Acordo, na estrada. Pela janela vejo campos imensos, distâncias que ainda não sei como ver. Como pode a vista ir tão longe? E o céu, invadido pelo fogo da aurora, imenso pai iluminado arrastando nuvens, nos abraça a todos. “Estamos perto de Brasília”, diz o motorista. Espero, com o olhar perdido na multidão infinita de arvorezinhas retorcidas e o jeito de savana do cerrado. Estas árvores, esta terra, quanta terra... Brasília está no meio da terra? Do planeta? Ou do Brasil? Não sei, a geografia que aprendi na escola não foi capaz de transportar meus olhos para cá.
Por que construiram a capital desse imenso país no meio do mato, do sertão, no meio do nada? Para afastar o poder político dos grandes centros? Para povoar o Brasil, garantir a guarda de nossas fronteiras? Levar desenvolvimento para o interior? Levar desenvolvimento para o “interior” é se isolar no meio do mato, como queriam os românticos? Isso, fujo de tudo e monto minha vida no sertão. Vou meditar por quarenta dias no vazio do deserto para desenvolver o meu “interior”. E o interior do cerrado é cheio de vazios. Adentrar o cerrado é continuar de fora. E o que o cerrado tem dentro nem o fogo alcança. São aquelas plantas que plantam sementes que sobrevivem ao fogo. Tudo se esvai e se desfaz com o fogo e com a seca e estabelece uma espera latente até um novo despertar de vida pelas chuvas. Existem contudo as flores da seca, desafiadoras, esplendidamente audazes, mártires da beleza, iscas que heroicamente pescam vida no seco da natureza do cerrado. Elas brotam repentinamente no vazio da seca para lançar seu explosivo espetáculo de vida. O carnaval da seca dos seres do cerrado são essas flores e seu desafio à morte.
Ainda estou na estrada e ainda não chegamos à Brasília. Vejo algumas casas, quase-cidades. Cidades? Brasília na TV é de vidro e mármore, chão incerado e frio, e muita luz, talvez muito calor. Tive medo do calor. Não gosto de calor. Contudo, uma amiga me garantiu que o clima era ameno e menos quente do que no Rio. Pensei, vamos ver como é. Olho para a janela e estão lá as árvores “pixaim”, nanicas e retorcidas, com terra e algum mato em volta. Na televisão Brasília é de mármore branco e vidro lustroso. Como pode esta terra? Lembrei de Caetano cantando “eu sou neguinha”. Não importa o disfarce, Brasília é Brasil, Brasília também é “neguinha”. Uma neguinha tecno, plugada no mundo e no cosmo. Uma, diríamos, globalizada “globeleza”, do interior, que esqueceu do samba.
Pronto, de satélite em satélite, chegamos. Eixo monumental, rumo à esplanada. Quanto carro, quanta pista em volta? Onde estão as casas, as pessoas? Nada. Afinal, a cidade começou ou não? Já estamos no Plano Piloto? E por que está tudo tão vazio? Brasília é assim, vai começar, vai acontecer, e não acontece, “ia”? “Brasíl-ia”, o Brasil que “ia”, mas não foi? Não, é o seguinte, todo o grande espetáculo começa com um certo atraso. O aumento de expectativas faz parte do acúmulo de energias a ser liberado no grande acontecimento. Então é isso, Brasília ainda não foi? Era para ser e não foi? É somente um sonho? Não, calma. O problema é somente terminológico. Ordem e progresso são coisas que não se efetivam com uma simples bordada na bandeira nacional. Brasília é somente um nome. Quer ele se pareça com “Bras-ilha” ou com um projeto frustrado, continua sendo somente um nome. Se tudo isso “ia” ou “é”, no nome, não importa, a emenda pode ficar pior que o soneto. Se trocássemos o “ia” frustrado pela efetividade do “é”, teríamos Brasilé, e isso ia dar em chulé. Já pensou: “eu sou de Brasilé e você, de onde é?”. Evidente, todos logo percebemos, esse nome não soa bem, não possui ressonância com nada que seja elevado na língua portuguesa.
