No calor sinto cheiro de bosta, bicho, vida e morte. No frio me sinto limpo, estéril, robótico. Essa bosta toda me cansa. Prefiro o descanso da armadura que me separa do frio na espinha. Prefiro o vento mordaz, a aventura a me iludir que venço um pouco a natureza, ao caminhar sobre o gelo imaginado, com minha fortaleza em forma de roupas sobre roupas. O frio se enfrenta, com fogo e couro inventado. Do calor se foge pra lugar algum. Cada um com sua prisão. Se teu calor move tua alegria, meu frio me empurra pra morte da minha moleza de espírito.
CRÍTICA DO SENSO COMUM E PROSA - Quem quiser adquirir o livro, acesse o link do canto superior direito
Friday, May 20, 2022
Tabefe
Infelizmente não posso dizer que a relação de meus pais com seus filhos, e entre eles mesmos, era algo sereno. “Eles brigam muito”. “Eles brigavam muito”. Era o que muitos dizem e diziam.
Mas, desde muito cedo, minha relação com meu pai era a mais resolvida. Ele era meu inimigo e, pronto, estava resolvido.
Mas isso não quer dizer que ele sempre foi meu inimigo, ininterruptamente. Houve deliciosos momentos de trégua. E isso também posso dizer de meus dois irmãos. Meu irmão mais novo, por exemplo, que ainda está vivo, foi meu inimigo, clássico, durante toda a minha infância. Mas éramos inimigos que não se desgrudavam. Sabe aquela história de “eu odeio ele”, mas não vive sem? Pois é... Apesar de que eu nunca dizia que odiava nada nessa vida. Ódio e raiva eram palavras tabu pra mim até os meus 20 anos de idade. Eu nem sabia que às vezes sentia ódio. Nada disso era resolvido.
Era resolvido somente saber, ou somente ter para mim mesmo, que não eram meus amigos. Não dizia que tinha ódio, mas vivia diariamente, por anos, uma certa distância.
Como já disse, essa distância por vezes desaparecia. Mas era uma espécie de constante, que marcava minha identidade, bastante atrelada à minha mãe desde tenra idade.
Meu pai era meu inimigo clássico, e minha mãe era minha referência de tudo. E isso teve força até meus 19 anos, quando anunciei a ela que ia sair de casa para, vejam só, para ir morar com ele no primeiro muquifo que aparecesse.
Mas isso é outra história. Quero aqui me concentrar em minha relação com meu pai e em algumas de suas excentricidades, as quais não eram poucas.
Me aproximei desse meu inimigo clássico com 8 anos e meio de idade. Já fazia um ano que Edu, meu irmão mais velho, ia com ele para o trabalho, todos os dias. Edu começou a trabalhar com 10 anos de idade, e não parou mais. A partir dos 13 já trabalha integralmente, manhã e tarde, estudando à noite. E foi assim até os 18 anos, quando parou tudo para fazer cursinho, para depois estudar odontologia.
Porque a vida do Edu foi desse jeito. Trabalhou dos 10 aos 18 anos. E aí, de repente, inventou de entrar na USP. Parou por dois anos. Estudou feito louco (e ficou mesmo louco) durante dois anos, durante os anos de 1988 e 1989, para passar no vestibular da Fuvest, e e entrar na USP em 1990.
Porém não posso me desviar com mãe ou irmãos. Porque esse texto é sobre meu pai.
Edu começou a trabalhar com meu pai em 1980. Um ano depois lá estava eu também, com pouco mais de 8 anos e meio de idade. Porque, para meus pais, trabalhar era importante, edificante.
Então, provavelmente numa bela manhã de fevereiro de 1981, lá fomos nós: eu, Edu e meu pai, de moto, para o trabalho. E ao andar em três numa mesma moto, o menor ia sempre no meio, prensado pelos de maior tamanho. Então eu ia no meio, com os pés balançando no ar (porque não havia pedaleiras para um terceiro passageiro), e segurando bem forte na barriga de meu pai. E todos, claro, sem capacete. Porque ninguém na minha cidade usava isso.
