Há, no meio acadêmico, um debate a respeito da classificação dos transtornos mentais, se podem ou não ser considerados doença.
Existem teóricos que defendem que os transtornos mentais são doenças, assim como existem aqueles que defendem que não são. Quem defende que não é doença argumenta que um comportamento específico, considerado inadequado para um determinado padrão sociocultural, não é da mesma natureza, por exemplo, que um fígado ou um rim que não está funcionando bem.
Thomas Szasz, um desses teóricos, inclusive faz uso do exemplo do “escravo fujão”. Durante a escravidão, nos Estados Unidos, houve uma época em que os escravos que frequentemente fugiam eram classificados como doentes. Segundo Thomas Szasz esses escravos tinham o diagnóstico de uma doença mental: drapetomania.
A proposição de Thomas Szasz é impactante. Ela deixa claro que a definição do que é ou não um transtorno mental possui variação sócio-histórico-cultural, que comportamentos fora de um determinado padrão talvez não possam ser considerados doença, porque possuem uma natureza totalmente diferente do que é comumente classificado como doença.
Jerome Wakefield, por sua vez, é um autor que propõe uma aproximação do conceito de transtorno mental ao conceito de doença. Para Wakefield são patológicos os sintomas que produzem disfunções danosas. Então o diagnóstico de transtornos mentais implica em elementos factíveis, que seriam essas disfunções, assim como em elementos valorativos, referentes ao que é desejável ou conveniente a um determinado contexto ou grupo social.
Essas disfunções, de modo geral, seriam danosas para a própria pessoa que as vivencia. Se uma pessoa, por exemplo, está tendo visões de criaturas demoníacas (ou espíritos), as quais outras pessoas não estão tendo; se essas visões vêm comprometendo sua rotina, se isso vem atrapalhando demais a sua vida, impedindo-a de sair de casa, de fazer o que a maioria das pessoas faz para poder sobreviver, e se isso, por exemplo, implica em riscos para a sua vida, logo há uma disfunção que é danosa para a própria pessoa. Logo essa pessoa está doente.
O problema é que, mesmo segundo a proposta de Wakefield, não há como afirmar que transtornos mentais sejam simplesmente doenças pois, mesmo com a existência de disfunções, o elemento valorativo também está sempre presente, influenciando de modo significativo a intensidade e perpetuação dessas disfunções.
Contudo uma série de sintomas disfuncionais são muitas vezes disfuncionais em um determinado contexto social e não em outros. É o que nos mostram claramente áreas como a Antropologia, a Sociologia e a História: o comportamento (sintoma) não funciona, não é útil, em um contexto social específico, em um determinado tipo de sociedade, mas pode funcionar em outros contextos. Visões de espíritos podem atrapalhar bastante alguém que as tem enquanto está dirigindo, porém podem ser concebidas como totalmente adequadas e funcionais no contexto de alguns rituais religiosos. Pessoas com esse tipo de relato, de visão, passam a ser valorizadas nesses contextos, e assim assimiladas com mais facilidade à vida social.
Em termos teóricos não vejo muitos problemas na concepção de que os transtornos mentais são doenças, porque de fato existem elementos que justificam esse tipo de classificação.
Contudo penso que os problemas começam a brotar nos contextos sociais de afirmação desse tipo de classificação. Quando um leigo diz que padece de um transtorno mental acaba geralmente carregando junto as concepções mais tradicionais e simplórias do que seriam as doenças: “é algo que tenho, que me tomou de assalto, que surgiu de repente, sem a minha participação, pois a gente não escolhe quando vai ficar doente...”
E é exatamente nesse ponto, nesse nó, que os transtornos mentais são muito diferentes do que popularmente se concebe como sendo uma doença. Não surgem de repente e não tomam, como uma infecção, uma pessoa de assalto. Possuem um histórico, do qual as pessoas geralmente estão longe de se dar conta, e ficam ainda mais longe quando somente são capazes de pensar que possuem um transtorno. Como se os transtornos fossem simplesmente doenças...
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