Minha mãe sempre foi mestre na arte de falar até que alguém perto dela enlouqueça. E meu pai era quase uma unanimidade quando o assunto era loucura ou desequilíbrio emocional.
Lembre-me dele quebrando a casa inteira, por várias vezes, desde bem pequeno. Uma das cenas mais clássicas em minha memória, dele perdendo a cabeça, é a imagem que vi por várias vezes, de quando ele pegava um prato de comida, cheio, e o jogava no chão, espatifando-se, com pedaços de louça e arroz com feijão para todos os lados. Essa é uma imagem clássica em minhas memórias infantis.
Ele inclusive teve seu último dia como morador em casa, conosco, com os filhos e com a esposa, totalmente permeado por essa agressividade. Ele havia, no período da tarde, se desentendido com minha mãe, por telefone. Ela em casa e ele no trabalho.
Chegou muito agressivo. Para guardar os dois carros na garagem, acelerou e freou demais, várias vezes. Parecia que ia explodir o carro na parede da sala. Entrou muito nervoso, gritando com ela e já começou a quebrar uma série de coisas em casa. E ela teve a ideia (até hoje não sei se boa ou bizarra) de colocar água para ferver. Ficou perto da panela e assim que ele se aproximou, com medo ela pegou a panela com água quente e jogou em seu rosto.
Do quarto somente percebi que alguma coisa pior já estava acontecendo, pois ele urrava muito mais intensamente. Agora, além da raiva, também tinha muita dor porque a água estava bem quente.
Eu estava no quarto porque ali procurava por meu gravador. Queria gravar o áudio daquilo tudo. Naquela época não havia possibilidade de registro quase algum, e eu queria registrar, queria que depois ele ouvisse tudo aquilo. Mas não deu tempo. Tive que correr para ajudar Edu - meu finado irmão mais velho, falecido em 1998, aos 28 anos de idade, que naquele final de 1989 tinha somente 19 para 20 anos de idade. Eu tinha 17.
Meu pai estava completamente descontrolado. Com o rosto em vermelhidão, urrava e babava de ódio. Edu fazia o que podia para tentar impedir que ele thrucidhasse minha mãe. Edu o segurava com força, mas estava todo arranhado por meu pai. Seus braços sangravam. Pegou um cano de aço e o ameaçou:
- Você fica quieto! Fica na tua! Senão eu vou quebrar esse kano na tua khara! - gritava para meu pai.
Os vizinhos apareceram e logo em seguida a polícia.
- Vem aqui me pegar se você for macho, seu bhostha! Você só tem coragem se tiver com esse revólver na mão né, seu mherda? Pode pegar o revólver! Vem pra cima de mim! Pode vir, pode vir, que eu te arrebentho. Pode mether bhala! Não tô nem aí. Vem pra você ver o que que eu faço com você! - dizia meu pai, para um dos policiais que, parado, somente o observava.
Da grande árvore, que fez parte de toda a nossa infância e parte da adolescência, havia então somente o tronco, na porta de casa. Ali estava parada a minha bicicleta. Ele a levantou no alto e a jogou contra o muro. Subiu no tronco e, mudando completamente o tom de voz, fez uma espécie de discurso político, para toda a vizinhança, para demonstrar a eles como era a vítima daquilo tudo.
E foi assim o último dia de meu pai, quase 20 anos depois, como morador daquela casa conosco, na qual seus três filhos homens haviam crescido. Por sorte, a violência não escalou para uma tragédia, como no caso de alguns conhecidos meus. Lembro-me muito bem de um amigo, cujo pai havia tido um episódio de descontrole emocional muito parecido com esse de meu pai, mas com um desfecho trágico. Foi preso e, durante a madrugada, dentro da cela, se mathou enfhorcadho.
Talvez tenha sido sorte. Ou talvez nossas ações tenham sido suficientes para impedir uma tragédia maior. Assim como no dia em que meu pai, há exatos 20 anos, nos expulsou de sua chácara.
- Você sai daqui agora, senão eu te dou um thiru na kara! - era isso que ele dizia para meu irmão mais novo, após um episódio de ciúme.
Meu irmão mais novo sempre teve uma relação bastante amistosa com um amigo, mais velho, e que também era como um pai. Nesse dia meu pai ficou obcecado por isso ao ponto de seu ciúme escalar e resultar numa ameaça de violência nesse nível.
