Essas pessoas que não dão valor ao que têm, que ficam o tempo todo se comparando a outras, que estariam em algum nível superior, precisam de um pouco mais de isolamento. Talvez precisem mesmo sair das redes sociais e estarem mais dentro de sua própria vida, em sua própria intimidade. Porque a felicidade mora na simplicidade e na intimidade. A felicidade não mora na fama, na relação com fãs ou pessoas que não nos conhecem, e que na verdade não nos amam. E, claro: o bem-estar psicológico depende de mais uma infinidade de variáveis. Mas faz sentido também falar desse aspecto pontual, quando aparece.
CRÍTICA DO SENSO COMUM E PROSA - Quem quiser adquirir o livro, acesse o link do canto superior direito
Friday, December 25, 2020
Saturday, December 05, 2020
Já sonhei em ser jogador de futebol
Com 10 anos de idade, durante todo o ano de 1982, que teve a Copa da Espanha, joguei muito futebol, praticamente todos os dias, e sonhei intensamente em ser jogador. E eu até me destacava, como zagueiro. Eu era uma pedra no sapato de qualquer atacante ali do mundinho em que eu habitava.
No universo de meu bairro, o Jardim Independência (o Jardel), no qual, durante alguns anos, morou o pai de Sócrates, eu era um zagueiro respeitado no campinho, atrás da escola em que estudava, a escola estadual João Augusto de Melo (o Jamel).
O pai do Magrão (Sócrates) morava no Jardel. Cada jogo da seleção, em 1982, tinha emissoras de TV dentro da casa dele. E, que coisa engraçada, o Raí tinha somente 17 anos em 1982, e já devia brilhar nas bases do Botafogo de Ribeirão, e obviamente devia também morar no Jardel. Mas eu nem sabia que Sócrates tinha um irmão que também jogava futebol, e os mais velhos do campinho tinham no máximo 13 anos de idade. Raí, com 17 anos de idade, fazendo ensino médio em escola particular do centro da cidade, era praticamente de outra geração, de outro mundo, mesmo morando no mesmo bairro que nós.
Durante todo o ano de 1982 sonhei demais em ser jogador profissional quando adulto. Pedia para meu pai me matricular na escolinha de futebol do Botafogo-SP ou mesmo na categoria fraldinha do time rival da cidade, o Comercial, para o qual ele torcia.
- Pai, tem como me matricular no fraldinha?
- Ah, sim, filho, o pai vai ver isso pra você...
Pedi durante um ano, e não rolou. 5 anos depois eu estava jogando no Comercial, mas hóquei sobre patins, esporte mais apreciado por meu pai do que futebol.
Porém, durante o próprio ano de 1982, cometi um erro. Sonhei mais alto e quebrei a cara. Tentei sair da zaga para jogar mais para frente. O resultado foi sofrível. Eu jamais seria um bom jogador do meio pra frente. Teria de nascer de novo, no mínimo.
E ontem me peguei me imaginando como jogador de futebol profissional, realizando um de meus mais intensos sonhos da infância, ao lado dos grandes de minha geração, indo para copas do mundo. É muito insólito se imaginar em uma realidade totalmente diferente, porque 12 anos depois, em 1994 (Copa dos EUA), quando eu tinha 22 anos, meu mundo era uma coisa absolutamente diferente de uma vida de atleta profissional.
Eu nem mesmo jogava com meus amigos da Psicologia, que treinavam no campo da USP, e tinham um time de respeito, com alguns colegas (como Felipe Nassar e Fernando Falcão) que haviam treinado em grandes clubes de São Paulo, como o Palmeiras, por exemplo.
Preferia nadar. Dia sim, dia não, nadava meus mil metros na piscina da universidade. E era quase todos os dias praticamente a mesma rotina: aulas de manhã e à tarde, piscina ao meio-dia, rango no bandeijão, no almoço e no jantar (aliás, por diversas e memoráveis vezes, na companhia de figuras lendárias do universo filô-uspiano de Ribeirão naqueles anos, tais como Alexandre Ioda e Antonio Sousa, que era conhecido como Barbosa), e biblioteca à noite, até umas 22 horas.
Ser jogador profissional de futebol foi talvez um dos sonhos mais distantes da minha realidade que eu já tive.
Sunday, November 15, 2020
Chico e uma camada da saga de minha família materna
Hoje, por acaso, me lembrei que a primeira vez em que
cuidei de um bebê, diariamente, foi em 1988, com 16 anos de idade. Minha tia,
irmã de minha mãe, passava por crises psicóticas, e acho que até teve sarna.
Ela tinha dois filhos: minha prima, com 12 anos e o Chiquinho, que tinha
somente 6 meses.
Minha mãe então escolheu terminar de jogar seu casamento
no lixo, levando os 3 para morar conosco numa casa de 2 quartos. Chiquinho se
apegou com todos nós, principalmente comigo. Troquei muitas e muitas vezes suas
fraldas, além de diversos banhos, sem banheira mesmo, no muque. Fazia-o dormir
no skate.
E lembro da noite inteira, em claro, tentando fazer com
que ele, com dores de ouvido, parasse de chorar, somente eu, ele e minha prima.
