banho, jantava, e voltava para mais um turno, que começava às 19:30 e ia até às 22 horas.

Quando ele chegava em casa, às 22:15, nós já estávamos na cama. Só despertávamos rapidamente com seus barulhos, com seu jeito um pouco rápido demais de fazer tudo, como se sempre estivesse a correr contra o relógio. Ele virava as chaves com velocidade, com pressa. No meio da noite isso fazia um bom ruído, que nos acordava, mas nada que fosse incômodo.

Ele ia para a cozinha e, durante um certo período, costumava tomar uma Coca-Cola. Depois de um tempo, passou a tomar um copo de sal de frutas, talvez devido à acidez dos anos de Coca.

Depois da Coca ou do sal de frutas, tampava e fechava tudo com força, desligava as luzes e se deitava. No meio da madrugada às vezes acordava com algum barulho nos arredores da casa. Pegava sua garrucha, a municiava com dois cartuchos, e saia para o quintal, somente de cuecas, para encarar possíveis bandidos. Só víamos sua silhueta um pouco barriguda a sumir na escuridão, no breu de um mundo que podia estar forrado de bandidos.

Poucas noites o tivemos junto de nós, de segunda à sexta-feira. E quando isso ocorria o sentimento era de festa, de uma alegria imensa.

Mas mesmo assim seguíamos suficientemente felizes, com nossa rotina de trabalho, escola e noites de tarefas de casa com televisão e os jantares deliciosos que minha mãe preparava. Pizzas de liquidificador, arroz, feijão, carne, batatas fritas, almôndegas com molho de tomate e sempre uma saladinha bem temperada, com uma comidinha sempre muito equilibradamente temperada, com aqueles temperos feitos no liquidificador, com pimentão, alho, cebola e óleo de soja. Tenho lembranças maravilhosas de uma salada de almeirão que eu mesmo depois, sozinho, nunca consegui reproduzir.

E nas épocas em que não trabalhei nos períodos matutinos, jogava futebol direto, até a hora do almoço.

Não tenho do que me queixar. Sinto que foi uma infância saudável.

Monday, June 12, 2023

Dezessete décimo sétimo

Já faz alguns anos. Estávamos na sala de reunião do CAPS e ouvimos que alguém havia falado muito alto, sido muito rude ou agressivo na recepção. Isso geralmente acontecia com alguns pacientes que acabavam perdendo a paciência, se irritando e se descontrolando emocionalmente.

- Pode deixar que vejo aqui o que aconteceu.

Levantei, abri a porta, olhei para a recepção e não havia ninguém. Olhei para o corredor, e vi o que seria provavelmente um paciente, chutando um de nossos calendários.

Era um rapaz com 20 e poucos anos, aparência bastante saudável, relativamente forte e intimidador. Enquanto caminhava, visivelmente bastante irritado e com expressões agressivas, chutava um de nossos calendários pelo chão, e não percebeu que eu o observava, porque estava de costas para mim, enquanto caminhava CAPS adentro.

Confesso que fiquei um pouco mobilizado com a cena e comuniquei à equipe:

- Chegou um sujeito aí, jovem e forte. Está muito agressivo e aparentemente descontrolado.

Todos se entreolharam, com uma certa apreensão. Lidar com pacientes violentos, e com capacidade destrutiva para causar danos e ferimentos em muitas pessoas, não é nada fácil.

É muito diferente lidar com pacientes violentos que não têm porte físico, como idosos ou mulheres de meia idade, por exemplo. Mas lidar com homens fortes, que apresentam esse tipo de comportamento, é bem mais amedrontador. 

Minutos depois a reunião estava terminada e já era horário do almoço. Passei rapidamente pela sala de espera, e observei que eu esse rapaz estava deitado em um dos sofás. A colega que estava na recepção me informou que ele havia se descontrolado porque o atendimento não seria imediatamente. Já estávamos no horário de almoço, e ele teria de esperar até às 13 horas. Nosso serviço não é equipado para pronto-atendimentos. É um serviço ambulatorial, e isso gera alguma frustração em muitos pacientes que nos procuram, com a expectativa de encontrar ali um pronto-atendimento. 

Para pronto-atendimento teriam que se dirigir ao Hospital São Vicente de Paulo, a 4 km do CAPS, ou ao Hospital de Base, na região do Plano Piloto, distante cerca de 25 km.

Apesar de toda a dificuldade, foi mais um caso que conseguimos encaminhar com um mínimo de tranquilidade. Porque no final das contas o rapaz conseguiu esperar, e assim ocorreu seu acolhimento inicial.

Contudo, para minha surpresa, duas semanas depois, eis que esse sujeito, obviamente temido por todos nós, estava lá, em meu grupo. Havia escolhido meu grupo para participar. 

Quando chegou a sua vez de ser ouvido, relatou suas dificuldades e que tinha passagens pela polícia por agressões e esfaqueamento.

- Porque esse mundo tá perdido. O que não falta é gente folgada, que não tem noção das coisas. E aí chega uma hora que não tem jeito. Você tem que sair mesmo na mão, porque se não fizer assim, você não se impõe. Então é por isso que eu tenho essas passagens… - relatou.

E assim as semanas foram se sucedendo até que um dia, no grupo, ele confessou que, para se proteger, andava sempre armado. Tirou um canivete retrátil de seu bolso e mostrou para todos os presentes.

- Se eu não andasse armado, eu já tava morto. Porque o que não falta aí é vagabundo tirando a vida de pai de família.

Era o primeiro ano de um governo de extrema-direita, do qual ele era seu fiel eleitor e defensor. 

Esse grupo de fala, que coordeno, é o mais antigo do CAPS. É numeroso, aberto e heterogêneo. Diante de tal cenário, não é comum que um ou outro paciente acabe falando um pouco do contexto político e social. E esse paciente violento (que chamarei por um codinome, Jorge) se aproveitava desses momentos para tentar fazer seu proselitismo político-partidário.

- Bolsa Família é coisa de vagabundo. As pessoas que pegam Bolsa Família acabam fazendo disso um negócio e tendo até mais filhos. É por isso que a gente não encontra mais ninguém pra trabalhar. Ninguém mais quer saber de trabalhar. (...) Tá com dó, leva pra casa! (...) Servidor público é tudo parasita. (...) Isso é preguiça, falta do que fazer. (...) As vacinas são um perigo para a saúde! Quer morrer mais cedo, tome vacina!

O detalhe é que ele mesmo vivia à custa de um outro benefício do governo, e tinha carteira de passe-livre para pessoas portadoras de necessidades especiais. Não aparentava ter necessidades especiais, mas tinha um distúrbio neurológico específico, acrescido de vulnerabilidade social e assim, no contexto de governos passados, que promoviam um estado de mais bem-estar social, conseguiu tais benefícios. Odiava esses governos e amava o governante que provavelmente o trataria como bandido e lhe negaria tal assistência. 

Não era tarefa fácil lidar com Jorge no grupo. Tendo um comportamento e um discurso fanatizado, de extrema-direita, tudo era motivo para ali, no grupo, destilar toda sorte de preconceitos e truculência ideológica. Sempre arranjava um jeito de colocar seu proselitismo político no meio das conversas, sendo bem difícil fazer com que respeitasse a vez de seus colegas para falar ou que mudasse de assunto. 

Até que um dia eu mesmo perdi a paciência:

- Olha, se for pra você vir aqui no grupo falar esse monte de mentiras, é melhor mudar de grupo. É melhor não vir. – respondi, já com um tom talvez um pouco rude.

Porém, logo após minha fala, me dei conta que eu talvez pudesse ter me excedido, e assim estava ali, prestes a correr o risco de ser seriamente agredido ou até morto. Pensei: “E agora, o que faço? Falei grosso com o sujeito, e ele é violento...”

Continuei:

- Fulano, me perdõe, me perdõe mesmo. Mas estou cansado. Não estou dando mais conta. Não está sendo produtivo. Isso não está sendo bom para o grupo e nem para você... – agora em tom bem mais sereno.

Continuei em contato visual intenso com ele, olho no olho, sem saber o que poderia acontecer. “Será que agora estou definitivamente ferrado?”, perguntei-me.

Ele continuou olhando fixamente para mim e, para a surpresa da maioria dos presentes, consternou-se.

- Você tá bravo? – perguntou-me, calmamente, com um sorriso de canto de boca.

Foquei ainda mais em sentimentos mútuos, e conseguimos fazer com que a conversa tomasse rumos mais produtivos. Minha sorte residia no fato de nosso vínculo, apesar de tudo, ser suficientemente forte.

Certo dia me perguntou sobre alguns possíveis sintomas de seu distúrbio neurológico. 

- De pronto, não sei como te responder. Mas posso pesquisar e te enviar - respondi-lhe.
 
- Ah, que bom! Obrigado! Tem como me enviar as respostas por zap?

- Posso enviar por Messenger, pelo Facebook. Pode ser?

- Sim, anote aí meu nome no Face: Dezessete Décimo Sétimo.

- Como é teu nome no Facebook? 17 17º???

- Sim, por extenso.

- Ah, sim, entendi... É o número do teu candidato, reiterado na forma ordinal, correto?

- Exatamente! - e me olhou fixamente, sorrindo, com um sorriso que, não sei por quê, me lembrou o sorriso de algum vilão do cinema ou dos quadrinhos.

Algumas sessões se passaram e um dia Joana (nome fictício), uma das pacientes presentes, quis falar da difícil interação que tinha com seu namorado.

- Namorado? Mas você não é casada? – perguntou um outro paciente.

- Sim. Mas hoje não quero falar do meu marido. Quero falar do meu namorado.

- Que é outra pessoa, que não seu marido?

- Claro! Meu marido é um e meu namorado é outro.

Disse que esse namorado era 14 anos mais jovem que ela, e começou a relatar uma série de situações que se caracterizavam como abusivas da parte dele. Seu marido não sabia de nada, e esse namorado fazia o papel de amante.

- Não sei o que fazer, se continuo com ele ou não...

- Desculpe-me, você nos relatou várias situações em que houve abuso da parte dele. Se foi isso mesmo, ele tem se comportado de modo bastante abusivo, tóxico... – era o que eu tentava lhe dizer.

Mas Jorge me interrompeu:

- Ela está reclamando, mas é só isso o que as mulheres sabem fazer. Porque quem carrega o piano é o homem!

E prosseguiu na defesa do namorado de Joana, em debate acirrado com algumas pacientes presentes.

O tom da conversa foi se elevando e os termos foram ficando mais agressivos. Resolvi intervir, com um tom mais leve e espirituoso, em direção a Jorge, para tentar quebrar um pouco com a beligerância que se iniciava:

- Uai, Jorge, você está tão fervoroso na defesa do namorado dela, que está parecendo ser você mesmo o sujeito em questão.

Todos se riram, inclusive ele, que completou:

- Sim, sou eu mesmo!

Todos se riram mais ainda, um pouco perplexos.

As falas saíram da terceira pessoa, e assim Joana e Jorge passaram a discutir frontalmente:

- Você mentiu pra mim!

- Eu não falei nada disso!

Fiz algumas intervenções, contornamos os ânimos acirrados e assim foi possível direcionar as falas para combinações mais produtivas e práticas, inclusive com a oportunidade para que outros participantes também pudessem se expressar.

Tempos se passaram. Joana, assim como muitos pacientes, tinha meu número de telefone, e um dia me enviou uma mensagem, desesperada:

“Adriano, o Jorge foi preso! Tá lá na Papuda, numa situação bem difícil.”

“Como assim? O que aconteceu? Porque ele está preso?”