Meu pai era o funcionário mais velho de meu tio, que era 6 anos mais novo que ele. Meu pai era empregado de seu irmão caçula. Foi o herói desse irmão durante toda a infância dele. “Seu pai era meu herói, minha referência. Depois, não sei por quê, tudo se acabou...” – lembro-me de meu tio me dizer, quando eu já tinha uns 18 anos.
“Ele tem uma alma de menino, de moleque” – outros, muitos outros diziam sobre meu pai. “Mas não pode beber” – algum outro geralmente completava.
Porque meu pai teve, muitas vezes, problemas com o álcool.
- Quando a gente ainda namorava, encontrei ele na rua, meio perdido, bêbado. Nem a Lambreta ele lembrava onde tinha deixado. Ele chegou a perder a Lambreta, vocês acreditam? – dizia minha mãe.
E Lambreta, para quem não sabe, era uma motoneta no estilo italiano, bem parecida com uma Vespa, porém a um custo bem mais baixo. Gente rica, ou de classe média alta, andava de Vespa. A pobraiada andava de Lambreta.
E como meu pai fazia um tipo um pouco rebelde, sua Lambreta tinha o adesivo de um capeta.
Ele tinha o currículo de um playboy pobre. E playboy pobre, naquela época, tinha alcunha mais precisa: jacu. Mas meu pai jamais aceitaria tal alcunha. Porque jacu, para ele, eram os outros. Ele tinha convicção de que possuía mais classe e elegância do que os jacus. Era calígrafo, ilustrador e, durante sua juventude, talvez se vestisse de modo que não o pudessem chamá-lo de jeca ou de jacu.
Sempre passava Gumex (fixador popular da época) em seus cabelos, era magro, esbelto, e um rapaz bonito. Como chamá-lo de jacu? Talvez algum jovem de classe média alta, estudante de Direito, e amante de MPB, se o conhecesse, até diria isso. Mas meu pai jamais seria um jacu entre os seus.
Então, em uma bela manhã, no início de 1981, lá fomos nós, os três, de moto, para o trabalho. Lembro-me bem. Meu tio tinha 14 funcionários, incluídos aí eu e Edu. Então eram 13 funcionários em turno integral, e eu e Edu somente no período da manhã. Fazíamos serviços de limpeza e entregas, cuja maioria se dava no raio máximo de um quilômetro de distância.
Nesse ano de 1981, por um certo acaso, eu meu tornei o melhor aluno da sala, na escola. Minha mãe conseguiu imprimir uma rotina espartana. Acordávamos às 6:30 horas, saímos para o trabalho às 7:15, voltávamos às 11:45. A aula começava às 13 e terminava às 17 horas. Às 17:05 já estávamos em casa. Às 17:30 já estávamos sentados na mesa da sala, fazendo as tarefas de casa, as quais terminávamos por volta de 19:30. Mas quando havia prova, estudávamos entre 20 e 20:30, no quarto, deitados de bruço, sobre a cama, com a porta fechada, e em voz alta. Esses 30 minutos eram o período exato de estudo para as provas, nas vésperas, porque era o tempo do Jornal Nacional, e a gente não perdia uma única telenovela. Era chegar da escola e já ligar a TV. Fazíamos todas as tarefas de casa juntos, na mesma mesa, enquanto assistíamos televisão, com intervalos somente para lanches e jantar.
E sendo o melhor aluno da sala, fui me destacando pela capacidade de memorização. E até no trabalho eu impressionava, por saber o nome e a localização das 27 ruas e 4 avenidas do centro da cidade.
Fazia as entregas a pé, em passo rápido, em ritmo de marcha olímpica. Assim veio o primeiro apelido, acho que dado por meu pai mesmo: Olivia Motoca, por comparação à minha avó paterna, que também andava bastante e com passo rápido.