Ela entrava na puberdade, e eu estava lá havia dois anos. Sim, entrei na
puberdade somente aos 14 anos.
Casa pequena, de dois quartos. Meus pais dormiam em um,
meus dois irmãos na sala, eu, minha prima e Chiquinho no outro quarto. Minha
tia internada em um hospital psiquiátrico, por meses.
Eu com 16 e minha prima com 12, sozinhos, por meses,
dormindo todos os dias no mesmo quarto. Hormônios que explodiam, em ambos. E no
meio da noite nossos corpos se encontravam no risco constante dela ali, aos 12,
engravidar de mim, aos 16.
Dois anos depois dois amigos não entendiam como eu havia
resistido. Três anos depois, já na universidade, dois ou três idiotas tentaram
me humilhar, dizendo que sabiam de minha virgindade e que isso seria espalhado
aos sete ventos, ou que rifariam meu corpo para angariar dinheiro para a
formatura. E eu somente sonhava que meu pai fizesse comigo o que vinham fazendo
havia gerações, que me levasse pra um puteiro, pra que eu pudesse me libertar
logo daquele fardo.
Mas voltemos a Chiquinho. Ficou um pouco mais de 6 meses
conosco, dos 6 meses a 1 ano de idade. Lembro de quando engantinhou por cima de
todos nós, na cama grande, de casal, no quarto de minha mãe. Fez um gracejo
para cada um de nós, enquanto todo mundo estava ali, junto, deitado, assistindo
ao Globo Repórter. Foi um momento memorável, de amor, de todos por aquele
serzinho que começava sua vidinha.
Quatro anos e meio depois, em 1993, minha tia estava
novamente internada e Chiquinho volta a ficar alguns dias conosco. Ele já tinha
5 para 6 anos. Eu tinha 21. Seu pai morrera de câncer, três meses antes dele
nascer. Não o conheceu. Mas tinha uma referência.
Durante esses dias em que ficou conosco pediu para minha
mãe para que eu fosse o pai dele. Minha mãe achava engraçadinho. Eu ficava
pensando se valia pena assumir. Levava pra terapia. Sentia algo profundo. Meu
coração doía por Chiquinho. E o dele por mim.
“Chiquinho é a imagem que você tem de si mesmo quando
pequeno: frágil, sensível demais pra esse mundo...”, dizia o residente de
psiquiatria da USP, que me atendia em 3 sessões psicanalíticas por semana. Mas
não sei exatamente se era ele quem dizia isso ou eu mesmo, talvez já deitado em
um divã, e sentindo como se escancarasse o mundo inteiro a cada sessão.
Um ano depois minha prima, com 18 anos de idade, morava
em Sampa e namorava com uma moça que, por coincidência se chamava Adriana, e
era da minha idade. Juntas montaram uma empresa, que prospera, até hoje, e
muito mais do que qualquer um de nós poderia imaginar.
Três anos depois, em 1996, Chico já era outra criança,
bem mais fortalecida para enfrentar esse mundo cão. Jogava muito vídeo game,
bola e tinha amigos. Não precisava mais de mim. Eu respirava um pouco aliviado.
Mas deixei uma coisa clara para minha mãe:
“Se ele, daqui uns 8 ou 10 anos não entrar pra
criminalidade, nós já estamos no lucro.”
Nove anos depois, com 17 anos, em 2005, Chico estava em
coma, no Hospital das Clínicas de São Paulo. Fugia da polícia, com mais alguns
parceiros, de carro, após alguns assaltos que fizeram. Seu carro perdeu o controle
e bateu em um caminhão de lixo. Chiquinho quebrou perna, não sei mais o quê, e
ficou em coma, entubado. Pensamos que morreria.
Coisa de um mês depois, peguei um avião pra Sampa, pra
depois pegar um ônibus pra Ribeirão. Minha prima me pegou no aeroporto, para
depois me deixar na rodoviária. Se eu visitasse Chico no hospital, não chegaria
a tempo da festa de despedida de meu irmão, que partia do Brasil para Londres,
para nunca mais voltar. Isso mesmo, já são mais de 15 anos em Londres. Não faz
mais sentido voltar.
Então não visitei Chiquinho no hospital. Minha prima
ficou muito triste comigo.
Nunca mais vi o Chico. Somente via, de vez em quando,
algumas fotos desfocadas dele, que minha prima nos enviava, de suas idas e
vindas de internações para parar ou diminuir o uso de cocaína.
Internava, se convertia ao neopentecostalismo, e logo em
seguida voltava pra bandidagem. E tome depois uns 3 anos de cadeia, do qual
voltou mais manso do crime, mas ainda em uso pesado de álcool, tabaco, maconha
e coca.
Em 2013, aos 25 anos de idade, teve uma overdose e ficou
em estado vegetativo por uns dois meses. Mas me avisaram somente poucos dias
antes de sua morte. Eu estava recém-operado de hérnia inguinal e caminhava com
dificuldades. Não pude ir ao funeral.
