Friday, May 20, 2022

Tabefe

Infelizmente não posso dizer que a relação de meus pais com seus filhos, e entre eles mesmos, era algo sereno. “Eles brigam muito”. “Eles brigavam muito”. Era o que muitos dizem e diziam. 

Mas, desde muito cedo, minha relação com meu pai era a mais resolvida. Ele era meu inimigo e, pronto, estava resolvido.

Mas isso não quer dizer que ele sempre foi meu inimigo, ininterruptamente. Houve deliciosos momentos de trégua. E isso também posso dizer de meus dois irmãos. Meu irmão mais novo, por exemplo, que ainda está vivo, foi meu inimigo, clássico, durante toda a minha infância. Mas éramos inimigos que não se desgrudavam. Sabe aquela história de “eu odeio ele”, mas não vive sem? Pois é... Apesar de que eu nunca dizia que odiava nada nessa vida. Ódio e raiva eram palavras tabu pra mim até os meus 20 anos de idade. Eu nem sabia que às vezes sentia ódio. Nada disso era resolvido.

Era resolvido somente saber, ou somente ter para mim mesmo, que não eram meus amigos. Não dizia que tinha ódio, mas vivia diariamente, por anos, uma certa distância. 

Como já disse, essa distância por vezes desaparecia. Mas era uma espécie de constante, que marcava minha identidade, bastante atrelada à minha mãe desde tenra idade.

Meu pai era meu inimigo clássico, e minha mãe era minha referência de tudo. E isso teve força até meus 19 anos, quando anunciei a ela que ia sair de casa para, vejam só, para ir morar com ele no primeiro muquifo que aparecesse.

Mas isso é outra história. Quero aqui me concentrar em minha relação com meu pai e em algumas de suas excentricidades, as quais não eram poucas.

Me aproximei desse meu inimigo clássico com 8 anos e meio de idade. Já fazia um ano que Edu, meu irmão mais velho, ia com ele para o trabalho, todos os dias. Edu começou a trabalhar com 10 anos de idade, e não parou mais. A  partir dos 13 já trabalha integralmente, manhã e tarde, estudando à noite. E foi assim até os 18 anos, quando parou tudo para fazer cursinho, para depois estudar odontologia. 

Porque a vida do Edu foi desse jeito. Trabalhou dos 10 aos 18 anos. E aí, de repente, inventou de entrar na USP. Parou por dois anos. Estudou feito louco (e ficou mesmo louco) durante dois anos, durante os anos de 1988 e 1989, para passar no vestibular da Fuvest, e e entrar na USP em 1990.

Porém não posso me desviar com mãe ou irmãos. Porque esse texto é sobre meu pai.

Edu começou a trabalhar com meu pai em 1980. Um ano depois lá estava eu também, com pouco mais de 8 anos e meio de idade. Porque, para meus pais, trabalhar era importante, edificante.

Então, provavelmente numa bela manhã de fevereiro de 1981, lá fomos nós: eu, Edu e meu pai, de moto, para o trabalho. E ao andar em três numa mesma moto, o menor ia sempre no meio, prensado pelos de maior tamanho. Então eu ia no meio, com os pés balançando no ar (porque não havia pedaleiras para um terceiro passageiro), e segurando bem forte na barriga de meu pai. E todos, claro, sem capacete. Porque ninguém na minha cidade usava isso.

Meu pai era o funcionário mais velho de meu tio, que era 6 anos mais novo que ele. Meu pai era empregado de seu irmão caçula. Foi o herói desse irmão durante toda a infância dele. “Seu pai era meu herói, minha referência. Depois, não sei por quê, tudo se acabou...” – lembro-me de meu tio me dizer, quando eu já tinha uns 18 anos.

“Ele tem uma alma de menino, de moleque” – outros, muitos outros diziam sobre meu pai. “Mas não pode beber” – algum outro geralmente completava. 

Porque meu pai teve, muitas vezes, problemas com o álcool.

- Quando a gente ainda namorava, encontrei ele na rua, meio perdido, bêbado. Nem a Lambreta ele lembrava onde tinha deixado. Ele chegou a perder a Lambreta, vocês acreditam? – dizia minha mãe.

E Lambreta, para quem não sabe, era uma motoneta no estilo italiano, bem parecida com uma Vespa, porém a um custo bem mais baixo. Gente rica, ou de classe média alta, andava de Vespa. A pobraiada andava de Lambreta.

E como meu pai fazia um tipo um pouco rebelde, sua Lambreta tinha o adesivo de um capeta.

Ele tinha o currículo de um playboy pobre. E playboy pobre, naquela época, tinha alcunha mais precisa: jacu. Mas meu pai jamais aceitaria tal alcunha. Porque jacu, para ele, eram os outros. Ele tinha convicção de que possuía mais classe e elegância do que os jacus. Era calígrafo, ilustrador e, durante sua juventude, talvez se vestisse de modo que não o pudessem chamá-lo de jeca ou de jacu.

Sempre passava Gumex (fixador popular da época) em seus cabelos, era magro, esbelto, e um rapaz bonito. Como chamá-lo de jacu? Talvez algum jovem de classe média alta, estudante de Direito, e amante de MPB, se o conhecesse, até diria isso. Mas meu pai jamais seria um jacu entre os seus.