Depois vieram vários outros apelidos, dados principalmente por um dos funcionários de meu tio. Era um sujeito de estatura baixa, que vou aqui chamar de Pedrinho, Pedrinho Anão, como todos o chamavam, porque ali praticamente todo mundo tinha apelido. Tonhão, Masturba, Anão, Velhinho. Esses eram alguns dos apelidos dos quais consigo me lembrar agora. E o Anão me deu vários apelidos: Costelinha, Piaba (porque uma vez esqueci de dar descarga, e ele achou o cocô muito grande pro meu tamanho, logo seria grande como uma piaba), Lombriguento, Desnutrido, etc.
“Que muleque magro, feio! Você tem lombriga?”. “Cadê o Desnutrido? Preciso que ele leve esse serviço aqui no Dr. Camburucci!”. Era assim que o Anão me tratava, e eu levava tudo no bom humor. Nunca nem me chateei com as brincadeiras dele.
Mas eu tinha medo do batismo que faziam lá, e uma vez fizeram com Edu, meu irmão, quando ele tinha somente 11 anos de idade. Levavam o funcionário para os fundos do laboratório (era um laboratório de prótese dentária, dos grandes), fechavam a porta, arriavam-lhes as calças, e jogavam água congelante eu seu saco e pinto.
Nunca fizeram isso comigo. Acho que meu pai tinha deixado claro que comigo não podia, porque eu ainda era muito pequeno.
E é do Anão que pretendo falar hoje, talvez do início de sua jornada naquele local de trabalho, e de sua relação com meu pai. Quando eu trabalhava lá, ele já tinha 21 anos de idade. Mas parece ter chegado ali com uns 13. Como sempre foi muito baixinho, era geralmente muito mais esperto do que as crianças e adolescentes de sua estatura. Então era um menino de 13 que talvez tirasse onda com a molecada de 11 ou 10.
Sempre ouvi, de Edu, a história de que o Anão uma vez foi pago por meu pai para dar uma bofetada na cara de um menino que morava bem de frente ao laboratório.
- Pedrinho, quanto você quer pra ir lá do outro lado da rua, e dar um tapão, de mão aberta, bem dado, na cara daquele muleque babaca?
- Uai, Tenor, não sei...
- Você não tem coragem de ir lá dar um tapão nele?
- É, ele é chato pra caraio mesmo...
Pedrinho por fim aceitou o desafio. Outros funcionários se excitaram, e foram para a janela, para ver se teria mesmo coragem.
Foi se dirigindo para o outro lado da rua, meio hesitante. Olhava para meu pai, para confirmar se era aquele mesmo o menino a ser esbofeteado. Hesitou, olhou para meu pai e os funcionários. Todos o incentivavam.
- Esse, esse! Vai logo, porra! Ele! Larga mão de ser cagão!
Cumprimentou o menino. Ficou olhando pra ele. Conversaram um pouquinho. Olhou de volta para meu pai e, tabefe!
O coitado do menino tomou uma bofetada bem dada na cara, e saiu gritando e chorando em direção à sua casa.
Não sei se seus pais souberam, se tomaram providências, se foram reclamar com meu tio. Não sei o que sucedeu. Mas tenho quase certeza que nunca souberam que foi a mando de meu pai, e que nem meu tio soube de nada.
O sonho do palhaço triste
06 de maio de 2015.
Acordei às 4:30 da manhã, logo depois de ter tido um sonho valioso, e talvez muito significativo para ilustrar alguns aspectos de minha vida atualmente, para os quais não entrarei aqui em detalhe.
Eu tinha acabado de sair de uma sessão de cinema, em céu aberto, deitado, vendo estrelas e vendo o filme ao mesmo tempo, tendo como companhia toda a população de uma alguma vizinhança de periferia, de alguma cidade grande do Brasil. Aliás, do meu lado direito se sentava um colega de infância, o qual sofrera bastante com bullying.