Parte 2 (sem revisão gramatical, somente para registro):
Minha tia foi vida loka, a vida inteira. As crises com
sintomas psicóticos só começaram a acontecer na vida dela aos 35 anos de idade,
quando já tinha um ano ou mais de convivência com outro vida loka, o pai de
Chiquinho, o Francisco.
Foram um casal que deu muito trabalho para minha família
nos anos de 1985 e 1986. O reveillon de 1984 pra 1985 passei na casa deles, em Sampa.
Foi um reveillon vida loka. Fiquei eu e Cako (meu irmão
mais novo) com eles durante uma semana. Chiquinho ainda não tinha nascido.
Francisco nos levava para passear de carro. Rodava as ruas de Sampa a 140 km/h,
e ninguém com cinto de segurança. Entornava uma garrafa de uísque atrás da
outra. E minha tia o tempo brigando com ele, ameaçando de se matar. Por vários
dias eu fui o mediador dos dois, com 12 anos de idade. Depois disseram a meus
pais que eu tinha sido o anjo que os tinha impedido de um matar o outro
naqueles dias. depois de uma semana Francisco pegou seu VW Santana, botou a
gente dentro (eu, Cako, prima, ele e minha tia), e voamos pra Ribeirão, o tempo
todo a 150/160 km/h, e ele talvez sempre Chapado de alguma coisa. chegando em
ribeirao, na anhaguera, por volta de umas 21 hs, vimos que havia ocorrido um
acidente. um caminhao havia atropelado um ciclista. francisco foi devagarinho
iluminando o asfalto. havia pedaços do ciclista na pista, por dezenas, talvez
centenas, de metros. fui la com francisco ver o corpo. parecia uma carne de
açougue na qual somente reconheci um corpo humano pelo que havia restado do
cranio, somente com alguns poucos cabelos. eles passaram alguns dias em
ribeirao. um dia vi que meu pai ia pro bar, beber e conversar serio com
francisco. botou a 765 na cintura e a escondeu, sob a camiseta. disse pra minha
mae que ia fazer o francisco entender algumas coisas. passaram a tarde toda
bebendo. voltaram bebados. acho que depois dessa conversa francisco ficou mais
esperto. deixaram de nos azucrinar por um tempo. dois anos e nove meses depois,
em setembro ou outubro de 1987, francisco morreu de cancer. acho que foi
leucemia ou algo no figado. nao me lembro mais. chiquinho nasceu em 07 de
janeiro de 1988, uns 3 meses depois da morte de seu pai e um dia antes de minha
tia completar 39 anos.
minha tia ficou estavel, sob uso pesado de
antipsicoticos, praticamente somente dormindo, assistindo novela e comendo,
morando a maior parte do tempo somente ela e chiquinho, de 1993 a 2013. depois
da morte dele, em 2013, ela continuou estavel, sob controle pesado de
antipsicoticos, até 2016. ou seja, 23 anos sem parar de tomar antipsicotico de
deposito, todo mes tomava uma injeçao. aí em 2016 ela parou de tomar todos os
remedios. e acho que conseguiu ficar assim uns meses ou cerca de um ano, quando
voltou a ter crises maníacas. minha mae ficou possessa e culpou minha prima.
minha mae, que sempre foi, para minha prima, a grande matriarca de toda a
grande familia, uma familia sem referencias masculinas, sempre comandada por
mulheres, esta mulher, minha mae, nao conversa mais com minha prima, que ja
deve ter chorado muito em funçao disso. minha tia está, ha cerca de dois anos
ou mais, morando em uma clinica de repouso em sao paulo. fui a sampa em
janeiro, passei somente um dia e meio por la. nao tive tempo de visita-la. mas
passei deliciosos e preciosos momentos com 4 primos e minha tia, uma outra tia,
irma de meu pai, de 64 anos, que ainda é uma mulher muito bonita. minha prima
esta muito bem. vive uma vida feliz e prospera, e ja estava se preparando para
seu terceiro casamento, agora com uma psicologa, novamente com uma psicologa
que, por coincidencia, tem o mesmo nome que minha filha. de suas tres ou quatro
unioes conjugais, duas foram com psicologas. todos jantamos juntos, um jantar
lindo, na casa dessa minha tia, irma de meu pai. ela mora em uma casa pequena,
aconchegante, e muito bonita, com seu filho, de 29 anos, que é publicitario.
ela mesma preparou um jantar lindo, maravilhoso, no qual todos confraternizamos
e bebemos bom vinho. e eu deixei claro a todos ali que 2020 será uma decada
muito dificil. minha prima foi embora mais cedo, bem mais cedo. é executiva.
está habituada a reunioes rapidas e resolutivas. e agora faz higiene do sono,
seguindo todas as recomendaçoes do "oraculo da noite", de sidarta
ribeiro. minha prima nunca precisou tomar medicamentos psicotropicos, e hoje
esta mais ligada ao pai que, aos 77 anos, mora sozinho, é totalmente
independente, e ainda presta serviços para a empresa dela. meus outros dois
primos sao dois irmaos. um de 39 e a outra fará 35 em dezembro. o de 39 mora
tambem sozinho, em sampa, e é militante do pt ha uns 20 anos. seu pai é
bolsonarista, e mora em ribeirao, com esta prima, que fará 35 em dezembro.
jantamos e fui dormir na casa dele. ele saiu para comprar pra mim e pra ele, um
travesseiro antirrefluxo. só durmo em rede ou com travesseiro antirrefluxo. no
meio da madrugada minha prima pediu por socorro. havia dormido de bruços e nao
conseguia se virar. é cadeirante. padece de uma doença neurodegenerativa, a
qual matou, que eu saiba, tres tios de minha mae. lembro bem de um deles, que
tentou se matar em 1980, tomando aquele veneno para ratos. essa doença o
castigou durante uns 15 anos ou mais. minha prima está doente ha mais de 10
anos. antes disso era tambem vida loka, como chiquinho e como minha tia, que
hoje está internada na clinica de repouso.
Ideações suicidas: baobás impossíveis de se cortar ou a possibilidade de uma bela paisagem
Atenção,
alerta de gatilho: o texto abaixo é sobre comportamento suicida. Se for
sensível ao tema, não dê continuidade à leitura.
Ideações
suicidas são muito mais frequentes do que a maioria de nós imagina. Essa
informação está contida em um dos livros de Steven Hayes, e ele cita a fonte:
"Pensamentos
e tentativas de suicídio são chocantemente prevalentes na população em geral
(Chiles & Strosahl, 1995). Cerca de 10% das pessoas, em algum momento,
tentará o suicídio. Outros 20% terão dificuldades com ideação suicida e terão
um plano e meios para realizar o ato. Ainda outros 20% terão problemas com
pensamentos suicidas, mas sem um plano específico. Assim, metade da população
enfrenta níveis, de moderados a severos, de comportamento suicida em suas
vidas"(p. 07).
Faço
parte dessa metade da população. Mas demorei muito para ter pensamentos assim.
Talvez eu pela primeira vez tenha tido consciência de que alguém tinha acabado
com a própria vida quando estávamos eu e meu pai caminhando, a uns 200 metros
de nossa casa, quando eu tinha uns 11 anos de idade, e ele me mostrou uma casa
na qual, havia poucos dias, uma pessoa havia cometido suicídio.
Sempre
que eu passava na frente daquela casa pensava naquele ocorrido horrível. Sentia
aversão. Percebia aquele contexto como absolutamente sombrio e repugnante. Não
conseguia compreender como alguém era capaz de cometer um ato tão atroz contra
si mesmo. Transformou-se para mim em um tabu. Era algo sobre o qual eu não
gostava de pensar nem de imaginar para qualquer pessoa, muito menos para mim.
Mas isso
se desfez depois que entrei na universidade. Já no primeiro ano do curso de
psicologia comecei aceitar mais esta possibilidade, talvez como um ato mesmo de
liberdade, tanto para os outros quanto para mim mesmo.
Por que
todos temos essa liberdade. No Brasil não temos esse direito. Mas o ato,
escapar disso tudo, está ao alcance da maioria de nós. E quando digo liberdade,
menciono o conceito em seu sentido mais vulgar, somente para poder me comunicar
melhor, em um texto que tem a pretensão de ser breve.
Uma coisa
que me chama a atenção, em minha própria experiência, nos últimos 30 anos, é o
quanto a minha percepção foi se alterando, e o fato de que o desejo de morrer
foi, por diversas vezes, acompanhado por experiências de grande prazer.
Já tive e
tenho minhas ideações, como a metade das pessoas desse mundo. Mas elas também
se alteraram bastante. No artigo científico que publiquei sobre o tema, o qual
é o relato do caso de meu irmão mais velho, que se foi assim, em 1998, trago a
metáfora do baobá.
A ideação
suicida seria como uma semente ou uma pequena muda de baobá. É melhor cortar
logo pela raiz. Porque quando começamos a cultivá-la, ela tende a crescer,
adquirir raízes, e se transformar em um enorme baobá que pode se apossar de
nossa vida por completo. O que antes era somente um desejo, até mesmo
indefinido, pode se transformar em alternativa válida, porta de saída para todo
e qualquer tipo de aborrecimento. Ou a pessoa pode começar a ficar fascinada
pela morte.
Sinto que
tanto eu quanto Edu, meu irmão que se foi, éramos, em 1993, fascinados pela
morte. Mas jamais conversamos sobre isso, sobre esta fascinação, no nível
pessoal. O mais próximo a que chegamos, numa conversa, neste sentido, foi
quando ele se preocupou comigo, achando que eu pudesse tentar alguma coisa.
- Dri,
meu irmão, li isso aqui que você escreveu, e fiquei preocupado...
- Não há
com que se preocupar, eu lhe garanto. Isso é somente exercício poético,
literário...
Ele
insistiu em se mostrar preocupado, e eu inverti:
- Poxa,
Edu, convenhamos, quem está em mais risco aqui é você, e não eu.
Vi que
ficou um pouco surpreso, achando que eu não soubesse de nada, que eu não
percebia o quanto ele era suicida. Mas deixei muito claro para ele que era
muito angustiante saber que ele uma hora poderia fazer alguma coisa. A
possibilidade de chegar em casa e encontrar alguém que fez uma coisa dessas é
horrível.
