Lidar com pacientes com transtornos mentais graves, com comportamento violento, em certas circunstâncias impõe um nível bem alto de estresse para toda a equipe.
Tivemos um assediador sexual, grande e forte, que intimidava todos da equipe. O manejo era muito difícil e bastante delicado. Assediava todo mundo, independentemente de gênero. Hoje, anos depois, por sorte, está estabilizado com alguns antipsicóticos potentes.
Outro, também enorme, ex-lutador de MMA, deu soco na mesa e me ameaçou:
- Se você continuar a insistir com essas perguntas, a coisa aqui vai ficar bem feia!
E assim quebrou-se qualquer resquício de vínculo que existia, porque eu mesmo não tive mais coragem de atendê-lo em orientação psicológica. Hoje somente busco seu prontuário e dou orientações básicas e rápidas.
Um desses pacientes tinha passagens pela polícia por esfaqueamento, e ia para meu grupo armado, com um canivete retrátil.
Sujeito dificílimo, sempre a procura de conflito, de briga mesmo.
Certo dia arranjou mais uma confusão na rua, esfaqueando outra pessoa. Ficou preso durante um ano. E foi julgado como imputável, porque foi isso o que o juiz do caso decidiu.
Ele ter sido preso representou um grande alívio para muitos de nós ali. Nunca se desentendeu feio ou ameaçou qualquer um dos servidores do CAPS. Mas era bem cansativo. Não era nada fácil lidar com ele no grupo. Era um bolsonarista ferrenho, e tudo era motivo para ali, no grupo, destilar toda sorte de preconceitos e truculência ideológica.
Sempre arranjava um jeito de botar Bozo no meio das conversas, sendo que não era nada fácil mudar de assunto. Até que um dia eu mesmo perdi a paciência.
- Olha, se for pra você vir aqui no grupo falar esse monte de mentiras, é melhor mudar de grupo. É melhor não vir. – respondi, já com um tom talvez um pouco rude.
Porque ele sempre aparecia com algumas daquelas fake news nível mamadeira de piroca, e insistia muito para além da conta.
Porém, logo após minha fala, pensei que eu talvez pudesse ter me excedido, e assim estava ali, prestes a correr o risco de ser seriamente agredido ou até morto. Pensei: “E agora, o que faço? Falei grosso com o sujeito, e ele é violento...”
E continuei:
- Fulano, me perdõe, me perdõe mesmo. Mas estou cansado. Não estou dando mais conta. Não está sendo produtivo. Isso não está sendo bom para o grupo e nem para você... – agora em tom bem mais sereno.
Continuei em contato visual intenso com ele, olho no olho, sem saber o que poderia acontecer. “Será que agora eu tô definitivamente ferrado?”.
Ele continuou olhando fixamente para mim e, talvez para a surpresa da maioria dos presentes, consternou-se.
- Você tá bravo? – perguntou-me, calmamente, com um sorriso de canto de boca.
Foquei ainda mais em sentimentos mútuos, e conseguimos fazer com que a conversa tomasse rumos mais produtivos. Minha sorte residia no fato de nosso vínculo, apesar de tudo, ser forte.
Apesar de todas as dificuldades, ele gostava de mim. Porque ele tinha minha empatia, e cheguei até a inclui-lo aqui em meu Facebook, entre meus contatos. Ele tinha algumas dúvidas, sobre questões bem específicas. Prometi-lhe que pesquisaria a respeito.
- Ah, que bom! Obrigado! Tem como me enviar as respostas por zap?
- Posso enviar por Messenger, pelo Facebook. Pode ser?
- Sim, anote aí meu nome no Face: Dezessete Décimo Sétimo.
- Como é teu nome no Facebook? 17 17º???
- Sim, por extenso.
- Ah, sim, entendi... É o número do Bolsonaro, né, reiterado?
- Exatamente! - e me olhou fixamente, sorrindo, com um sorriso que, não sei por quê, me lembrou o sorriso de algum vilão do cinema ou dos quadrinhos.
Compareceu mais algumas vezes ao grupo. Continuou insistindo em falas bastante agressivas e preconceituosas, recheadas de fake news, mas com uma frequência bem menor, e bem mais tolerável para todos do grupo.
Veio então a pandemia, e 3 meses depois foi preso.
Já está solto, porém não mais retornou, e eu não lamento isso. Por enquanto prefiro mesmo a distância.
E houve outros, assim como familiares, que deixaram toda a equipe em completa tensão. Tinham potencial homicida-suicida, e o drama chegou infelizmente ao ponto de pedirmos medida protetiva.
Mas é aquela coisa, a equipe pede a medida protetiva num dia, e no outro está todo mundo quase tendo ataques de pânico com a possibilidade do ataque repentino de alguém em fúria descontrolada.
E todos os pacientes violentos dos quais me lembro, com sério potencial de destruição, são homens. Não me lembro de nenhuma mulher. Sim, isso mesmo: masculinidade tóxica.
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