Depois de passarmos a tarde inteira dando porradas um no outro (sim, ele sofreu bastante bullying, mas sempre foi muito violento), ele assistia ao filme ao meu lado e ainda trocávamos muitos pontapés e murros. Porém, depois que o filme começou, ele mudou completamente de comportamento, e passou a atuar de modo bastante afável e constrangedor. Queria assistir ao filme de mãos dadas comigo (sim, ele sofreu bastante bullying, era violento e meio bissexual).
Para me defender, o que eu fiz? Dei mais porradas no caboclo, e com muito mais intensidade, para que ele desistisse por completo de tal empreitada absolutamente humilhante e vexatória em direção à imagem social imaculada de minha ilustre pessoa. Nosso comportamento era o mesmo da década de 80: jargões, falas e comportamentos de típicos machos. Os melhores exemplares da espécie naquele remoto rincão de periferia de uma cidade média do interior de São Paulo. E muitos desses machos comiam o cu de outros machos, e batiam no peito orgulhosos de tais grandes feitos e conquistas. Sim, àquela época fui humilhado publicamente, chamado de “viado” por me recusar a entrar na fila dos machos que estavam deflorando um coleguinha de infância, o qual dava o cu em troca de um trocado, de um chocolate ou até mesmo de algumas voltas em nossas bicicletas:
- E aí, Adriano, bora lá?
- Bora lá o quê?
- Tá todo mundo indo ali atrás do muro, no fundo daquela casa abandonada, para comer o Leproso (apelido fictício). Se você deixar ele dar umas volta na sua bicicleta, acho que ele abre pra você também.
- Porra, mas o Leproso tem uma bicicleta melhor que a minha.
- Mas ele tá querendo dá, uai. Ele quer e a gente come na boa. Tem que dá e tem quem come. Assim é a vida. Bora lá, Turcão?
- Porra, Catarro, não tô a fim não.
- Qual é, Turcão, tá cagando na reta, tá afinando. Larga a mão de ser viado. Tá todo mundo indo lá. É divertido!
- Bicho, não tô a fim. Não vejo graça nisso aí.
- Ih, olha lá, o Adriano é o maior viadão. Você é viado, cara!
E vários deles começaram a rir da minha cara, repetindo por várias vezes as expressões viado, viadão e outros adjetivos ofensivos à macheza da molecada daquele bairro. Lembro que na verdade nem me senti ofendido. Tentei explicar-lhes que “comer outro homem” não era atestado de masculinidade, mas completamente em vão. Lembro que no máximo eu me senti um pouco excluído, mas nada muito grave, que tenha me marcado. Com 11 ou 12 anos de idade, eu sabia que continuava sendo um deles, apesar de não gostar de penetrar outros meninos. Mais humilhante foi ter de prestar contas para a mãe do Leproso, meses depois:
- Eu quero saber quem fez maldade com meu filho – e apontava o dedo para cada um de nós, em uma inquisição assustadora, em plena luz do dia.
- Eu não comi o seu filho! – eu dizia, com bastante segurança, mas muito constrangido por usar aquela expressão para aquela senhora desesperada, a qual evitava a palavra comer ou qualquer termo que revelasse o que havia sido a tal maldade. Maldade foi a minha em ir direto ao assunto. Mas aquele contexto todo era mau por demais...
Ah, depois continuo a narrar aqui o sonho do palhaço triste. Vou dormir mais um pouco. A bateria está acabando e são 5:30 da manhã...
Thursday, May 19, 2022
Dezessete Décimo Sétimo
Lidar com pacientes com transtornos mentais graves, com comportamento violento, em certas circunstâncias impõe um nível bem alto de estresse para toda a equipe.
Tivemos um assediador sexual, grande e forte, que intimidava todos da equipe. O manejo era muito difícil e bastante delicado. Assediava todo mundo, independentemente de gênero. Hoje, anos depois, por sorte, está estabilizado com alguns antipsicóticos potentes.
Outro, também enorme, ex-lutador de MMA, deu soco na mesa e me ameaçou:
- Se você continuar a insistir com essas perguntas, a coisa aqui vai ficar bem feia!