Senti que
ele havia percebido que algo assim poderia gerar muito sofrimento em muitos de
nós, e continuei durante todos os cinco anos seguintes (assim como eu já vinha
fazendo havia cinco anos, desde 1988) fazendo o que eu podia para que ele se
sentisse mais feliz, e percebesse que de alguma forma a vida dele valia a pena.
Minha
capacidade de ajuda e prevenção a alguém numa situação dessas era muito menor
do que a que tenho hoje. Hoje compreendo tudo isso, em termos de intervenção
psicológica e em termos éticos, de um modo muito mais vasto e profundo do que
nos anos 90.
Cada um
fez o que pôde e cada um tinha seus limites, e muitos de nós tivemos
importantes aprendizados depois dessa tragédia.
Mas esse
texto já está ficando longo, e se desviou para pontos sobre os quais já tratei
em detalhes no artigo e na versão, em formato de crônica, em português.
Eu queria
mesmo é falar da forma das ideações. Meu baobá já existe há muitos anos, e
convivo muito bem com ele. E ele não cresceu sob o piso de minha casa,
destruindo tudo e invadindo minha vida.
Hoje
tenho tudo muito bem delimitado e separado. O baobá é hoje uma paisagem linda
que tenho em minha janela, e que sei que posso um dia ir lá, quando for
necessário, quando for a hora.
Sinto que
a vida, além de um direito, é também em boa medida, para muitos de nós, um
dever. Temos deveres para com quem nos ama, e sofreria muito com nossa falta
repentina.
Então não
tenho mais ideações que estão crescendo e tomando conta da minha vida. Não tem
mais nada a ver com isso.
E se você
leu até aqui e pouco entendeu, talvez você precise compreender, em maiores
detalhes, o que são ideações suicidas, tabus sobre o tema, suas modulações
sociais e históricas, e os conceitos de: liberdade, direito, ética, e todo o
debate sobre eutanásia e suicídio assistido.
Referência:
S.C.
Hayes et al (1999). Acceptance and commitment therapy. New York: Guilford
Press.
Tuesday, October 06, 2020
Quando um paciente roubou meu celular
Há cerca de 4 anos um paciente roubou meu celular. Eu estava com um pequeno grupo, em uma sala do CAPS. Ele fazia parte desse pequeno grupo, e era o único ali que tinha passagens pela polícia, por roubo. Dando falta do celular, minutos depois voltei à sala, correndo, na qual não havia mais ninguém. E o celular simplesmente havia desaparecido. Peguei o celular de um colega, e liguei para meu próprio número.
Ele mesmo, esse paciente, que tem uma voz e um jeito de falar inconfundíveis, atendeu. Vou aqui chamá-lo de Josimar (nome fictício):
- Josimar, você está com meu celular. Volte aqui para o CAPS! Traga ele de volta pra mim, por favor!
- Perdeu, playboy! Perdeu! - e desligou na minha cara.
Não consegui recuperar meu celular, porque dali do CAPS ele foi diretamente a algum local, para vendê-lo a um receptador.
Também não acionei polícia. Tentei somente conversar com sua mãe e seu tutor, que era um vizinho dele.
Sua mãe, por telefone, lamentou o fato, e disse que fez o que pôde, tentando conversar com ele, mas ele jamais admitiu que cometeu tal delito.
Seu tutor, um senhor entre 50 e 60 anos de idade, foi com ele até o CAPS, para que pudéssemos fazê-lo se convencer de que seu ato não poderia se repetir, e que era algo condenável.
Josimar, mesmo após ter atendido a ligação telefônica, jamais confessou que cometeu tal crime.
Ele frequentava o CAPS porque a justiça assim o obrigava. O juiz havia definido que ele somente se manteria em liberdade se não houvesse reincidência de seus crimes (no caso, roubo), e que ele obrigatoriamente frequentasse um CAPS.
Josimar tem retardo mental. Nasceu em um estado do Nordeste, e veio para Brasília quando tinha nove anos de idade. Uma das versões sobre sua história, registrada em seu prontuário, era a de que ele teria caído de uma rede, e batido fortemente com a cabeça no chão, quando tinha somente alguns meses de idade. As lesões cerebrais produzidas por esse acidente teriam resultado posteriormente no sério comprometimento de seu desenvolvimento cognitivo.
Do que eu conseguia me lembrar, após leituras de seu prontuário, era que ele havia sido pego pela polícia em alguma tentativa de roubo, na qual vinha sendo repetidamente instrumentalizado por seus irmãos, já que era inimputável.
Colocavam um deficiente mental para roubar para que assim não fossem penalizados. A culpa recairia sempre sobre o deficiente.
Josimar, contudo, deixou de frequentar o CAPS nos últimos 3 anos. Porque reincidiu e acabou novamente sendo preso. Ficou três anos em reclusão em um manicômio judicial.
Há poucos dias ele reapareceu no CAPS em companhia de um irmão. Havia sido solto, e agora devia obrigatoriamente voltar a frequentar nosso serviço.