Então, em uma bela manhã, no início de 1981, lá fomos nós, os três, de moto, para o trabalho. Lembro-me bem. Meu tio tinha 14 funcionários, incluídos aí eu e Edu. Então eram 13 funcionários em turno integral, e eu e Edu somente no período da manhã. Fazíamos serviços de limpeza e entregas, cuja maioria se dava no raio máximo de um quilômetro de distância. 

Nesse ano de 1981, por um certo acaso, eu meu tornei o melhor aluno da sala, na escola. Minha mãe conseguiu imprimir uma rotina espartana. Acordávamos às 6:30 horas, saímos para o trabalho às 7:15, voltávamos às 11:45. A aula começava às 13 e terminava às 17 horas. Às 17:05 já estávamos em casa. Às 17:30 já estávamos sentados na mesa da sala, fazendo as tarefas de casa, as quais terminávamos por volta de 19:30. Mas quando havia prova, estudávamos entre 20 e 20:30, no quarto, deitados de bruço, sobre a cama, com a porta fechada, e em voz alta. Esses 30 minutos eram o período exato de estudo para as provas, nas vésperas, porque era o tempo do Jornal Nacional, e a gente não perdia uma única telenovela. Era chegar da escola e já ligar a TV. Fazíamos todas as tarefas de casa juntos, na mesma mesa, enquanto assistíamos televisão, com intervalos somente para lanches e jantar.

E sendo o melhor aluno da sala, fui me destacando pela capacidade de memorização. E até no trabalho eu impressionava, por saber o nome e a localização das 27 ruas e 4 avenidas do centro da cidade.

Fazia as entregas a pé, em passo rápido, em ritmo de marcha olímpica. Assim veio o primeiro apelido, acho que dado por meu pai mesmo: Olivia Motoca, por comparação à minha avó paterna, que também andava bastante e com passo rápido.

Depois vieram vários outros apelidos, dados principalmente por um dos funcionários de meu tio. Era um sujeito de estatura baixa, que vou aqui chamar de Pedrinho, Pedrinho Anão, como todos o chamavam, porque ali praticamente todo mundo tinha apelido. Tonhão, Masturba, Anão, Velhinho. Esses eram alguns dos apelidos dos quais consigo me lembrar agora. E o Anão me deu vários apelidos: Costelinha, Piaba (porque uma vez esqueci de dar descarga, e ele achou o cocô muito grande pro meu tamanho, logo seria grande como uma piaba), Lombriguento, Desnutrido, etc.

“Que muleque magro, feio! Você tem lombriga?”. “Cadê o Desnutrido? Preciso que ele leve esse serviço aqui no Dr. Camburucci!”. Era assim que o Anão me tratava, e eu levava tudo no bom humor. Nunca nem me chateei com as brincadeiras dele.

Mas eu tinha medo do batismo que faziam lá, e uma vez fizeram com Edu, meu irmão, quando ele tinha somente 11 anos de idade. Levavam o funcionário para os fundos do laboratório (era um laboratório de prótese dentária, dos grandes), fechavam a porta, arriavam-lhes as calças, e jogavam água congelante eu seu saco e pinto.

Nunca fizeram isso comigo. Acho que meu pai tinha deixado claro que comigo não podia, porque eu ainda era muito pequeno.

E é do Anão que pretendo falar hoje, talvez do início de sua jornada naquele local de trabalho, e de sua relação com meu pai. Quando eu trabalhava lá, ele já tinha 21 anos de idade. Mas parece ter chegado ali com uns 13. Como sempre foi muito baixinho, era geralmente muito mais esperto do que as crianças e adolescentes de sua estatura. Então era um menino de 13 que talvez tirasse onda com a molecada de 11 ou 10.

Sempre ouvi, de Edu, a história de que o Anão uma vez foi pago por meu pai para dar uma bofetada na cara de um menino que morava bem de frente ao laboratório. 

- Pedrinho, quanto você quer pra ir lá do outro lado da rua, e dar um tapão, de mão aberta, bem dado, na cara daquele muleque babaca?

- Uai, Tenor, não sei...

- Você não tem coragem de ir lá dar um tapão nele?

- É, ele é chato pra caraio mesmo...

Pedrinho por fim aceitou o desafio. Outros funcionários se excitaram, e foram para a janela, para ver se teria mesmo coragem.

Foi se dirigindo para o outro lado da rua, meio hesitante. Olhava para meu pai, para confirmar se era aquele mesmo o menino a ser esbofeteado. Hesitou, olhou para meu pai e os funcionários. Todos o incentivavam.

- Esse, esse! Vai logo, porra! Ele! Larga mão de ser cagão!

Cumprimentou o menino. Ficou olhando pra ele. Conversaram um pouquinho. Olhou de volta para meu pai e, tabefe!

O coitado do menino tomou uma bofetada bem dada na cara, e saiu gritando e chorando em direção à sua casa.

Não sei se seus pais souberam, se tomaram providências, se foram reclamar com meu tio. Não sei o que sucedeu. Mas tenho quase certeza que nunca souberam que foi a mando de meu pai, e que nem meu tio soube de nada.



No comments: