Em 2012 e 2013 acompanhei o caso de um paciente, no CAPS, o qual muitas vezes me impressionava. Tratava-se de um homem, com 38 anos, de aparência forte, que talvez pudesse despertar em algumas pessoas até um pouco de temor.
Tinha umas marcas na testa, de quem forçou muito a expressão com preocupação ou com raiva. Essas marcas já estavam congeladas na fronte, de uma forma profunda. Tinha uma aparência forte e rude, e essas marcas de expressão já permanentes e aprofundadas em seu rosto.
Quando o vi pela primeira vez imaginei que fosse alguém que já tivesse algumas passagens pela polícia, com um histórico de violência. Contudo, quando lhe dirigi algumas perguntas, no grupo, seu tom de voz e sua postura entraram em completa contradição com aquela aparência física forte e rude.
Muitas vezes trazia no pescoço um cordão, com uma cruz de madeira de uns 10 centímetros, e uma camiseta representando algum santo católico. Falava bem pausadamente e em um volume muito baixo. Falava para dentro, de modo muito tímido e discreto. É ainda, até hoje, alguém que não se faz ouvir. Aparência de predador e comportamento recolhido, inibido, de presa, de quem sempre foi oprimido, marginalizado, esquecido, negligenciado.
Portador de epilepsia, desde criança, mesmo com estrutura física potencialmente muito forte, é alguém que foi esmagado pelas condições adversas a que foi submetido durante seu percurso pela vida, tanto em nível fisiológico quanto social.
É uma pessoa muito diferente, assim como muitas pessoas que aparecem para serem atendidas, acolhidas ou acompanhadas pelo CAPS.
É alguém que não reage, não agride, não revida. Viu e está vendo a vida passar, e nunca se sentiu forte o suficiente para fazer alguma coisa que pudesse alterar sua condição constantemente precária no contato com as pessoas e com a realidade.
Uma epilepsia, mal cuidada, negligenciada, parece ter destruído ou arruinado com boa parte de seus desejos, projetos, sonhos ou a participação mais ativa que ele pudesse ter tido no mundo e na vida das pessoas com quem convivia.
Veio para Brasília aos 16 anos, do interior da Bahia. Até então morava na roça, na qual começou a trabalhar com menos de 10 anos de idade, ajudando seu pai. Foi uma criança que teve boa parte de seu desenvolvimento psicomotor comprometido tanto pela epilepsia quanto pela pobreza.
Em Brasília enfrentou, durante anos, o subemprego em serviços braçais. Uma vida permeada por crises convulsivas frequentes, privação de sono (insônia) e sua relação com o mundo comprometida nos mais diversos níveis. Uma vida precária e sofrida. Um sofrimento que sempre se expressou pelos cantos invisíveis aos quais foi relegado. Uma vida massacrada pelo peso do mundo e que estava ali agora diante de mim, em um grupo de fala, com sua voz quase inaudível e seu olhar tímido e terno.
Após sua chegada à Brasília permaneceu alguns anos na casa de um de seus irmãos. Contudo chegou um momento em que seu irmão e sua esposa fizeram com que ele saísse dali para morar em outro lugar. Começou a trabalhar (em serviços gerais) e a residir nas dependências de uma igreja católica. E assim permaneceu durante nove anos.
Teve, durante nove anos, uma vida medieval, a vida que muitos monges têm, contudo sem qualquer tipo de título. Uma vida monástica para alguém ao qual nunca foi atribuído o título de monge ou sacerdote. Acordava todos os dias bem cedo e começava seu trabalho de limpeza e arrumação em um templo. E tudo aparentemente de modo solitário. Limpar, arrumar, colocar em ordem, cortar a grama, podar plantas, pintar o que tivesse de ser pintado, ter uma pausa para uma refeição e oração, voltar ao trabalho para mais uma rotina de atividades, mais uma pausa para o jantar e oração, recolhimento, mais uma oração e dormir, ou ter uma noite atormentada, assombrada por convulsões e insônias e os mais diversos fantasmas que podem acometer alguém que tem uma disfunção cerebral profunda.
Uma vida bovina, obediente, recolhida, quieta e invisível. Uma vida que muitos diriam que está sendo profundamente devotada a Deus.
Após nove anos nessa rotina de trabalhar e morar dentro de uma igreja chegou o momento em que isso também se esgotou, e o padre passou a procurar um outro lugar para que ele pudesse morar.
Nove anos antes disso tudo, um menino, de 9 anos de idade, cuja mãe frequentava a igreja, fez amizade com ele. O pai dessa criança havia tido uma queda há pouco mais de um ano (em 1998) e estava em estado vegetativo (ou algo similar isso) no qual permanece até hoje.
Seus pais já estavam separados há algum tempo, antes mesmo dessa queda, porém essa criança sentia muita falta do pai. Esse menino sentia profundamente a falta de um pai. Frequentemente brincava nas proximidades da igreja. Assim acabou conhecendo e fazendo amizade com José (vou chamar meu personagem principal pelo nome fictício de José), e um dia o convidou para irem juntos até sua casa, para que ele apresentasse José à sua mãe.
Chegando em casa abriu a porta e comunicou à mãe que havia trazido um amiguinho para almoçar com eles. Iara saiu da cozinha e foi até a sala para ver quem era a outra criança, o amiguinho de seu filho com qual iriam almoçar, e se deparou com um homem de estrutura forte e aparência rude.
Estranhou um pouco a amizade de seu filho, uma criança de 9 anos, com um homem de aparência rude e forte, o qual ela já havia visto por várias vezes nas dependências da igreja, trabalhando.
Era José. Ela sabia que José era funcionário da igreja, sabia que ele morava dentro da igreja, mas não tinha mais nenhuma informação sobre quem era José.