Para minha surpresa Josimar não tinha vários irmãos. Tinha somente aquele irmão, com quem estava agora diante de mim, em uma avaliação para sua reinserção no CAPS.
Ele é 15 anos mais velho que esse irmão, que não tem retardo mental, e também ficou preso por cerca de três anos, por ter sido condenado por furto ou roubo.
Seu irmão, Rodrigo (nome fictício), tem 34 anos, tem três filhas e uma neta, de 5 meses de idade. Acho que Rodrigo é o avô mais jovem que já vi nessa vida.
Entrevistei-os do modo mais completo possível, inclusive em relação aos fatores sócio-financeiros.
Josimar é analfabeto e o irmão estudou somente até a quinta série. Sua filha, de 17 anos, ainda cursa a sexta série do ensino fundamental. Ainda conseguem pagar água e luz. Mas ninguém na casa tem telefone celular, e também não há telefone fixo. Nunca tiveram carteira assinada, e têm dificuldades inclusive para ter comida em casa.
- Lá em casa é eu, minha mãe, Josimar, minha filha e minha neta. (...) Levantamos de manhã bem cedo, e viemos para cá, a pé. Não tem nada de comida lá. Nem pão, café, nem açúcar. (...) Pra comer tamo saindo de casa. Cada dia a gente vai na casa de uma pessoa diferente. Ontem almoçamos na casa da madrinha de minha filha.
No final do atendimento Rodrigo me interpelou:
- Desculpa o incômodo aí, mas será que você não teria aí uns R$10 pra emprestar pra gente, pra nós passar na padaria e comprar uns pão, pra levar pro café da manhã?
- Rodrigo, eu não tenho dinheiro na carteira. Tenho somente o cartão. Vou com vocês até a padaria. Pode ser?
- Sim!
Saí com os dois, e caminhamos uns 200 ou 300 metros, até a padaria mais próxima.
Chegando lá pediram pães com mortadela e um refrigerante de 2 litros. Estavam loucos para saborear pães com mortadela com refrigerante, de café da manhã. Comprei-lhes açúcar, pó de café, margarina e leite.
Agradeceram-me, animados, contentes, como se tivessem descoberto um novo parça.
Despedi-me deles rapidamente, para voltar logo ao trabalho. No meio do caminho senti o sol brilhando como se não fosse real, como se eu fosse capaz de ver cada um dos raios a penetrar no mundo das coisas e de seres que sofrem, como se tudo aquilo fosse um cenário calculadamente armado de modo excessivamente luminoso naquela manhã. Por alguns instantes parecia que eu havia feito uso de alguma substância anestésica e alucinógena
Foi um sentimento breve de estar fora de mim, e de ser tomado pela sensação, emotiva, de que tudo podia com muita facilidade ser completamente diferente e muito melhor para muito mais pessoas.
Mas isso durou somente alguns segundos. Metros depois o sol voltou impiedosamente a rachar na cabeça.
Saturday, September 05, 2020
Pensar na vida
Eu deveria ter começado a fazer terapia ou algo talvez como filosofia para crianças quando tinha uns 7 anos de idade ou menos. Desde pequeno meu pendor para as humanidades era nítido. Apesar de não ter dificuldades com área alguma de conhecimento, eu adorava atividades braçais ou manuais. Porque me deixavam pensar na vida. O que eu mais gostava, e sempre gostei, era pensar na vida. E ainda gosto, e é o que mais faço, hoje porém com a ajuda de diversos autores e pensadores. Porque eu precisava, com urgência, por sobrevivência psicológica, pensar na vida, desde muito cedo.
Thursday, September 03, 2020
Lembranças de meu pai
Imagine a seguinte cena: você está com seu carro, na rodovia Anhanguera, chegando em São Paulo, capital, e está caindo uma tempestade torrencial. Naquelas várias faixas você olha para a direita, na faixa da direita, e vê um motoqueiro, numa moto 125 cilindradas, (ou seja, uma moto pequena), com roupa de chuva, capacete e um bagageiro no qual se encontra uma mala, nitidamente uma bagagem que contém as roupas desse motoqueiro.
Porém, há um detalhe: na garupa está uma criança de uns oito ou nove anos de idade, amarrada ao motoqueiro, com uma corda. Os dois estão equipados para chuva, com macacões de chuva, capacetes, tudo certinho... Mas o que se vê é um motoqueiro numa chuva torrencial, no meio do nada, numa estrada enorme, cheia de carros, indo devagarinho, no cantinho, para São Paulo, e esse motoqueiro já se deslocou, com essa criança, uns 300 km.
Esse motoqueiro era meu pai e essa criança era eu ou meu irmão mais novo, Cako. Todos os anos meu pai fazia essa viagem, essa aventura conosco, de Ribeirão Preto a São Paulo. E havia um revezamento entre nós, os filhos. Desse modo todos os três filhos fizeram essa viagem com ele. Eu acho que fiz essa viagem com 11 anos de idade, mas imagino que meu irmão mais novo tenha feito essa viagem com uns oito ou nove anos de idade, e lembro que na viagem que eu fiz com meu pai aconteceu exatamente isso aí: pegamos, no meio do caminho, quase chegando em São Paulo, uma chuva torrencial, e paramos somente para nos paramentarmos com os macacões de chuva.
