Tuesday, October 17, 2017

ATRÁS DA MONTANHA (um romance inacabado, que jamais será publicado)

1.
Antes dos 30 anos de idade eu vivia atrás de uma montanha de sonhos, medos, e o ímpeto de tragar o mundo inteiro de meu desespero em viver para o abismo de querer aproveitar cada segundo da existência em êxtase ou martírio.

Em um dia de outono atravessei boa parte da noite acordado, respirando o silêncio na boca escura do pavor de saber que a vida pode se desfazer a qualquer instante, que a possibilidade de não estarmos mais aqui pode arder no peito, mas isso só faz sentido mesmo ali deitado na cama, parado, a contemplar o terror parado do ar, o fim de tudo, em lampejos de quem somente está mergulhado na ausência das coisas sem vida.

Olhei para o relógio e ainda eram 4:11. Troquei várias vezes de posição, lutando por mais um fiapo de sono, de estórias, de navegação pelo mundo que embalava meus dias. Minha cama macia e quente, e dormir, eram meu refúgio. Era o que ainda me restava para ser feliz.

Mas o sono não vinha. Insistia em não mais aparecer. O que começava a me contaminar naquele instante eram as mesmas divagações de outrora, ideias que nasciam num porto de alegria e naufragavam dias depois, aquém da arrebentação de meus oceanos de sonhos, de meu desejo torto de um dia poder atravessar a montanha de minha dor em existir.

Pensei: preciso voltar a fazer terapia, preciso voltar para o canto escuro de mim mesmo e tatear todas as voltas que o coração, perdido e tonto, pode dar. Preciso do colo de uma mulher que seja paga para me amar, de uma mulher que tenha hora e compromisso em estar comigo, de não ter vergonha em saber - depois de muito quebrar a cabeça e a cara na parede das teimosias do espírito reduzido, míope – que o amor também pode ser comprado na esquina em que cada ser humano pode um dia barganhar suas misérias e feridas.

Assim, pensei: volto pra terapia! Quero deitar meu drama na prosa sem rumo em que me perco quando encontro aquele amor que me dilacera em palavras e devaneios de possui-la no canto quente e suave da vida, escondida ali, no escuro, bem ao pé da montanha em que brota meu desejo em ainda construir uma existência imensa e totalmente fora do ponto em que venho cozinhando minha história e mediocridade.

Pela manhã eu era imensidão a acordar com os pássaros. Durante a tarde era vacuidade e desespero no limite entre olhar o abismo de que tudo tem fim ou a indiferença do consolo em saber que um dia todos seremos esquecidos.

Tinha 27 anos de idade, e há muito tempo carregava no espaço vazio de minha existência escura a constante ideia, em carne viva, de que tanto fazia estar vivo ou morto.

Desde a adolescência não conseguia navegar meus pensamentos de outro modo, longe do porão turvo de ideologias sobre o qual vinha construindo o edifício de minha alma.

Se me dissessem assim: “você vai morrer com um tiro na nuca”. Se me garantissem que a morte fosse instantânea, como o desligamento repentino de tudo, meu sentimento seria marcado também por uma certa indiferença. Provavelmente ficaria muito tenso, temendo o tiro, a dor, a explosão, o impacto arrebatador do projétil. Porém, existencialmente, em relação à vida, nada me colocava em outro ponto além de meus desejos mórbidos.

A infinitude do universo, seus mistérios cintilantes, surdos, escuros ou o absurdo de qualquer realidade inconcebível, somente alimentavam meu desejo de voltar a não existir, como um dia já fora, antes de meu nascimento. A imensidão de tudo tragava meu espírito para a boca dos ímpetos mais animalescos a querer dar cabo de mim mesmo ou lançar a existência aos seus cumes imprevisíveis e incontroláveis. 

Era um homem (apesar de nunca ter me sentido como homem algum) que carregava nos ombros o peso de uma história desprezível, e também a inveja dos mais miseráveis com quem me defrontava nos rincões tristes de saber que a realidade da vida era tão injusta e o sofrimento a experiência primeira de nossa colisão brutal com a existência. 

Meu sentimento era o de que existimos tão pouco na existência de tudo. E existimos demais para nós mesmos. Não me suportava. Não dava conta da luta voraz que explodia em mim, a querer devassar o campo flagelado de minha sanidade.

Eu tinha uma bicicleta velha, tão velha quanto meu desejo de ficar quieto no canto silencioso e quente de uma vida simples no campo, em uma natureza que me abraçasse ou me deixasse morrer sem muito alarde ou ressentimentos. Tinha uma bicicleta de trabalhador braçal, de quem acorda cedo todos os dias para conquistar o mundo com os músculos, sentindo-se útil em algum plano, mesmo que essa utilidade somente seja usada para perpetuar desigualdades ou truculências, mas jamais para se construir castelos no ar.

Peguei minha bicicleta e perfurei o vazio e o silêncio da noite. Era meu desespero a cortar o vento das angústias que sacrificavam a minha paz. Era meu rosto a beijar o ar gélido da noite. Era eu, veloz, louco a pedalar sem fim, para estourar meus pulmões e meu coração, a cortar a madrugada com a navalha de minha asfixia em não saber viver. Que pedalasse até meu último suspiro, que pedalasse para dar um basta em tudo.

Pedalei 7 quilômetros e voltei para casa um pouco mais leve, um pouco mais aliviado. Foi meu desabafo solitário, minha vingança para com a minha própria ruminância já exausta, cansada de sempre quebrar a cara na vidraça de minhas obsessões e cegueiras de espírito. 

Meu horizonte agora era contar os dias em que ainda era possível permanecer, em que ainda era possível levantar e caminhar, mesmo que a passos quase imóveis. Era necessário esperar, esperar mais um pouco e deixar que a pressa em viver culminâncias ficasse calada, que minha juventude fosse também queimada na fogueira de um mundo que sempre trabalhou moendo brilhos, oportunidades e luzes no horizonte, para saber que a vida não vale nada nem tem sentido, mas que também talvez não me restasse outra alternativa a não ser continuar, por amor a quem ainda insistia em me amar.

Pouco a pouco e diariamente minha sanidade era moída pela ideia de que era um estorvo na vida de minha família. No abismo de mim mesmo somente era capaz de me conceber como um erro, como um furo na coerência do mundo. 

Contudo, apesar da falta de horizontes, eu sabia também que precisava trazer um pouco mais de promessas de amor para dentro da casca miúda de meus sonhos, caso não tivesse a sorte de morrer de uma vez.

Não existe filosofia que anestesie e a busca por sentido é a pior das armadilhas diante do sofrimento. Era de certo modo pueril e superprotegido por um histórico de quem se afogava em seu próprio sofrimento ou vivia de sobrevoar o sofrimento alheio. Então constantemente me revoltava com as dores do mundo. Queria inutilmente compreender por que o sofrimento existia. Era demasiadamente dolorosa a percepção de que além de viver a minha própria agonia também sofria pela agonia dos outros.

E pior, sem saber, também padecia de uma autocomiseração ridícula, vergonhosa, a qual constantemente sussurrava seus vereditos:

“Solidão, esse sempre foi o meu nome, minha identidade diante de nunca ter encontrado qualquer reflexo amoroso para o povo faminto de meu rosto no espelho da vida. Vinte e sete anos e sou somente capaz de me conceber como um velho, como alguém que desperdiçou a vida a buscar equivocadamente pelo amor nos lugares errados, nas vilas do desprezo e da dor.”

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