E assim quebrou-se qualquer resquício de vínculo que existia, porque eu mesmo não tive mais coragem de atendê-lo em orientação psicológica. Hoje somente busco seu prontuário e dou orientações básicas e rápidas.
Um desses pacientes tinha passagens pela polícia por esfaqueamento, e ia para meu grupo armado, com um canivete retrátil.
Sujeito dificílimo, sempre a procura de conflito, de briga mesmo.
Certo dia arranjou mais uma confusão na rua, esfaqueando outra pessoa. Ficou preso durante um ano. E foi julgado como imputável, porque foi isso o que o juiz do caso decidiu.
Ele ter sido preso representou um grande alívio para muitos de nós ali. Nunca se desentendeu feio ou ameaçou qualquer um dos servidores do CAPS. Mas era bem cansativo. Não era nada fácil lidar com ele no grupo. Era um bolsonarista ferrenho, e tudo era motivo para ali, no grupo, destilar toda sorte de preconceitos e truculência ideológica.
Sempre arranjava um jeito de botar Bozo no meio das conversas, sendo que não era nada fácil mudar de assunto. Até que um dia eu mesmo perdi a paciência.
- Olha, se for pra você vir aqui no grupo falar esse monte de mentiras, é melhor mudar de grupo. É melhor não vir. – respondi, já com um tom talvez um pouco rude.
Porque ele sempre aparecia com algumas daquelas fake news nível mamadeira de piroca, e insistia muito para além da conta.
Porém, logo após minha fala, pensei que eu talvez pudesse ter me excedido, e assim estava ali, prestes a correr o risco de ser seriamente agredido ou até morto. Pensei: “E agora, o que faço? Falei grosso com o sujeito, e ele é violento...”
E continuei:
- Fulano, me perdõe, me perdõe mesmo. Mas estou cansado. Não estou dando mais conta. Não está sendo produtivo. Isso não está sendo bom para o grupo e nem para você... – agora em tom bem mais sereno.
Continuei em contato visual intenso com ele, olho no olho, sem saber o que poderia acontecer. “Será que agora eu tô definitivamente ferrado?”.
Ele continuou olhando fixamente para mim e, talvez para a surpresa da maioria dos presentes, consternou-se.
- Você tá bravo? – perguntou-me, calmamente, com um sorriso de canto de boca.
Foquei ainda mais em sentimentos mútuos, e conseguimos fazer com que a conversa tomasse rumos mais produtivos. Minha sorte residia no fato de nosso vínculo, apesar de tudo, ser forte.
Apesar de todas as dificuldades, ele gostava de mim. Porque ele tinha minha empatia, e cheguei até a inclui-lo aqui em meu Facebook, entre meus contatos. Ele tinha algumas dúvidas, sobre questões bem específicas. Prometi-lhe que pesquisaria a respeito.
- Ah, que bom! Obrigado! Tem como me enviar as respostas por zap?
- Posso enviar por Messenger, pelo Facebook. Pode ser?
- Sim, anote aí meu nome no Face: Dezessete Décimo Sétimo.
- Como é teu nome no Facebook? 17 17º???
- Sim, por extenso.
- Ah, sim, entendi... É o número do Bolsonaro, né, reiterado?
- Exatamente! - e me olhou fixamente, sorrindo, com um sorriso que, não sei por quê, me lembrou o sorriso de algum vilão do cinema ou dos quadrinhos.
Compareceu mais algumas vezes ao grupo. Continuou insistindo em falas bastante agressivas e preconceituosas, recheadas de fake news, mas com uma frequência bem menor, e bem mais tolerável para todos do grupo.
Veio então a pandemia, e 3 meses depois foi preso.
Já está solto, porém não mais retornou, e eu não lamento isso. Por enquanto prefiro mesmo a distância.
