Wednesday, August 30, 2023

Na pedra do tempo congelado

Há estudos a demonstrar que o consumo de medicamentos psiquiátricos mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Isso produz um aumento muito grande na demanda por médicos psiquiatras, cuja quantidade ficou muito longe de aumentar na mesma proporção. Isso resulta num número muito grande de pacientes que chegam ao CAPS já medicados e muitos desesperados por um atendimento médico, cuja previsão é indeterminada. Renovam suas receitas nas unidades básicas de saúde, mas esperam 6 meses ou mais para serem avaliados por um psiquiatra. 

Assim os casos de agressividade e hostilidade contra a equipe inevitavelmente aumentaram, e episódios de agressões físicas se tornam mais fáceis e frequentes, principalmente com pacientes que ainda não desenvolveram um vínculo conosco. 

Eu estava no grupo de boas-vindas, destinado a receber os pacientes que já haviam tido sua primeira entrevista e classificados como casos severos e persistentes. Então seu segundo atendimento no CAPS é em grupo, no chamado grupo de boas-vindas. 

- Eu quero saber quando serei atendida por médico nessa merda! Eu quero marcar atendimento com um médico! - reclamava uma paciente, repetidamente, durante toda a sessão em grupo. 

- Percebo e compreendo tua irritação (…) O CAPS não é uma instituição médica. Temos várias especialidades: enfermagem, psicologia, assistentes sociais, terapeuta ocupacional…

 - Eu preciso de remédio!

 - Sim, e isso não irá faltar. Sua prescrição continuará sendo renovada na UBS. Infelizmente, neste CAPS, a fila de espera para atendimento médico é grande e por tempo indeterminado…

 - Eu não quero saber de nada disso! Eu quero um médico e é meu direito! - gritando, dando socos na mesa, no balcão. 

Pessoas gritando, ameaçando colegas de agressão física, de morte, e o CAPS mobilizado, em tensão, com boa parte dos servidores se desdobrando para acudir, ouvir, acolher, tentar acalmar, tentar fazer vínculo. Isso transformado em rotina.

Em uma situação como essa, no grupo de boas-vindas, uma paciente começou a gritar descontroladamente, como se arrancasse os cabelos e veio, em fúria, para me agredir. Tomei socos, empurrões, e o vigilante entrou na sala para contê-la. Já era a segunda vez que eu era agredido por paciente. Mas dessa vez foi um pouco pior. A paciente foi retirada da sala e seu filho, com idade entre 25 e 30 anos, permaneceu na sala, apontando o dedo para mim, e fazendo um sermão. 

- Você é uma vergonha como profissional! Não devia estar aqui! Também precisa de tratamento psicológico! - em um sermão de alguns minutos, na frente de todas as pessoas presentes. 

Tenso, eu somente ouvia e anotava, sem lhe responder, sem demonstrar qualquer tipo de linguagem não-verbal que pudesse ser interpretada como afronta. 

- Tirem o Adriano da sala. Isso é muito pesado – dizia uma colega. 

Foi bem difícil. Mas eu sempre imagino que poderia ter sido pior. Alguém com mais força física poderia ter me agredido. 

Tentei me concentrar no trabalho e dar continuidade ao que precisava ser feito naquela manhã. É sempre corrido, com muitos afazeres. Não há muito tempo para lamentações. Debatemos. Tentamos compreender melhor o que acontece e como melhor prevenir que se repita. Mas a rotina do serviço tem sua conturbação habitual e sempre devemos seguir porque, sejamos práticos, a fila é extensa e a população precisa de atendimento, acolhimento, acompanhamento. 

Porém não há como negar que isso pode produzir alguns traumas. Percebemos os sinais. Pacientes e familiares estressados, pedindo por algo que não somos capazes de oferecer, não se acalmando com gentileza ou escuta empática, e a verdade também não podendo ser ocultada, pois haverá um momento em que teremos de dizer que algumas coisas não são possíveis. E é nesses momentos que irrompe a fúria. 

Como disse: por vezes vão se produzindo alguns traumas, de modo que nem nos damos conta. 