Por outro lado, temos também “Bras-ilha” e seus sentidos. Pois Brasília é uma ilha, é inusitada, única. Como muitos dizem, não há nada que se pareça com esta cidade, ela é ímpar. É uma ilha, uma porção de singularidades e vida pulsante, cercada de Brasil por todos os lados. Confluência de etnias, culturas, crenças, projetos e sonhos. Brasília é foz ou fonte dos sonhos do Brasil? Se for foz que seja o delta onde esses sonhos venham a florescer. Se for fonte, que os sonhos aqui semeados sejam paridos para o bem de toda a humanidade. Desde antes de nascer, Brasília “existe” sob o signo de profecias, como a de Dom Bosco, a dizer que iremos para o mundo, que estamos no centro e no alto. E Brasília sonha tacitamente em, um dia, projetar a sua existência e seus sentidos em todo o mundo, pois já disse Dom Bosco que daqui surgiria uma nova e rica civilização.
Tento escrever e homenagear a cidade, mas ela já foi projetada para ser uma homenagem a si mesma e aos sonhos da nação. Brasília é uma auto-homenagem monumental. Brasília aspira profeticamente a projeção, a irradiação de sua existência, a eternidade. Os projetos, as visões e as expectativas são às vezes messiânicos. Uma idéia latente em nosso amor incondicional pela capital é: Brasília irá, um dia, salvar a humanidade. Antônio Conselheiro talvez tivesse o mesmo sonho para Canudos. Não, o nosso messianismo latente é diferente, pois está calcado na racionalidade sistemática e “segura” da “modernidade”. Com a “modernidade” podemos exercer um ufanismo irônico ou um messianismo alegre e “esclarecido”.
Assim, chego à rodoviária do Plano Piloto. Agora sim, vejo pessoas, muitas pessoas. A rodoviária do Plano Piloto é assim, meio como o centro do centro, pessoas de quase todos os cantos da cidade, de pessoas de todos cantos do Brasil, passam por ali todos os dias. Olho para o horizonte e não acredito no que vejo, a esplanada, bem ali, na minha frente, perto das pessoas comuns da rodoviária. Vou até lá. Saí andando e pensei: “é logo ali”. Pra quê? Tive de andar muito mais do que imaginei. Não era logo ali, era lá. O ali é lá. Brasília é a capital do ali é lá. Esqueçam tudo o que disse, eu me enganara, o meu olho de estrangeiro ainda não sabe olhar para Brasília.
Por que construiram a capital desse imenso país no meio do mato, do sertão, no meio do nada? Para afastar o poder político dos grandes centros? Para povoar o Brasil, garantir a guarda de nossas fronteiras? Levar desenvolvimento para o interior? Levar desenvolvimento para o “interior” é se isolar no meio do mato, como queriam os românticos? Isso, fujo de tudo e monto minha vida no sertão. Vou meditar por quarenta dias no vazio do deserto para desenvolver o meu “interior”. E o interior do cerrado é cheio de vazios. Adentrar o cerrado é continuar de fora. E o que o cerrado tem dentro nem o fogo alcança. São aquelas plantas que plantam sementes que sobrevivem ao fogo. Tudo se esvai e se desfaz com o fogo e com a seca e estabelece uma espera latente até um novo despertar de vida pelas chuvas. Existem contudo as flores da seca, desafiadoras, esplendidamente audazes, mártires da beleza, iscas que heroicamente pescam vida no seco da natureza do cerrado. Elas brotam repentinamente no vazio da seca para lançar seu explosivo espetáculo de vida. O carnaval da seca dos seres do cerrado são essas flores e seu desafio à morte.
Ainda estou na estrada e ainda não chegamos à Brasília. Vejo algumas casas, quase-cidades. Cidades? Brasília na TV é de vidro e mármore, chão incerado e frio, e muita luz, talvez muito calor. Tive medo do calor. Não gosto de calor. Contudo, uma amiga me garantiu que o clima era ameno e menos quente do que no Rio. Pensei, vamos ver como é. Olho para a janela e estão lá as árvores “pixaim”, nanicas e retorcidas, com terra e algum mato em volta. Na televisão Brasília é de mármore branco e vidro lustroso. Como pode esta terra? Lembrei de Caetano cantando “eu sou neguinha”. Não importa o disfarce, Brasília é Brasil, Brasília também é “neguinha”. Uma neguinha tecno, plugada no mundo e no cosmo. Uma, diríamos, globalizada “globeleza”, do interior, que esqueceu do samba.