E houve outros, assim como familiares, que deixaram toda a equipe em completa tensão. Tinham potencial homicida-suicida, e o drama chegou infelizmente ao ponto de pedirmos medida protetiva.
Mas é aquela coisa, a equipe pede a medida protetiva num dia, e no outro está todo mundo quase tendo ataques de pânico com a possibilidade do ataque repentino de alguém em fúria descontrolada.
E todos os pacientes violentos dos quais me lembro, com sério potencial de destruição, são homens. Não me lembro de nenhuma mulher. Sim, isso mesmo: masculinidade tóxica.
Thursday, May 12, 2022
O inferno é uma ideia horrenda e bizarra
Convenhamos, a ideia de que existe tortura eterna, de que existe danação eterna e sem alívio, é uma ideia psicopática, coisa de torturadores de almas inocentes. Se o inferno existe, nada tem valor. Esta vida perde o valor, e tudo o mais também. A crença de que existe um mal eterno não permite a noção de finitude, de descanso, de redenção. Não consigo imaginar chantagem mais cruel. A patética ideia de que existe inferno é extremamente valiosa nas mãos de líderes psicopáticos. Fazem o que querem, e torturam constantemente quem acredita nesse tipo de sandice. E há realmente pessoas que acreditam na existência do inferno. São uma minoria dos crentes que, na prática, acreditam de fato no inferno. Mas eles existem, são reféns eternos, e sofrem o diabo. Muitas dessas pessoas são profundamente adoecidas em função disso. É bizarro imaginar que existem pessoas em sofrimento extremo em função desse tipo chantagem. E eu sei que existem, porque conheci pessoas cruelmente aprisionadas nesse tipo de situação. O fanatismo religioso é uma prisão solidamente cercada. Quase ninguém sai. Quem está ali dentro é proibido até de pensar algumas coisas. É horroroso. É assustador.
Passageiro a pilotar avião sem rumo
Nos EUA um passageiro, sem qualquer experiência de voo, teve a infelicidade de estar dentro de um monomotor, sozinho, com um piloto que desmaiou. Por sorte, com auxílio do controlador de voo, por rádio, conseguiu pousar com segurança.
Isso me fez lembrar de quando voei pela segunda vez na vida, em 1987, com 15 anos de idade, também em um monomotor, de 4 lugares, acompanhando uma aula de voo. Era o chamado voo de peru, um jeito de voar de graça, de carona, em lugares que ficavam vagos, dentro de um avião no qual ocorria uma aula de voo.
Em meu primeiro voo de peru, não houve clemência. Os dois pilotos, instrutor e aluno, não hesitaram em tentar me assustar, e conseguiram. Primeiro fizeram o avião entrar em queda livre (estol), como se estivessem perdendo o controle da aeronave, por repetidas vezes.
E, enquanto estolavam, olhavam para trás, para ver eu me contorcer de medo. E assim deram boas gargalhadas. Depois estolaram novamente, e ambos simularam um desmaio. Mas aí eu já saquei que era pura trolagem. Só fiquei um pouco tenso de sentir que o avião estava instável e um pouco sem rumo, com dois caras que podiam estar se excedendo em suas tentativas de me aterrorizar.
Eu pensava:
“Estão tentando me zoar. Ok. Mas espero, sinceramente, que não exagerem ao ponto de causaram um acidente...”.
O terceiro voo que fiz na vida foi num planador, no mesmo ano. Sim, voei algumas vezes em 1987, porque eu era o office-boy do aeroclube de Ribeirão Preto. E meu pai era instrutor teórico. Dava aula geralmente na disciplinas de Motores e Dinâmica de Voo.
Dentro do planador estávamos somente eu e o piloto, de 20 anos de idade.
Ele também fingiu que estava passando mal.
- Eu não tô bem, eu não sei o que tá acontecendo. Você terá de assumir o comando – disse-me, ofegante, simulando uma voz de sofrimento, com desmaio na sequência.
E fez isso com a manche puxada para cima, com a aeronave cada vez mais lenta, e a velocidade rumando para o estol.