Aí houve um momento em que meu pai resolveu me amarrar a ele, porque percebeu que eu estava caindo no sono, e que havia o risco de eu cair da moto. Como naquelas condições essa acabava se tornando uma viagem um pouco mais longa, com uma duração de mais ou menos 5 ou 6 horas, era muito propício que uma criança adormecesse. Então acho que esse recurso, de amarrar os filhos ao seu corpo, foi utilizado possivelmente com todos os três, em cada uma dessas viagens.
Hoje pela manhã me lembrei exatamente dessa cena, quando vi um motoqueiro passar por mim nas ruas, a caminho do trabalho.
E não teve jeito, eu caí no choro. Dois anos e meio após a sua morte esse talvez tenha sido o choro legítimo do vazio, da perda, de perceber que um pedaço grande da gente foi arrancado, em algum lugar; de que algo se foi e jamais retornará, de que a vida vai caminhando e que muita coisa vai se decompondo, se perdendo para sempre. De forma que no final das contas tudo amiúde se transforma em uma grande nuvem de esquecimento e um vazio a ecoar nos últimos instantes.
A vida de meu pai com seus filhos foi conflituosa, sofrida. Penso que talvez a interação menos sofrida tenha sido com meu irmão mais novo. Mas houve muitos conflitos comigo e com meu irmão mais velho. Isso sem falar nos conflitos que ele teve com nossa irmã, dois anos mais nova do que eu, a qual só viemos a descobrir que existia há pouco mais de 20 anos.
Se nós três, em muitos momentos padecemos de sua ausência, ela muito mais. Nós três ainda tivemos, em toda a primeira infância, e boa parte da adolescência, a presença dele dentro de casa, e ela jamais teve isso ou até mesmo algo próximo disso em relação a ele, porque nem mesmo o sobrenome dele ela herdou.
A partir de meus 12 anos de idade lidar com meu pai era lidar com alguém quê eu já não compreendia e que também não me compreendia. Com 20 anos de idade fui fazer terapia e consegui me reaproximar um pouco mais. E assim, nessa época, um dia me confessou:
- Eu me preocupava bastante com você, quando você era criança, porque eu pensava que você não ia dar conta de resistir à vida...
E sinto que muitas vezes a tentativa dele de fazer com que alguém acordasse, ou se motivasse mais para a vida, era muito geralmente uma tentativa muito rude, muito dura:
- Porra, vai ficar chorando pelos cantos? Acorda, porra!
Com 12 anos de idade eu sentia isso tudo como simplesmente abominável. Com 20 anos, depois de um pouco de terapia, comecei assimilar melhor, ao ponto de transformar essas palavras aparentemente rudes em algo verdadeiramente motivante, e até mesmo hilário, risível, de tal maneira que muitas vezes até sentia falta dele gritando assim comigo, para que de fato eu acordasse.
Mas aí chega um dia em que você sai de sua cidade, e isso somente colabora para que as distâncias aumentem, em todos os níveis, ao ponto de não saber mais precisamente o que está acontecendo com seus pais, de quais são precisamente os desafios pelos quais eles estão passando em seu dia a dia, em sua jornada para o envelhecimento e o fim mesmo de seus dias.
E meu pai foi isso: uma pessoa muito controversa, com o qual tive algumas aproximações memoráveis, e muitos estranhamentos, cuja lembrança, em minha infância, hoje me invadiu, como um rio caudaloso, em alguns poucos minutos em que eu estava a caminho do trabalho.
Sunday, August 23, 2020
Quando cheguei à Brasília, em 1997
Hoje tivemos de ir ao Plano Piloto. Luisa, minha filha, quis saber qual foi o primeiro lugar em que morei quando cheguei em Brasília, em 1997, para fazer o mestrado na UnB. O lugar em que primeiro morei foi um predinho JK na quadra 412 sul, originalmente de um quarto que foi minha casa de março de 1997 a abril de 1998, quando mudei para o alojamento da UnB.
Esse apartamento da 412 sul era originalmente de um quarto mas que, em nosso caso, tinha dois quartos. Transformaram o banheiro em quarto e a área de serviço em banheiro. Botei uma beliche nesse banheiro, transformado em quarto (veja na primeira foto), no qual somente cabia uma beliche, um armário de duas portas (de meu colega de quarto, que era qualquer um que aceitasse estar ali) e minha estante de aço, na qual eu conseguia colocar tudo o que eu tinha de pertences.
1997 foi um dos piores anos de minha vida, no qual senti uma solidão extrema, que nunca havia sentido antes. Eu simplesmente não conseguia fazer amigos em Brasília. Em Ribeirão Preto as pessoas eram bem mais calorosas e próximas. Em Brasília imperava um cheiro horrível de apartheid social e as tribos eram muito fechadinhas. As pessoas não conversavam com estranhos e parecia não haver muita gratuidade nas interações com desconhecidos. E assim tentei sobreviver aqui, como um completo estranho, durante um ano. Quase desisti de tudo, para me tornar professor de inglês. Mas, como eu sempre adiava o dia da desistência, da rendição, acabei sobrevivendo à Brasília, ao mestrado, à minha solidão.