“Esfaqueou um rapaz. E depois que fez isso, ele fugiu pra um matagal. E aí me mandou essas fotos.”

Jorge havia brigado com alguém, esfaqueado essa pessoa e fugido para um matagal. Logo depois enviou, para Joana, fotos de si mesmo, com seu canivete na mão e todo ensanguentado, com o sangue da vítima em suas roupas.

E Joana, sem pensar duas vezes, me enviou todo o material.

“Agora ele tá lá, preso, e se comportando como uma criança. A coisa ficou tão feia pra ele lá na Papuda, que ele agora tá se comportando como uma criança. Você precisa de ver, Adriano. Ele virou uma criança.”

Apesar do tom desesperado de sua mensagem, ela percebia, com clareza, que havia pouco a se fazer em relação ao fato dele estar preso.

Entrei na internet e comecei a pesquisar por seu nome e histórico. Havia notícias de jornais sobre seus crimes, tanto o último quanto os anteriores. Acompanhei seu caso pela internet durante um tempo, até a informação de que ele havia sido condenado. O juiz o condenou por tentativa de homicídio, com a alegação de que ele era plenamente consciente das consequências de seus atos. Deduzo, portanto, que o juiz tenha argumentado que seu distúrbio neurológico não prejudicava sua capacidade de compreender a gravidade e as consequências de sua infração. 

Do que consigo me lembrar, Jorge ficou preso de um ano e meio a dois anos. Lidar com ele era tarefa muito difícil. Confesso que senti um certo alívio com seu afastamento do CAPS e sua prisão.

Wednesday, May 10, 2023

A quebra de campo

Em fevereiro de 2000, em meu primeiro ano de doutorado, comecei a lecionar no ensino superior do setor privado, e me lembro muito bem que houve um choque cultural. Não imaginava que encontraria situações tão difíceis. A principal instituição que havia me contratado descumpria a lei em vários níveis e as turmas, inclusive no curso de Psicologia, tinham inicialmente por volta de 100 a 120 alunos. E eu também lecionava em cursos como Pedagogia e Publicidade.

Os primeiros meses foram sofridos, por diversos motivos, e também para minhas cordas vocais. Tive de me virar, e rodei Brasília atrás de caixa de som e microfone. Porque não houve outra alternativa. Em algumas turmas somente o microfone ligado, em bom volume, era capaz de fazer frente às conversas paralelas de muitos dos alunos.

Em uma dessas situações, em 2001, fora da Psicologia, me deparei com uma turma gigante do curso de Publicidade, para a qual estava programada uma aula de Psicologia por semana.

Era uma turma do noturno, com muitos estudantes trabalhadores, mas também muitos filhinhos de papai, indisciplinados e agressivos.

"Eu tô pagando!”. Essa era uma expressão comum, muitas vezes vinda do fundo da sala. A ideia de muitos desses estudantes era de que eles estavam ali como consumidores e não como parceiros e protagonistas no processo de construção de seus conhecimentos.

Era um ambiente insalubre. Em uma dessas turmas, desse curso, de Publicidade, eu estava me sentindo sem saída, sem pontos de fuga, sem espaço para conseguir fazer qualquer coisa acadêmica que fosse minimamente válida ou razoável. Sentia-me constantemente hostilizado, massacrado e até ameaçado de agressões físicas.

A maioria dos estudantes estava ali somente fazendo uma espécie de consórcio de diploma. Sua concepção era a de que bastava pagar as mensalidades para ter seu certificado. Porque depois, com o diploma na mão, prestariam algum concurso ou coisa parecida.

Era uma situação difícil, e carecia de uma quebra de campo. Eu precisava fazer alguma coisa que quebrasse com aquele ciclo de agressões e boicotes às minhas aulas e à minha presença.

No curso de Psicologia eu ministrava algumas disciplinas e, dentre elas, uma cujo conteúdo era Psicanálise. Em uma dessas aulas estávamos trabalhando alguns textos de Freud, e num deles ele mencionava o período em que havia feito uso da hipnose, e por que a havia abandonado. 

O contexto acadêmico e cultural de 2001 era bem diferente do atual. Nesse período quase não se falava em hipnose em lugar algum. Nas universidades brasileiras quase ninguém tinha conhecimento mais preciso de como realizar uma indução hipnótica ou até mesmo quais eram as principais hipóteses e teorias que tentavam dar conta do fenômeno.

Em uma das aulas nas quais eu falava do abandono da hipnose por Freud, alguns estudantes me perguntaram se a hipnose realmente existia, se era realmente aquilo que viam “nos filmes”.

Freud abandonou a hipnose porque achava a técnica cansativa e pouco efetiva. Fazia a sugestão clássica de que o paciente ia dormir profundamente. Porém muitos desses pacientes diziam a ele que não estavam dormindo. Desse modo, Freud muitas vezes tinha de explicar-lhes que não era exatamente um sono comum.

Ele também sentia que a hipnose atuava acrescentando comandos e conteúdos aos pacientes. Contudo, para ele o trabalho psicanalítico deveria se desenvolver na direção contrária. Deveria ser um trabalho não de acréscimo - como no caso da pintura, por exemplo, na qual se acrescenta tinta ao papel - mas sim um trabalho de retirada, como em uma escavação arqueológica ou em um trabalho de escultura numa pedra bruta, no qual vai se retirando pedaços, lapidando e dando forma ao que se pretende.

Freud não queria acrescentar coisas. Queria descobrir, e compreender os determinantes dos problemas psicológicos dos quais seus pacientes padeciam. Para ele a hipnose acabava então atuando em sentido contrário, de modo encobridor. E havia também o risco da produção de falsas memórias. Para Freud, esses fatores mais atrapalhavam do que ajudavam.

Sua confissão de que os pacientes por vezes acabavam relatando que não estavam dormindo, de certo modo revela que ele não sentia o processo de indução hipnótica como muito efetivo. Sentia que era mais um jogo de cena do que uma técnica na qual valia a pena investir seus esforços.