Assumi os comandos, mas eu simplesmente não sabia o que fazer.
- Vai estolar, vai estolar! Pelo amor de Deus, pelo amor... – eu gritava, um pouco desesperado.
E assim entramos em queda livre, com apito de estol na orelha. Mas foi um estol suave, agradável, bem diferente daqueles que eu havia experimentado no monomotor.
Ele continuou simulando desmaio e eu saquei que era zoeira. Mas mesmo assim minha adrenalina subiu. Afinal de contas esse era somente meu terceiro voo na vida.
Wednesday, May 11, 2022
A COHAB onde eu nasci
Nasci no inverno, em junho de 1972, em uma Cohab. Para quem não sabe, Cohab é a sigla para conjunto habitacional, o qual é composto por casas populares, em bairros periféricos.
Nasci então em um bairro de Ribeirão Preto, chamado Jardim Independência. Os terrenos tinham 250 m2, e as casas tinham 32 m2, sendo compostas somente por quarto, sala, cozinha e banheiro.
Creio que meus pais tenham se mudado para essa Cohab em 1970 ou 1971, quando meu irmão mais velho, Eduardo ainda tinha talvez somente alguns meses de idade.
Mesmo a casa sendo tão pequena, havia um gramado bem grande na frente, e o governo tinha plantado uma árvore sete copas na frente de cada uma das casas. Ela também é, em muitos lugares do Brasil, chamada de amendoeira-da-praia.
Aos poucos os moradores foram aumentando a área construída de suas casas, e construindo muros e grades em volta. Mas a maioria mantinha os jardins, nos quais havia plantas e flores.
As árvores faziam uma sombra muito agradável, e durante a noite acabavam muitas vezes produzindo uma boa escuridão, porque tapavam a luz dos postes, que estavam acima delas.
Essas árvores produzem um fruto comestível, de sabor muito ácido, que nós chamávamos de chupavim. Ele servia de alimento para muitos morcegos. Muitos de nós de vez em quando tentávamos comer os chupavins. Não era algo muito gostoso, mas era aquela história de pegar alguma coisa e mastigar, como adorávamos fazer com uma série de outros frutos, de outras árvores, que as pessoas plantavam em suas casas. Muitos tinham, por exemplo, pés de laranja e pés de goiaba em seus quintais.
E o chupavim, como é um fruto um pouco menor que uma bola de pingue-pongue, era perfeito para nossas guerras, podendo ser arremessados com a mão ou com estilingues.
A rua tinha um pouco mais de 100 metros de extensão, e era bem calma, com pouquíssimos carros que por alí passavam. Então era nossa área de lazer, repleta de árvores e pronta para se jogar bola, fazer guerras de chupavins e as mais variadas brincadeiras.
A escola se localizava a cerca de 200 metros de onde morávamos, e me lembro muito bem que chegávamos até ela, andando, em um pouco mais de três minutos. Com sete anos de idade eu cronometrava tudo o que eu podia, em meu primeiro relógio de ponteiros, que eu e meu irmão mais velho havíamos ganhado de meu pai.
As dificuldades e os desafios foram os mais variados. Até 1976 a casa ainda tinha somente 32 m2. Meus pais dormiam no quarto, com meu irmão mais novo, e eu e meu irmão mais velho dormíamos juntos, em um colchão de solteiro, no chão na sala.
Minha mãe travou uma guerra intensa com meu pai, durante muitos meses, para que ele por fim tomasse a decisão de contratar alguns pedreiros, para pelo menos fazer um muro em volta da casa, com um portão, para que seus filhos pequenos não corressem para a rua, e assim corressem o risco de serem atropelados.
Não sei exatamente o motivo, mas ele ficou durante um tempo escondendo dinheiro de minha mãe, e não investia em um muro e um portão, para ter um pouco mais de proteção para a família.
