Hoje acordei de repente, às 4 da manhã. Minha filha chamava por mim - coisa rara, pois ela acorda todas as manhãs por volta de 5:30, e sempre chama pela mãe. O chamado dela interrompeu um sonho que tenho tido repetidamente, de variadas formas, há quase 20 anos. São sonhos com meu finado irmão, Edu (morto em 1998), cuja data de nascimento é a mesma que de minha filha. Ambos nasceram em 23 de janeiro. Ontem Luisa completou 3 anos e 8 meses e Edu completaria 47 anos e 8 meses.
São sonhos com personagens e ambientes que se alteram, porém o enredo é sempre o mesmo, desde 1998: Edu repentinamente, e sem qualquer tipo de explicação, retorna para a vida, para o convívio conosco. E no sonho eu sempre estou ali, rondando, preocupado, tenso demais com a possibilidade de que ele possa se matar novamente.
No sonho dessa noite ele está de volta, porém com uma aparência física muito mais forte: Edu agora tem a forma de um robusto lutador de MMA. Apesar da nova forma, robusta, eu sei que Edu ainda tem uma fragilidade que carrega, com peso, muito peso, em seus olhos verdes azulados, em seu olhar, que pede ajuda pra mim. Estou correndo atrás dele, preocupado. Acabara de fugir de um sujeito, colega, vizinho, que ameaçava bater nele.
Como dizíamos na infância e adolescência: “Edu abundou”, refugou, fugiu da briga, ficou com medo. E isso era motivo de grande humilhação, de sofrimento moral em nossa infância e adolescência. Era uma escolha muito dura: "abundar" ou correr o risco de ser duramente espancado, o que infelizmente ocorreu uma vez com Edu, ao sofrer uma surra, aos 12 anos, de um adolescente bem maior, com 15 anos de idade. Chegou em casa com o rosto todo machucado. E, pior, a mãe desse adolescente ainda veio até nossa casa para saber quem havia espancado o filho dela o qual, logo depois de espancar Edu, fora espancado por adolescentes que assim o fizeram para defender meu irmão. Justiça pelas próprias mãos, desde a infância: coisa corriqueira na periferia.
Então, voltando ao sonho, Edu agora era um “pitbull” (tinha estrutura física típica de lutadores de MMA), mas morrendo de medo de outro “pitbull”, que o perseguia pelas ruas, e eu também estava ali, seguindo tudo de perto, para lutar com qualquer pitbull que aparecesse. O problema é que Edu já estava longe, bem longe de mim e de todo mundo. Edu correu muito, muito, e se desprendeu de todos nós.
Para fugir desse “pitbull” que estava mais próximo de mim e de todo mundo, Edu correu muito, já não fazia parte do que estava aqui. Edu já estava noutra, em outra parte da cidade, em outra realidade.
Já era noite e a cidade era perigosa. Corri como pude, e também acabei me afastando de todos, em busca de Edu. E não teve jeito, fui parar na periferia de tudo, num buraco, em um local que tinha cheiro de grama, misturada com terra e bosta de cachorro.
Era a periferia de alguma cidade no Haiti. Edu tinha ido buscar socorro, paz, um pouco mais de ar para seu espírito sufocado, em um agitado ritual vodu, o qual acontecia ao ar livre, em um terreno baldio, abandonado, que tinha um cheiro forte de grama, misturada com terra e bosta de cachorro.
Quando cheguei, o ritual já estava no final. Parecia ser o clímax do evento. Os instrumentos de percussão estavam a todo vapor, e minha entrada, clamando por Edu, praticamente chorando, chamou a atenção, quebrando um pouco o ritmo e atrapalhando a concentração de todos que estavam no local.
- Edu...! Edu...! Vamos embora pra casa comigo, por favor...
Perceberam minha chegada, porém ninguém se manifestou, procurou por Edu, ou respondeu ao meu chamado, apontando a direção para onde ele pudesse estar. O ritual, aparentemente caótico e lotado de pessoas e animais, seguiu sua ordem perfeitamente ritmada e louca, em meio às piores atrocidades que podem acometer aos seres vivos que nesse mundo resistem.
Procurei em meio à multidão, em meio ao caos, e não o encontrei. Mas eu sabia que ele estava ali, em busca de ajuda, de paz.
Como cheguei no final do ritual, em poucos minutos já havia acabado e um volume muito grande de pessoas começou a debandar. Fui levado pelo movimento da multidão, pelas ruas de uma cidade em ruínas, quando de repente esse sonho foi interrompido por minha filha chamando por mim.
Quando Edu morreu eu já fazia mestrado aqui na UnB. Ninguém foi capaz de evitar sua morte, nem mesmo eu, que tinha talvez um pouco mais de conhecimento do que a maioria das pessoas para assim poder proceder.
Hoje tenho uma capacidade para atuar em prevenção ao suicídio que é muitíssimo superior àquela de 20 anos atrás. A própria morte de Edu atuou também, de certo modo, como parte fundamental em meu aprendizado nesse quesito.
Creio que eu jamais deixarei de ter esse sonho, no qual ele retorna, no qual está novamente entre nós. Daqui a seis meses completarão 20 anos que ele se foi, e continuo tendo o mesmo sonho, repetidas vezes.
Porém hoje sou capaz de ajudar as pessoas como não fui capaz de ajudar meu irmão. Edu de certo modo renasce em cada pessoa a qual sinto que tenho condições de ajudar. Renasce quando percebo a fragilidade nos seres que dependem, de algum modo, de meu profissionalismo ou de meus atos de amor.
Porque em grande parte o sentido da vida é esse: poder dar e receber amor, poder, na medida do que nos for possível, fazer bem para os seres vivos desse mundo.
Brasília, 24 de setembro de 2017
Brasília, 24 de setembro de 2017
No comments:
Post a Comment