Eu conhecia a indução hipnótica clássica havia uns 6 ou 7 anos, e tinha uma experiência parecida com a de Freud. A minha sensação era de frustração. Quando tentavam me hipnotizar ou quando eu tentava hipnotizar alguém, os efeitos ficavam sempre abaixo do esperado. Nunca senti minha consciência ou orientação se alterando e nunca havia observado alterações mais profundas nas próprias pessoas que eu havia tentado hipnotizar.

Aliás, eu mesmo nunca fui hipnotizado por ninguém, por mais que eu tenha me esforçado. E olha que alguns bons hipnotistas já tentaram me hipnotizar e não conseguiram. As alterações de consciência que já tive na vida foram todas induzidas por substâncias, ou produzidas espontaneamente em ocasiões nas quais eu nem tinha a expectativa ou o desejo de vivenciá-las.

Então minha experiência não era muito diferente da de Freud.

- Mas a hipnose realmente existe, professor? A pessoa perde mesmo o controle sobre si? – indagou-me um estudante, logo após tratarmos da relação de Freud com a hipnose.

Propus então àquela turma que fizéssemos uma tentativa de indução hipnótica com algum voluntário, com algum aluno que se dispusesse a se submeter ao procedimento clássico, com o objetivo de desmistificar o fenômeno, para perceberem que não havia nada de espetacular na hipnose.

Pensei:

“Novamente me frustrarei. Novamente ficaria aqui repetindo comandos verbais, de modo bem cansativo e entediante, até que a pessoa abra os olhos e me diga que somente se sentiu um pouco mais relaxada.”

- Alguém aqui gostaria de se submeter a uma indução hipnótica?
Um jovem, com cerca de 18 ou 19 anos de idade, levantou a mão.

- Vamos então programar o que faremos? Farei o possível para não expor você e não produzir qualquer tipo de constrangimento. Não perguntarei sobre seu passado (para evitar a produção de falsas memórias) e não pedirei que você faça algo vexatório.

- Não, tranquilo, professor! Manda brasa! Eu confio no senhor. Mas eu queria mesmo era ir para uma vida passada.

- Ok. Acho que podemos tentar. Porque a produção de falsas memórias sobre uma suposta vida passada tende a ser bem menos perigosa e comprometedora para si e para as pessoas com as quais você conviveu e convive atualmente. Mas quero deixar claro que não farei qualquer tipo de incursão nas aflições e problemas dos quais você padece, ok? Quanto menos exposição, melhor. Porque nosso objetivo é somente fazer uma demonstração da indução hipnótica clássica, e o quanto ela pode produzir desorientação e alterações de consciência. 

Posto abaixo uma versão resumida de como procedi:

“Sente-se numa posição que seja a mais relaxante e confortável para você. Feche os olhos e respire de modo suave e profundo. Profundo. Profundo... [porque, para a indução clássica, é importante manter um tom de voz firme, sereno, com repetição de comandos ou termos chaves e até mesmo contagens].

Conforme vou falando, você vai voltando no tempo [e repetia o comando]. Vou contar até 5, e no quando chegar no 5 você vai retornar 3 anos [sempre repetindo o comando]. 1, 2, 3, 4, 5! Você retornou 3 anos, 3 anos! [sempre repetindo e sempre de modo bem gradual e lento].”

E assim procedi, com toda a paciência, bem lentamente, com todas as repetições necessárias, quase como num canto e num balanço para fazer uma criança dormir. 

Sugeri, gradativamente, para que ele retornasse ao início de sua vida, para o dia em que nasceu e até antes disso. Quando nos encaminhamos para alguma coisa anterior ao útero e à sua concepção, sugeri que naquele momento ele já estava em outra dimensão, e que em alguns instantes abriria os olhos e se veria em uma outra vida. 

Quando pedi para que abrisse os olhos, e nos dissesse o que via e onde estava, ele relatou que era uma espécie de cavaleiro medieval, e que estava descansando, à beira de uma estrada. Sugeri que ele estava com fome. Eu lhe daria uma maçã, que ele comeria com gosto. Dei-lhe meu estojo de lápis, que era feito de com um tecido emborrachado.

- Coma esta maçã. Ajudará a matar tua fome!

Levou o estojo à boca, deu-lhe uma mordida imaginária e jogou-o no chão.

Pensei:

“É isso. Falhei novamente. Ele percebeu que é somente um estojo.”

- O que aconteceu? Por que você jogou no chão? 

- Tá podre!

Fiz mais uma série de comandos e, para a minha surpresa, as coisas tomaram um rumo completamente diferente e surpreendente. 

- Eu tava mesmo lá, gente, numa outra vida! Foi muito bizarro. Eu não imaginava que a hipnose fosse algo real. Foi muito doido. – relatava esse estudante, atônito com tudo o que havia experenciado.

Antes desse dia eu somente havia tentado hipnotizar as pessoas individualmente. Nunca antes havia tentado fazer induções hipnóticas em grupo, com grupos de pessoas. E isso, penso eu, faz uma grande diferença. Porque uma coisa é alguém sozinho e outra, diferente, é seu comportamento em grupo.

Tratei dessa distinção, em maiores detalhes, em meu livro, “Hipnose: fato ou fraude? (2006)”. Detalhes esses que não abordarei aqui, no espaço restrito de uma crônica. Mas é fato: grupos podem potencializar bastante a expressividade e o extremismo de muitos comportamentos, principalmente quando as pessoas comandadas têm a responsabilidade por seus atos concedida a líderes ou diluída na coletividade.

Portanto, quando realizamos induções hipnóticas em grupo, há uma tendência muito maior para que ocorram manifestações mais espetaculares.

A partir desse dia comecei a investigar melhor o que era a hipnose de palco. E percebi que aquelas demonstrações de hipnose, com formato espetaculoso, eram algo relativamente simples de ser realizado.

Como esse tipo de demonstração envolve mais as pessoas que estão assistindo, senti que era um recurso interessante para se introduzir o tema, que depois seria trabalhado de forma devidamente crítica e acadêmica. Eu fazia uma demonstração de palco e logo em seguida fazia o possível para que tivéssemos o olhar mais cético e crítico possível, sem mistificações ou qualquer tipo de alegação que propagasse a hipnose como uma panaceia ou um superpoder.

E é aí que entra a história que comecei e não terminei de contar.

Eu havia tentando de tudo com aquela turma do curso de Publicidade. Havia passado filmes, feito maiêutica, ouvido-os acerca do que gostariam de estudar na área de Psicologia, etc. E tudo, por ora, havia sido em vão. 

- Hoje eu gostaria de propor uma atividade diferente a vocês – foi o que anunciei, em mais uma tentativa de quebra de campo.

- Quero fazer uma demonstração de hipnose de palco!

Ficaram curiosos e, a maioria, animada. 

Não havia um bom vínculo comigo, e isso talvez viesse a dificultar ou até impedir todo o processo. Mas raramente somos unanimidade pura. Mesmo nas piores turmas há geralmente alguns estudantes que valorizam nosso trabalho e que, por consequência, seriam os mais suscetíveis à nossa influência. 

Fiz uma triagem rápida:

- Coloquem seus braços à frente. O braço direito está muito pesado, muito pesado, com um saco de arroz em cima, e ele vai se cansando, se cansando e, por mais que você tente mantê-lo imóvel, ele vai vagarosamente descendo, descendo. E, amarrado ao braço esquerdo, há um balão, que o deixa leve, leve, e ele vai assim subindo, subindo...

Prefiro essa triagem, porque numa sala com dezenas de pessoas cerca de 15% delas irá rapidamente responder ao comando. Em menos de 2 ou 3 minutos eu já podia observar algumas pessoas com os braços bem espaçados, bem desalinhados, e são essas que os hipnotistas pegam para fazer a demonstração. 

Peguei 4 ou 5 estudantes e os coloquei sentados, na frente da sala, perto da lousa. Pedi para que fechassem os olhos e comecei a demonstrar a sugestão hipnótica com cada um deles:

“Vou tocar a tua garganta e quando eu tocar nela, você ficará mudo, completamente mudo. (...) Quando eu tocar em teu ombro, você terá uma crise de risos. (...) Levante-se. Você está agora em teu cavalo, correndo o mundo todo em uma aventura de filmes de faroeste.”

Essa última sugestão, para que a pessoa cavalgasse, foi feita a um dos estudantes mais baderneiros e desrespeitosos da sala. Ele então, parado, começou a se movimentar como se estivesse cavalgando, e empinava repetidamente a bunda de modo um pouco bizarro. Seus colegas chegaram a se deitar no chão de tanto rir. E ele mantinha sempre o semblante grave, sério, de quem estava em um tiroteio, em uma batalha, a fugir desesperadamente com seu cavalo, com sua bunda a pular para o alto repetida e freneticamente.

- Professor do céu? O que foi isso? Sinistro... – repetiam alguns.

- Vocês riram da expressão espontânea do colega. Talvez ele não esteja se sentindo bem com isso. Marcelo (nome fictício), peço-lhe minhas sinceras desculpas se de algum modo você se sentiu constrangido...

- Magina, professor! Foi sinistro! Foi uma viagem alucinante. Quem tá na chuva é pra se molhar. Também tô aqui, rindo junto do que eles tão me contando que aconteceu. Porque eu não lembro de nada. Irado!

Eu enfim havia conseguido produzir alguma quebra de campo. Não transformou aquela turma em um grupo fácil de se lidar, mas foi fundamental para que eu conseguisse terminar aquele semestre com muito mais tranquilidade.

E esse estudante, antes bem difícil, se transformou em um aliado. Um aliado atrapalhado, confuso e ainda muito faltoso. Porém, depois da hipnose, ele não era mais alguém que tinha potencial para me agredir fisicamente. E esse já era um benefício muito grande.

Passou a se comportar de modo um pouco esquisito e a me tratar muito bem, com exagerada deferência. Minha sensação era a de que eu havia conquistado o coração do bandido mais perigoso do pedaço.

Friday, May 05, 2023

Acalme-se...

Um de nossos pacientes do CAPS sempre alegra os grupos dos quais participa. Porque é muito espirituoso e realmente engraçado. Sabe que é engraçado e sempre inventa histórias divertidas ou até bizarras. Os outros pacientes dão risadas, se soltam, relaxam. Ficam todos mais leves e ele fica nitidamente feliz em saber que ajudou na descontração geral.

Tem pouco mais de 40 anos de idade e apresenta déficit cognitivo. Não sabe lidar com dinheiro ou números, quando esses passam de 10 unidades ou algo próximo. Mas sabe falar em milhões ou bilhões quando conta suas histórias.

Tem passe-livre e vai, sozinho, para tudo o que é canto do Distrito Federal. Cumprimenta e conversa com todas as pessoas com as quais cruza pelas ruas. 

Para seu nível de instrução, tem excelente oratória e retórica. Sua fala é envolvente e ele geralmente se apresenta com outro nome (que não o próprio) como se fosse político ou alguma pessoa poderosa. Diz que é advogado, logo em seguida se apresenta como médico, que tem 74 anos de idade, casos amorosos com suas secretárias e uma história de vida repleta de grandes projetos, aventuras amorosas e também as desventuras de um grande homem.

- Hoje em dias as pessoas estão muito estressadas, se aborrecendo com pouca coisa, e querendo partir para a briga por qualquer motivo! – dizia, como sempre, com vigor, como se estivesse na tribuna de uma câmara legislativa.

- Eu estava no trânsito e quase fui atropela por um rapaz que dirigia uma caminhonete enorme! Freou bem em cima de mim e saiu de seu veículo esbravejando. Era um sujeito enorme. Tinha uns 2 metros de altura. E eu, por sorte, consegui acalmá-lo.

- O que você fez para acalmá-lo? – indaguei.

- Eu lhe disse: “Acalme-se, meu senhor. E dance um bambolê!”.

O tom desse comando para que o sujeito de 2 metros de altura se acalmasse era firme, porém bem suave.

- E ele se acalmou?

- Sim, e começou a dançar com o bambolê. E assim sua expressão foi se alterando ao ponto de ficar bem tranquilo, relaxado e sorrindo plenamente. Desde o momento em que ele esbravejou comigo, juntou uma multidão. Mas, conforme ele foi se acalmando e, por fim, sorriu, plenamente, a multidão se emocionou. Choraram de emoção.

Não cheguei a chorar de emoção, mas essa história memorável ajudou a alegrar meu dia. 

E acho que preciso urgentemente providenciar alguns bambolês, para estarem sempre comigo, onde quer que eu esteja. Porque basta um bambolê na mão e cinco palavrinhas mágicas: “Acalme-se... E dance um bambolê!”. 


Tuesday, May 02, 2023

A morte no espelho de minha tranquilidade

Senti uma “energia” diferente hoje no ambiente de trabalho, no CAPS. E já me refiro assim, com o termo “energia”, que é mesmo para dar um tom sarcasticamente místico a algo que não tem nem nunca teve relação alguma com o conceito de energia a quem pertence, a Física.

No SUS, ali em nosso CAPS, são tantas as dificuldades com as quais lidamos - com inúmeros conflitos na convivência diária, durante anos – que, havendo uma calmaria, é realmente de se estranhar.

Hoje, pela manhã, senti que fui muito bem tratado por todos os colegas com quem interagi. Todos me dirigiram um olhar empático, terno. Quando estávamos com cerca de 5 a 7 pessoas juntas, numa sala, interagindo de modo informal e tranquilo, comuniquei-lhes esta impressão:

- Não sei por quê, mas estou hoje sentindo uma energia muito diferente nesse CAPS. Todo mundo com quem interagi me tratou com muita gentileza. Até o olhar de muitos aqui está diferente.

- Será que você vai morrer? – perguntou-me uma colega, sorrindo, em tom de galhofa.

- Hehehe... Como assim?

- Dizem que quando estamos nos sentindo muito bem, sem saber por quê, é sinal de que vamos morrer.

- Nossa, isso seria a glória. Imagine se, diante da iminência da morte, tivéssemos a felicidade súbita como presente. Isso talvez impedisse muitos suicídios, não?

E isso me fez lembrar de décadas atrás quando, bem mais jovem, com meus vinte e poucos anos, eu sentia vontade de morrer quando estava muito feliz. 

“Pronto! Estou feliz, satisfeito, realizado! Agora posso morrer!”

A sensação era análoga a da “petite mort” (pequena morte), como os franceses costumavam classificar pequenos intervalos de inconsciência e que depois passou também a se referir à sensação de entorpecimento após o orgasmo.

Porque é assim: a excitação se acumula, cresce, se agigante, carrega consigo um prazer intenso, que por fim explode na beira da praia do amor, da ilusão, da viagem de se perder no outro ou no mundo, e assim eis o orgasmo de quem desaguou na imensidão de tudo. Resta então o paraíso do adormecimento eterno, para o qual se arrasta toda a existência, em seu empuxo de retornar ao nada, de onde tudo surgiu.

Isso pode carinhosamente ser a sombra que nos acolhe em diversos modos de entorpecimento: com substâncias psicoativas, com música, com dança, com realizações atléticas extremas. É o estado de transe que pode se apossar de nós em ritmos avassaladores. 

Somente para se ilustrar um único exemplo, eu mesmo já me senti assim, por muitas vezes, ouvindo e sendo embalado vigorosamente por músicas que vivencio como grandiosas, e que certa vez até fez com que eu escrevesse esse pequeno texto:

“Há músicas em que dá vontade de morrer nelas, delas, ter overdose de tanto ouvi-las, mergulhar em sua realidade infinita e parar logo o coração e tudo se acabar, para nunca mais voltar, para se esquecer de vez de tudo isso, de si mesmo, principalmente. Há músicas que fazem com que eu me esqueça de mim mesmo, que eu morra sempre que as escute, para poder voltar renascido, outro, purificado, longe de todo o ódio, de toda a dor e distante de toda a lágrima inútil, mas perto daquela que nos agiganta e nos explode em sentimentos de estar ali totalmente conectados com a vida.”

E assim a vida se conecta com a morte, com uma a alimentar a outra, no circuito e na transformação constante de tudo o que é vivo. 

Mas gostei tanto da analogia da colega de trabalho, que dali em diante mergulhei nessa ideia, para egoisticamente me deleitar um pouco com a aventura de minha morte, no espelho de minha tranquilidade de aceitá-la como inevitável e bem-vinda. 

Digo “egoisticamente” porque minha vida não é só minha. É minha e de quem cuida ou depende de mim. Mas é só minha no final das contas. Porque no final das contas, no final da curva da mundo, no canto da solidão irrevogável de cada um, só resta a pessoa consigo mesma, presa em seu corpo, com destino ao sofrimento. No final é isso ou o mundo a nos carregar e nos embalar em seu colo dedicado à nossa paz e conforto, como um bebê amado por sua mãe ou cuidador.

Digo “egoisticamente”, porque sei do tanto que a minha vida é também um dever para com quem amo e cuido.

Então, egoisticamente fiz um passeio por minha morte, anunciada no barulhinho do vento em meus ouvidos enquanto pedalava para casa. Anunciada a cada olhada que eu dava no céu a querer me tragar para sua imensidão, em mundos a florescer por detrás de nuvens longínquas, onde morava e repousava meu sonho, no sentimento de último e prazeroso olhar a lançar sobre tudo. Respirava tranquilo. Abraçava a ideia da danada como redenção florida e merecida, a guardar debaixo do travesseiro de minhas memórias aconchegantes de todos os bons momentos que vivi nessa vida.

