No SUS, ali em nosso CAPS, são tantas as dificuldades com as quais lidamos - com inúmeros conflitos na convivência diária, durante anos – que, havendo uma calmaria, é realmente de se estranhar.
Hoje, pela manhã, senti que fui muito bem tratado por todos os colegas com quem interagi. Todos me dirigiram um olhar empático, terno. Quando estávamos com cerca de 5 a 7 pessoas juntas, numa sala, interagindo de modo informal e tranquilo, comuniquei-lhes esta impressão:
- Não sei por quê, mas estou hoje sentindo uma energia muito diferente nesse CAPS. Todo mundo com quem interagi me tratou com muita gentileza. Até o olhar de muitos aqui está diferente.
- Será que você vai morrer? – perguntou-me uma colega, sorrindo, em tom de galhofa.
- Hehehe... Como assim?
- Dizem que quando estamos nos sentindo muito bem, sem saber por quê, é sinal de que vamos morrer.
- Nossa, isso seria a glória. Imagine se, diante da iminência da morte, tivéssemos a felicidade súbita como presente. Isso talvez impedisse muitos suicídios, não?
E isso me fez lembrar de décadas atrás quando, bem mais jovem, com meus vinte e poucos anos, eu sentia vontade de morrer quando estava muito feliz.
“Pronto! Estou feliz, satisfeito, realizado! Agora posso morrer!”
A sensação era análoga a da “petite mort” (pequena morte), como os franceses costumavam classificar pequenos intervalos de inconsciência e que depois passou também a se referir à sensação de entorpecimento após o orgasmo.
Porque é assim: a excitação se acumula, cresce, se agigante, carrega consigo um prazer intenso, que por fim explode na beira da praia do amor, da ilusão, da viagem de se perder no outro ou no mundo, e assim eis o orgasmo de quem desaguou na imensidão de tudo. Resta então o paraíso do adormecimento eterno, para o qual se arrasta toda a existência, em seu empuxo de retornar ao nada, de onde tudo surgiu.
Isso pode carinhosamente ser a sombra que nos acolhe em diversos modos de entorpecimento: com substâncias psicoativas, com música, com dança, com realizações atléticas extremas. É o estado de transe que pode se apossar de nós em ritmos avassaladores.
Somente para se ilustrar um único exemplo, eu mesmo já me senti assim, por muitas vezes, ouvindo e sendo embalado vigorosamente por músicas que vivencio como grandiosas, e que certa vez até fez com que eu escrevesse esse pequeno texto:
“Há músicas em que dá vontade de morrer nelas, delas, ter overdose de tanto ouvi-las, mergulhar em sua realidade infinita e parar logo o coração e tudo se acabar, para nunca mais voltar, para se esquecer de vez de tudo isso, de si mesmo, principalmente. Há músicas que fazem com que eu me esqueça de mim mesmo, que eu morra sempre que as escute, para poder voltar renascido, outro, purificado, longe de todo o ódio, de toda a dor e distante de toda a lágrima inútil, mas perto daquela que nos agiganta e nos explode em sentimentos de estar ali totalmente conectados com a vida.”
E assim a vida se conecta com a morte, com uma a alimentar a outra, no circuito e na transformação constante de tudo o que é vivo.
Mas gostei tanto da analogia da colega de trabalho, que dali em diante mergulhei nessa ideia, para egoisticamente me deleitar um pouco com a aventura de minha morte, no espelho de minha tranquilidade de aceitá-la como inevitável e bem-vinda.
Digo “egoisticamente” porque minha vida não é só minha. É minha e de quem cuida ou depende de mim. Mas é só minha no final das contas. Porque no final das contas, no final da curva da mundo, no canto da solidão irrevogável de cada um, só resta a pessoa consigo mesma, presa em seu corpo, com destino ao sofrimento. No final é isso ou o mundo a nos carregar e nos embalar em seu colo dedicado à nossa paz e conforto, como um bebê amado por sua mãe ou cuidador.
Digo “egoisticamente”, porque sei do tanto que a minha vida é também um dever para com quem amo e cuido.
Então, egoisticamente fiz um passeio por minha morte, anunciada no barulhinho do vento em meus ouvidos enquanto pedalava para casa. Anunciada a cada olhada que eu dava no céu a querer me tragar para sua imensidão, em mundos a florescer por detrás de nuvens longínquas, onde morava e repousava meu sonho, no sentimento de último e prazeroso olhar a lançar sobre tudo. Respirava tranquilo. Abraçava a ideia da danada como redenção florida e merecida, a guardar debaixo do travesseiro de minhas memórias aconchegantes de todos os bons momentos que vivi nessa vida.
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