Iara era uma maranhense, cujo olhar e voz serena despertavam ternura e um sentimento de tranquilidade em quem quer que tivesse contato com ela. Possuía traços indígenas. Era uma pessoa muito amorosa, muito dedicada a crianças e aos seus dois filhos. Gostava de cuidar de crianças, gostava de cuidar de pessoas.
José se transformou em um amigo da família, o qual algumas vezes ia lá com Tiago, filho de Iara, passar algumas horas dividindo uma refeição ou então assistindo a algum programa de televisão.
José sempre foi aquela pessoa muito quieta e passiva, a qual era completamente invisível para a maioria das pessoas desse mundo, porém despertava profundo carinho em algumas outras, tais como Tiago e Iara.
A amizade entre Tiago e José se aprofundou ao ponto de Tiago pedir a José para ser seu pai. José aceitou. Não tinha a mais ninguém nessa vida. Não recebia amor. Não sabia direito o que era isso, e esse sentimento, vindo de uma criança, foi para ele um presente de Deus.
Além de Tiago, Iara também era mãe de Rodrigo, com 7 anos de idade. Agora a família tinha um amigo. Um amigo diferente, que sempre estava presente, com sua existência discreta, com sua presença sutil e constante. José lhes fazia companhia como um bichinho: pouco falava mas estava ali, sempre por perto, em sua fidelidade às pessoas que lhe estenderam a mão no deserto afetivo que vinha sendo sua vida até então.
E assim mais 9 anos se passaram, até que chegou o dia em que o padre também começou a pressionar e a tentar fazer com que José deixasse de morar nas dependências da igreja. José contou para seus amigos o que estava acontecendo, e eles não hesitaram em convidá-lo para ir morar em sua casa.
Agora havia então um novo membro na família. José ainda tinha muitas dificuldades, para dormir ou mesmo a série de dificuldades que costumam acometer as pessoas que têm convulsões frequentes.
José é uma pessoa que não consegue comunicar com facilidade o que está sentindo, principalmente se esse sentimento for raiva. Isola-se em algum canto e começa a chorar compulsivamente e a rasgar as próprias roupas. Adentra um estado que parece ser uma mistura de seus ataques convulsivos com uma crise de angústia com aspectos autísticos.
Contudo, em sua nova família, encontrou quem acolhesse seu sofrimento, quem compreendesse sua dor. Encontrou amor.
José sempre demandou cuidados, mas era um membro amado dessa família, e eles sempre o acompanharam em suas consultas médicas ou no CAPS.
Iara era quem mais o acompanhava nas consultas, e para tudo o que ele precisasse, em função de suas necessidades, de certo modo, especiais. Sempre se comportou como se fosse sua irmã mais velha. Iara, com seu olhar sereno, e sua fala mansa e pausada, sempre foi uma pessoa naturalmente simpática. É uma mulher que também carrega o peso e a consistência de uma história peculiar e repleta de fatos inusitados. É alguém que aprendeu a esperar, que sabe muito bem o papel do tempo como um obreiro primordial. Iara sabe deixar o tempo passar, fazendo-o contar e ventar a seu favor. Sua vida nunca andou de vento em popa. E muitas vezes andou até para trás. Mas ela aprendeu e recebeu muito mais da vida esperando do que agindo de modo precipitado.
Já se foram 9 anos de convívio, e nesse período José tem dependido bastante de Iara. É praticamente como se fosse seu terceiro filho. José foi adotado por Iara. Essa é a verdade.
Fiquei, contudo, mais de um ano sem vê-los. Há poucos dias, em um plantão noturno, cheguei, peguei minha agenda, e fui observando os nomes e as datas de nascimento para poder pegar os prontuários e iniciar o que estava marcado. Para minha surpresa estava lá o nome de José, o qual identifiquei prontamente. Meu vínculo com ele sempre foi marcado por apreço e simpatia mútuas.
Cheguei à sala de espera e percebi que ele estava com Iara:
- Quanto tempo que não vejo vocês! Como é que estão as coisas?
- Adriano, que bom que marcaram essa consulta com você! Eu sentia falta de nossas conversas. Tanta coisa aconteceu... Eu tive cegueira, devido a diabetes, e perdi completamente a minha visão.
Adentramos o consultório do CAPS, e passei a ouvir o que pude de todos os acontecimentos que se deram desde a última vez em que os vi, assim como também comecei a coletar um pouco mais de seu histórico.
Fiquei surpreso, e achei muito comovente esse novo fato, o fato dela agora estar completamente cega. Fiquei apreensivo, imaginando que a qualidade de vida deles agora estaria em um nível bem mais baixo do que da última vez em que nos vimos.
Sim, em muitos aspectos a vida da família ficou muito mais difícil. Porém, apesar de todas as dificuldades, José agora se encontrava mais estável. Vem, há cerca de dois anos, comparecendo com regularidade às aulas de yoga, as quais são ministradas voluntariamente por um senhor que emigrou da Estônia para o Brasil há cerca de 20 anos: um idealista que investe boa parte de seu tempo na tentativa de difundir a prática de yoga no Distrito Federal.
- Pois é, Adriano, apesar de todas as dificuldades, José vem caminhando com mais estabilidade. Ele tá fazendo yoga. Ele gosta, e faz muito bem pra ele. Mas o problema agora é esse, agora quem precisa de ajuda sou eu. Agora é ele quem tá também cuidando de mim. Agora um cuida do outro...
PS: Os nomes usados nessa narrativa são fictícios, e todos os detalhes que pudessem identificar as pessoas mencionadas foram ocultados. Esse texto tem a autorização e a aprovação das duas pessoas mencionadas para ter sido publicado aqui nesse espaço.
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