Pronto, de satélite em satélite, chegamos. Eixo monumental, rumo à esplanada. Quanto carro, quanta pista em volta? Onde estão as casas, as pessoas? Nada. Afinal, a cidade começou ou não? Já estamos no Plano Piloto? E por que está tudo tão vazio? Brasília é assim, vai começar, vai acontecer, e não acontece, “ia”? “Brasíl-ia”, o Brasil que “ia”, mas não foi? Não, é o seguinte, todo o grande espetáculo começa com um certo atraso. O aumento de expectativas faz parte do acúmulo de energias a ser liberado no grande acontecimento. Então é isso, Brasília ainda não foi? Era para ser e não foi? É somente um sonho? Não, calma. O problema é somente terminológico. Ordem e progresso são coisas que não se efetivam com uma simples bordada na bandeira nacional. Brasília é somente um nome. Quer ele se pareça com “Bras-ilha” ou com um projeto frustrado, continua sendo somente um nome. Se tudo isso “ia” ou “é”, no nome, não importa, a emenda pode ficar pior que o soneto. Se trocássemos o “ia” frustrado pela efetividade do “é”, teríamos Brasilé, e isso ia dar em chulé. Já pensou: “eu sou de Brasilé e você, de onde é?”. Evidente, todos logo percebemos, esse nome não soa bem, não possui ressonância com nada que seja elevado na língua portuguesa.
Por outro lado, temos também “Bras-ilha” e seus sentidos. Pois Brasília é uma ilha, é inusitada, única. Como muitos dizem, não há nada que se pareça com esta cidade, ela é ímpar. É uma ilha, uma porção de singularidades e vida pulsante, cercada de Brasil por todos os lados. Confluência de etnias, culturas, crenças, projetos e sonhos. Brasília é foz ou fonte dos sonhos do Brasil? Se for foz que seja o delta onde esses sonhos venham a florescer. Se for fonte, que os sonhos aqui semeados sejam paridos para o bem de toda a humanidade. Desde antes de nascer, Brasília “existe” sob o signo de profecias, como a de Dom Bosco, a dizer que iremos para o mundo, que estamos no centro e no alto. E Brasília sonha tacitamente em, um dia, projetar a sua existência e seus sentidos em todo o mundo, pois já disse Dom Bosco que daqui surgiria uma nova e rica civilização.
Tento escrever e homenagear a cidade, mas ela já foi projetada para ser uma homenagem a si mesma e aos sonhos da nação. Brasília é uma auto-homenagem monumental. Brasília aspira profeticamente a projeção, a irradiação de sua existência, a eternidade. Os projetos, as visões e as expectativas são às vezes messiânicos. Uma idéia latente em nosso amor incondicional pela capital é: Brasília irá, um dia, salvar a humanidade. Antônio Conselheiro talvez tivesse o mesmo sonho para Canudos. Não, o nosso messianismo latente é diferente, pois está calcado na racionalidade sistemática e “segura” da “modernidade”. Com a “modernidade” podemos exercer um ufanismo irônico ou um messianismo alegre e “esclarecido”.
Assim, chego à rodoviária do Plano Piloto. Agora sim, vejo pessoas, muitas pessoas. A rodoviária do Plano Piloto é assim, meio como o centro do centro, pessoas de quase todos os cantos da cidade, de pessoas de todos cantos do Brasil, passam por ali todos os dias. Olho para o horizonte e não acredito no que vejo, a esplanada, bem ali, na minha frente, perto das pessoas comuns da rodoviária. Vou até lá. Saí andando e pensei: “é logo ali”. Pra quê? Tive de andar muito mais do que imaginei. Não era logo ali, era lá. O ali é lá. Brasília é a capital do ali é lá. Esqueçam tudo o que disse, eu me enganara, o meu olho de estrangeiro ainda não sabe olhar para Brasília.
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