Wednesday, April 26, 2023

Não é isso, Caetano

"De perto ninguém é normal", certa vez disse Caetano. Mas não se trata disso, porque o sofrimento é ser anormal de longe, bem de longe, com todo mundo percebendo, se irritando, perdendo a paciência e apontando o dedo na nossa cara, para dizer que somos um estorvo que emperra as engrenagens do mundo.

Thursday, March 02, 2023

Azar ou armação?

A vida é assim. Às vezes ela bate mais forte, e repetidamente, ao ponto de pensarmos que estamos atravessando uma onda de azar ou que somos mesmo, por natureza, dotados de bem pouca sorte. 

Em 1985, o pior ano de minha vida, aos 12 anos, eu estava, juntamente com uns 20 colegas, debaixo de uma grande marquise, na escola, esperando a tempestade passar. 

Estava fascinado com o poder dos ventos, arrancando as folhas e os galhos das árvores, quase derrubando algumas delas, e mal tinha ideia de que aquele poder poderia se voltar contra nós. 

Foi tudo muito rápido. Ouvimos um estrondo muito forte, e de repente a marquise, sob a qual estávamos, explodiu em vários pedaços. Era composta por telhas enormes, creio inclusive que as maiores que existem, quando se fala em amianto. 

O vento havia arrancado uma dessas telhas, que desabou sobre a telha acima de nós. Vários pedaços de telha voaram e desabaram sobre aqueles 20 e poucos adolescentes e pré-adolescentes que ali estavam. Todos tentaram se proteger e, assim que puderam, correram para um lugar mais seguro. Minha cabeça doía. Alguma coisa havia caído em cima de mim.

 Olhei para as minhas mãos. Elas estavam encharcadas de sangue. Eu nunca havia tido contato com tanto sangue. Escorria pelo meu rosto. Eu estava num banho de sangue. Ao me ver, algumas adolescentes se assustaram, e saíram gritando, desesperadas. Isso foi suficiente para que eu também entrasse em desespero, e também saísse gritando.

 Para minha sorte fora somente um corte superficial no couro cabeludo, que havia rompido alguns profusos vasos sanguíneos.

 Infelizmente, após o ocorrido, fiquei traumatizado com tempestades de ventos fortes.

 Libertei-me somente mais de dois anos depois, quando era office-boy no aeroclube de Ribeirão Preto. Fui encarregado de fazer uma entrega, e do lado de fora as árvores já se balançavam bastante com os ventos, que anunciavam chuva.

 Depois de uma coleção imensa de vexames, em virtude de várias vezes ter me desesperado com ventos um pouco mais fortes, se eu dissesse à minha chefe que eu não iria, porque estava com medo da chuva, seria mais uma humilhação para essa coleção, que ainda não havia sido revelada naquele ambiente de trabalho.

 Senti que a humilhação seria mais dolorosa do que sair no meio da tempestade, e foi o que fiz. Foi libertador. Meu sentimento era o de que eu tinha me livrado de uma carga enorme e superado uma parte bem difícil do meu passado recente. Eu sentia que para alguém da minha idade, dois anos e meio com medo de alguma coisa era tempo demais.

 Mas, retornando ainda para 1985, cerca de 2 ou 3 meses após o acidente da tempestade, eu estava novamente na mesma aula de Educação Física, com o mesmo professor (que se chamava Zoroastro), participando do futebol, na quadra. Ele observava os estudantes jogando, de longe, a uns 50 metros, conversando com alguma outra pessoa, talvez um outro professor.

 - Mas veja esse menino aí, que tá correndo com a bola. Ele foi o único que se machucou, e ficou todo ensanguentado. Azarado esse moleque, hein!

 Instantaneamente após a sua fala eu, que era o menino com a bola, fui empurrado por um colega, sendo lançado para fora da quadra, para cair sobre um piso de concreto, de reboco grosso, bastante áspero. Levantei-me imediatamente e meus dois joelhos sangravam.

 - Pelo amor de Deus! Não é possível! Foi só eu falar que o moleque é azarado e logo em seguida ele se arrebenta? - completou Zoroastro, surpreso.

 - Adriano, você não vai acreditar! O professor tava ali falando que você é azarado, e você caiu exatamente no momento em que ele tava falando isso... - diziam alguns de meus colegas.

 Esses fatos, associados a uma série de outros, fez com que meu irmão mais novo, nessa mesma época, me desse o apelido de Uruca, que é um personagem de desenho animado, caracterizado por ser bastante azarado.

 1985 e 1986 foram anos muito difíceis para mim, os quais considero como os mais sofridos que já tive em toda a minha vida. E não foram sofridos porque eu era pessimista, ou me considerava azarado, como muitos inclusive fizeram para que eu assim me sentisse. Foram anos muito sofridos devido a uma série de eventos adversos.

 Se fui azarado ou não, se sou azarado ou não, é algo sobre o qual nem penso muito, porque o excesso de sentidos pode aumentar o próprio sofrimento. Prefiro ir assimilando a ordem dos eventos, por mais infelizes que sejam, de modo a me manter sereno e tentar resolvê-los.

 O problema é que muitas vezes, sem percebermos, nos desesperamos e adentramos ritmos frenéticos, que também acabam por gerar estresse e mais sofrimento.

 Quando eventos ruins se repetem e se acumulam, é inevitável o sentimento de angústia e de falta de alternativas. Isso pode se acumular, de modo bastante pesado, durante meses, e fazer com que uma pessoa se sinta completamente infeliz, ou que sua qualidade de vida e sua saúde se deteriorem gradativamente.