É muito triste a lembrança da maior parte dos episódios de loucura ou descontrole emocional, em minha família, estarem atreladas a ele. Mas infelizmente é um fato.
Mas na maior parte do tempo era uma pessoa bastante alegre, engraçada e divertida. Sabia curtir a vida e fazer uma série de coisas que são prazerosas, aventureiras e emocionantes. Não tinha medo de que as pessoas pensassem que era desequilibrado ou louco. Em muitas situações fazia o que tinha vontade e o que era mais divertido. Se vestia com simplicidade e às vezes de modo diferente e exótico. Desenhava e pintava muito bem. Pirografava. Era excelente escultor e calígrafo. Produzia réplicas perfeitas de aviões a partir de caixas velhas de maçã. Era um exímio atirador com armas de fogo, estilingues, zarabatanas, bestas e arco e flecha.
Tinha uma coleção de bicicletas motorizadas antigas. Havia até mesmo comprado a motoquinha bizarra com a qual um urso fazia apresentações em um circo. Andava com essa motoquinha para todos os lados, sem camisa e descalço, com seu cão no colo.
Tinha um grande senso de liberdade. Fazia simplesmente o que dava vontade e costumava não se intrometer na alegria e na liberdade das pessoas.
Era protético dentário e facilitou demais a vida de inúmeras pessoas, com acesso simples, prático e altamente eficiente a próteses. Consertou minha boca em seis meses, sendo que se eu tivesse sido levado a um dentista talvez ficasse por lá durante anos para obter o mesmo resultado. Se não fosse ele, hoje eu seria teria a boca igual a do Ronaldo, jogador de futebol, quando adolescente.
Era o mecânico particular e gratuito de muitos de seus amigos. Porque, além de protético, era também um bom mecânico de motos, de mão cheia. Além de ter todas as carteirinhas de mecânica de aviões e ser um piloto privado, na raça, estudando à noite, a vida toda.
Muitos de seus e de nossos amigos diziam que ele era uma pessoa fantástica, maravilhosa, muito engraçada e divertida. Porém, que tinha somente um único problema: o álcool. Porque, quando bebia, pedia totalmente o controle e fazia muita besteira.
Talvez realmente o maior problema da vida de meu pai tenha sido o álcool. Sinceramente eu não sei. Só sei que tenho, em minha memória, uma coleção grande de histórias bizarras (muitas impublicáveis) nas quais ele é o protagonista insólito.
Por isso que digo que convivo com gente doida desde muito pequeno, e não era somente ele. Sempre fui um imã para pessoas desadaptadas e com o comportamento francamente diferente e até constrangedor, sendo eu geralmente o mais equilibrado nesse contexto. Depois que me tornei psicólogo, isso até se intensificou. Posteriormente à minha entrada na graduação de Psicologia, na USP, em 1991, eu mesmo passei, muitas vezes, a me comportar de modo mais descontrolado ou bizarro, ao ponto de algumas colegas, do 5° ano, terem me rotulado como "o louco do 4° ano".
Ontem, depois de minha jornada de trabalho, eu saía do CAPS um pouco exausto e um pouco assustado com o aumento do número de diagnósticos de transtornos mentais, no mundo todo, no Brasil e em minha própria realidade diária, de profissional de saúde mental. Minha sensação era a de um certo esgotamento.
"Está difícil. Para onde eu olho e vou sempre encontro com alguém transtornado, adoecido mentalmente. Zeus do céu, parece que todo mundo está enlouquecendo..." - pensava, angustiado.
E eu não tenho me sentido assim somente em meu ambiente de trabalho, no CAPS. Tenho me sentido assim também no dia a dia, nas mais diversas interações sociais e familiares. Porque, como já disse, sou um imã para gente doida.
Mas não tem problema. Sou calejado. Sinto que criei um couro bem grosso para tudo isso. E eu também erro. Erro demais, e por diversas vezes também me desequilibro. Isso quase nunca ocorre em ambiente profissional. Mas, em meus relacionamentos pessoais, não sou modelo para nada. Tenho a minha individualidade, como qualquer pessoa, com o meus defeitos, qualidades e destemperanças.
E, por sorte, algumas coisas boas do louco do 4° ano ainda continuam vivas em mim.
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