Noutro dia fui atender a uma intercorrência, que são os casos de pessoas que procuram o CAPS em crise, sem agendamento prévio. Peguei o prontuário na recepção e chamei o paciente pelo nome, na sala de espera. 

- Luiz Carlos da Silva! (nome fictício). 

Adentramos a sala de atendimento individual. 

-  Olá! Meu nome é Adriano. Sou psicólogo do CAPS. Como posso ajudá-lo? 

- Em nada. 

- O que trouxe você aqui, Luiz? 

- Nada. 

- Mas veio até aqui, pedindo por ajuda, não? 

- Não. 

- Então tá tudo bem com você? 

- Sim, tá tudo ótimo. 

Essa tentativa de escuta, de diálogo, sem resultado, se estendeu por mais alguns minutos, e sem sucesso. 

- Você veio sozinho? 

- Não. 

- Veio com quem?

- Vim com uma mulher que acha que é a minha mãe. Mas o espírito santo sabe como que não é nada disso. Ela está junto das maquinações de satanás. Não escuto a quem ousou profanar a mensagem de nosso senhor Jesus Cristo... 

E assim se estendeu em um solilóquio que quase não interagia comigo. 

- Posso chamá-la? 

- Claro. Fique à vontade! Porque Deus é meu pastor e nada me faltará! 

- Ele está em crise – dizia ela. Está impossível conviver com ele em casa. Abre portas de madrugada.  Não quer mais tomar os medicamentos. Deixa torneiras abertas, fogo aceso no fogão. Não quer tomar banho. Puxou faca pra mim. Estou com medo dele por fogo na casa. Tenho outras duas crianças pequenas... 

Seu discurso se aprofundou e ela chorava de desespero. Ele estava com discurso e comportamentos caracteristicamente desorganizados, com seu juízo de realidade comprometido e com riscos auto e heterolesivo consideráveis. Era caso para procurar o médico escalado na intercorrência e lhe comunicar que Luiz era elegível para o acolhimento integral (internação), porque eu, como psicólogo, não posso assinar o ingresso do paciente na enfermaria, não posso liberar o leito. É competência exclusiva do médico. 

Por sorte, naquele dia havia médico na intercorrência, e ele era um dos mais gentis e acessíveis. Havia vaga. Havia leito disponível. Agora eu deveria pedir o consentimento de Luiz, porque CAPS trabalham somente com internações voluntárias. 

Correria, como sempre. Havia mais pacientes esperando para serem atendidos. O horário do fim de meu plantão se aproximava e eu tinha de acelerar o passo, para dar conta de todos e evitar estresses maiores. 

Fui até Luiz e, sem perceber, eu já estava esperando pelo pior. Sentia que seria mais um caso de agressividade, de violência, em direção à minha pessoa. 

Cheguei bem lentamente, do modo mais suave e sereno do qual fui capaz. Ele me avistou a uns 10 metros. Caminhei, vagarosamente, com seu olhar fixo em minha direção. Ele estava sentado numa poltrona. Abaixei-me, para ficar exatamente na mesma altura que ele. Toquei-lhe os ombros calmamente, como se eu pudesse, somente com aquele toque e olhar ternos, lhe acalmar, e lhe comuniquei, do modo mais suave e sereno possível: 

- Luiz. Seria bom que você ficasse um pouco aqui conosco. Uns dois ou três dias. O que você acha? 

Senti como se eu tivesse lançado silenciosamente uma bomba atômica naquela sala e que em alguns instantes explodiria. Eram alguns segundos suspensos no varal da explosão que não acontecia, quando tudo ali se transformou em pedra do tempo congelado. 

Por uma fração de segundos, uma expressão de ódio se apoderou de seu rosto, mas não perdurou. Derreteu-se e também adquiriu tons ternos. 

- Sim. Tudo bem – respondeu-me, calmamente. 

- Muito obrigado, Luiz – respondi-lhe, com os olhos marejados, e quase lhe dando um abraço. 

Ele percebeu que quase chorei. E percebeu também que eu lhe abraçava, com a ternura do olhar e do toque em seu ombro. 

Nesse dia eu tive sorte.

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