 Hoje, pela manhã, eu estava mais ou menos assim. Devido a uma série de fatores, os quais não cabe aqui detalhar. Tive uma noite difícil e com pouco sono. Ao acordar, percebi que seria um desafio grande conseguir chegar, sem muito atraso, ao local de trabalho, porque durante toda a noite, e logo ao acordar, enfrentei uma série de dificuldades, que estavam me fazendo pensar uma única coisa, a qual já venho pensando há um tempo, quando uma sucessão de eventos ruins me acomete:

 - Só pode ser pegadinha! Não é possível! É muita coisa errada, uma atrás da outra, e muralhas imensas de dificuldades a serem superadas...

 De repente me percebi construindo uma nova regra para mim mesmo, para poder me consolar um pouco mais em relação a uma série de dificuldades e eventos ruins dessa vida. E essa nova regra pode ser resumida na seguinte expressão: "Isso é pegadinha!".

 Essa regra remete ao pensamento de que vivemos em uma simulação de computador, controlada por algoritmos, que podem ter adquirido vida própria, ou por seres que nos controlam, ou que estamos sob o domínio de algum ser, mais onisciente do que nós que, por recursos superiores aos nossos, nos controla.

 E se a maioria dos seres sencientes desse planeta vive uma vida sofrida, miserável, podemos inclusive pensar que essas entidades, ou esse ser, estão o tempo todo nos sacaneando, fazendo pegadinha com muitos de nós, aqui e ali.

 Essa minha regrinha, por princípio também dotada de irracionalidade e pensamento mágico, estava me ajudando a me comportar de modo um pouco mais sereno. Se é tudo uma grande pegadinha, as coisas são inevitavelmente difíceis e repletas de maldades deliberadas para conosco. Então o jogo é esse mesmo, e não faz sentido se apressar demais ou se desesperar, pois tudo ocorrerá a seu tempo, e a pressa raramente surtirá algum benefício nos desesperos e nas correrias do mundo.

 Peguei minha bicicleta e novamente, como faço há mais de 6 anos, peguei o mesmo caminho em direção ao trabalho. Um caminho pelo qual já devo ter passado mais de mil vezes.

 "Não há porque se apressar nem se desesperar. Tudo ocorrerá a seu tempo. Não há porque se envolver demais com as dores alheias, e nem se desesperar para que as coisas se resolvam mais rapidamente ou de forma mais prática. O que terá de ser será, porque tudo é uma grande covardia, sadismo e sacanagem mesmo. Quem nos controla ou quem criou esse algoritmo é um tremendo de um filho da phutta."

 A cabeça estava atribulada, mas dentro de toda a atribulação, eu agora conseguia me sentir razoavelmente sereno enquanto pedalava.

 Todo e qualquer percurso que alguém faça de bicicleta possui trechos mais perigosos. Foi tudo muito rápido, e de repente havia um carro que vinha em minha direção e ia me atropelar. Estávamos em direções opostas e as velocidades se somariam, em um atropelamento ou acidente de trânsito como eu nunca havia vivenciado antes.

 Tentei desviar e freiei com todas as minhas forças. Por sorte não houve o choque. O carro deve ter derrapado, freado ou desviado bruscamente. Mas eu não me salvei por completo. Minha tentativa de desviar, freando bruscamente, fez com que eu capotasse. Fui para o chão, com a bicicleta talvez por cima de mim.

 Não sei se é um mau hábito, mas sempre que dou uma topada com a perna ou o pé em algum móvel, solto imediatamente alguns palavrões, e nesse tombo não foi diferente.

 Eu estava no chão, de bruços, com uma das pernas presa na bicicleta, sem conseguir me levantar, sem conseguir me virar, e professando alguns palavrões. A quase colisão ocorreu com um carro de passeio. Eu estava exatamente na entrada do corpo de bombeiros da cidade onde moro. Esse carro pertencia a um soldado ou oficial desse batalhão.

 - Pare para de xingar, rapaz! - foi o que ele me disse, como se fosse um comando a um de seus soldados.

 Parei de xingar, e continuei no chão, de bruços, sem conseguir me virar, somente resmungando que minha perna estava presa na bicicleta, e que daquele modo eu simplesmente não conseguia me levantar.

 Chegou outro bombeiro. Os dois tiraram meu tênis, e conseguiram soltar minha perna da bicicleta. Fui devidamente examinado e me fizeram algumas perguntas, para saber qual era meu estado. Eu estava quase que completamente anestesiado. Uma série de substâncias devem ter se produzido em meu corpo, ao ponto de fazer eu me sentir um pouco fora de mim e sem qualquer tipo de dor em parte alguma.

 Logo eu estava de pé, calçado e nem sei exatamente quem vestiu o tênis em meu pé. O banco da bicicleta estava completamente torto e na força eles colocaram-no no lugar. Apertei-lhes as mãos, agradeci e lhes pedi desculpas pelos xingamentos.

 - Bote deus no teu coração, e pare de xingar – completou o bombeiro.

 Caminhei 50 metros, até a faixa de pedestres, e atravessei-a no meu tempo, que estava quase parado, com tudo passando muito devagar. Eu sempre atravesso a faixa de pedestres o mais rápido possível, para não incomodar nenhum motorista. Mas dessa vez não fiz questão alguma de colaborar com quem me esperava.

 Cerca de 50 metros depois havia outra faixa, da pista contrária. Continuei caminhando, em passo lento, cambaleante e agora já com algumas lágrimas no rosto.

 É inevitável que esse tipo de acidente gere alguns ferimentos em carne viva e até fraturas. Por sorte não tive nenhuma fratura, mas uma coisa irá sempre inflamar: o ombro que machuquei em uma queda de moto, há quase 30 anos.

 Resultado: dois dias de atestado, curativo no ferimento do cotovelo e anti-inflamatórios para o ombro esquerdo. Mas continuo sereno e sem desespero, porque é tudo pegadinha.