- Mas quando tudo melhorou, papai?
- Quando chegou o peruano, minha filha...
O peruano era Martin. Ele dormia na parte de baixo da beliche e eu na parte de cima. Martin trouxe uma televisão e alegria de viver com simplicidade. Compartilhávamos algumas refeições (ceviche, uns mexidos que eu fazia e outras coisinhas mais), psicotrópicos recreativos e sucos, principalmente chicha morada. Martin havia trazido leveza e vida comunitária para um lar que antes era dividido entre o quarto do playboy (o terceiro morador, que habitava o quarto real) e o resto, que era um grande vazio, porque eu praticamente morava na biblioteca da UnB e, antes de Martin, meus colegas de beliche eram muito ausentes. Um vivia em imersões em trabalhos de campo, no meio do mato, para seu mestrado e o outro era uma pessoa seca, esturricada, absurdamente miserável, avara, anal, altamente controlada e limitada, com a qual não era possível ter uma troca que me tirasse do deserto no qual eu ainda resistia em respirar.
Vejo aqui que hoje o aluguel de um apartamento desses está por volta de R$ 1200. O playboy pagava metade e o condomínio era dividido por 3. Resumindo: se fosse hoje eu ganharia 1,5 mil de bolsa de mestrado e pagaria 450 reais para morar (aluguel mais condomínio). Bastava eu pegar uma folha de papel, escrever “Vaga em república, na 412 sul! Aluguel + condomíno = 450 reais!”, e pregar em alguns murais da UnB, que logo aparecia alguém.
Lembro que eu estava em Ribeirão, em algum feriado de 1997, e recebi o telefonema de alguém que queria a vaga. Eu nunca tinha visto a pessoa, nem tinha referência alguma do sujeito, e aceitei. Não havia nada de valor que alguém pudesse me roubar.
Eu vestia camisetas promocionais de políticos ou lojas, tinhas poucas roupas, somente um ou dois pares de tênis, meu colchão era uma espuma, anteriormente usada por anos a fio por um idoso, que morrera, dois anos antes, e aquele colchão acabou se tornando meu gostoso repouso, que eu havia trazido de Ribeirão, junto com minha Caloi 10 1976 (com guidão de Ceci), enrolado e pendurado em meus ombros com uma corda (a mochila num ombro e o colchão no outro), em cima da bicicleta, da rodoferroviária do Plano Piloto até a 412 sul, em março de 1997.
E 1997 foi um ano bem difícil, com minha lembrança culminante de angústia e solidão quando, não aguentando mais, resolvi pegar minha Caloi 10 1976 e cruzar o Plano Piloto, lugar no qual nunca mais quero morar. Saí da 412 e fui devagarinho me dirigindo para a Asa Norte. Objetivo: conhecer as garotas de programa da 315 norte, sem saber que 12 anos depois eu iria morar bem em cima delas, na 715 norte.
A carência era tanta que eu imaginava que uma garota de programa poderia me resgatar. Mas eu nunca havia passado uma noite com uma delas, apesar de sempre ter sentido uma curiosidade enorme. Então, em pleno domingo à noite, exatamente na hora em que o Fantástico estava passando, eu vagarosamente me dirigia para a 315 norte, uns 15 quilômetros de minha casa.
Depois de cerca de uma hora cheguei por fim à 315 norte, e as meninas estavam lá, esperando pelos clientes. Algumas eram lindas, transbordavam charme e volúpia. Mas tive coragem de somente apreciá-las ao longe, meio escondido, amparado por minha Caloi 10, de 20 anos de idade.
Engoli minhas palavras, meu desejo de interação, e voltei para casa. No caminho, na contramão da Via W2 Norte, e da vida, eu olhava para os apartamentos e para inúmeros prédios de Brasília e pensava:
“Ninguém, absolutamente ninguém aqui nesta cidade me conhece, e eu nem tive a coragem de conversar com uma garota de programa. E as garotas de programa são seres tentadores, com as quais nunca interagi mais do que alguns minutos nessa vida. Nunca conheci uma garota de programa. Somente soube uma vez de uma delas, de seu nome de guerra, e de seu convite: “e aí, meu querido, tá a fim de um programinha?”, numa noite perdida em 1988, quando eu tinha 16 anos de idade, logo após ter sido espectador de seu show de strip-tease, em um prostíbulo, afastado da cidade, para onde um amigo de 19 anos havia me levado, juntamente com Edu, meu finado irmão, que tinha 18. “Obrigado, mas não tenho um tostão”. E era verdade. Estávamos ali de bico.
Eu voltava pra casa, sozinho, numa noite de domingo, tarde da noite, de bicicleta, na contramão da rua, da alegria e do prazer, vendo que Brasília era imensa e completamente fria a qualquer tentativa minha de habitá-la com um pouco de meu afeto, de meu desespero em ter ali um pouco de amor...
* Fotos ilustrativas de como eram mais ou menos meu quarto, da beliche, e minha bike, que na verdade era azul.