Até 1976 eles tiveram uma vida conjugal muito turbulenta, com meu pai exibindo diversos episódios de violência, sendo que uma das lembranças que tenho é a dele muito bravo e descontrolado, jogando pratos cheio de comida no chão. Então tenho essa lembrança de minha infância, de pratos se espatifando, com comida e cacos voando para todos os lados.
Depois me lembro de muitos conhecidos, fazendo-lhe diversos elogios, de que ele era uma pessoa fabulosa, mas que tinha somente um defeito. Diziam que ele ficava muito alterado depois que bebia. Depois de algumas doses de cerveja, ou de bebida destilada, era comum que ele perdesse a paciência com alguma coisa e explodisse.
Porém, apesar de todas essas dificuldades, predominam em minha memória as boas lembranças dessa rua e do bairro onde passei minha infância e vivi até os 20 anos de idade.
A quase 100 metros dali, bem vizinha à nossa rua, havia uma linda praça, chamada Dante Alighieri, que era muito arborizada e continha muitos pinheiros.
Era maravilhoso brincar por lá, correr, andar de bicicleta e escalar alguns desses pinheiros, que tinham muitos galhos, e permitiam uma apreciação do bairro, nas alturas, na escuridão, acima dos postes.
Dessa perspectiva, de escalar uma árvore alta, com muita facilidade, se produzia um sentimento grande de segurança, apesar de toda a altura em que nos projetávamos. Eram muitos galhos, e aquilo parecia algo mágico, como se tivéssemos uma escada, para subir tranquilamente em alguns daqueles pinheiros, de forma aparentemente bastante segura.
Os dias eram quentes, com sombras muito refrescantes. As noites eram escuras, entremeadas pela luz singela de alguns postes, com a percepção constante de que aquele era um local de certo modo até que abençoado.
Essa Cohab foi a vila mistificada de minha infância, da qual guardo preciosas e saborosas lembranças. Talvez sejam boas as histórias que tenho para contar...
Vizinha do inferno
Quando a piscina de meu condomínio estava sendo aquecida a 37°C (uma temperatura muito acima do máximo de 30°C, determinados por normas sanitárias), enfrentei a resistência de uma vizinha. Na ocasião ela me disse que a temperatura deveria continuar daquele jeito, porque nenhum de seus filhos adoecia com aquilo, e que eles gostavam muito das águas quentes de Caldas Novas.
O nível de sua tentativa de argumentação era tão tosco e desonesto, que eu desisti em poucos minutos. Não fazia sentido tentar argumentar com uma pessoa que, em um debate, estava tão mal-intencionada.
Porém, dias depois, tive o azar de cruzar novamente com essa pessoa em uma situação conflituosa.
Meu prédio tem três elevadores, sendo dois sociais e um de serviço. Moro no primeiro andar, e minha bicicleta é muito pesada para que eu consiga descer pelas escadas. Então, todos dias, desço pelo elevador de serviço.
Quando minha bicicleta entra no elevador, não sobra muito espaço para outras pessoas. É possível que caibam eu, a bicicleta e mais umas três pessoas. E todas ali ficarão um pouco espremidas. Não é confortável. Mas é possível.
Pedi o elevador. Ele demorou muito para chegar. E quando chegou, já estava com com quatro pessoas dentro. Não era possível que eu entrasse com minha bicicleta. Então deixei que ele fosse até o térreo, e pedi novamente.
O problema é que ele não retornou imediatamente para o meu andar. Ele possivelmente foi até o 15° andar, e talvez tenha parado em vários andares, até chegar ao meu. Porque as pessoas pedem todos os elevadores ao mesmo tempo. Elas não se conformam em somente pedir os dois elevadores sociais. Também apertam o botão do elevador de serviço, e ele também acaba (em um horário de rush) sendo muito demandado.
Após perder o primeiro elevador, esperei que ele fizesse toda a sua jornada, por todos os andares do prédio, até novamente chegar até mim, no 1° andar.
Quando ele por fim chegou, quem estava dentro?
Essa infeliz e um adolescente, que talvez fosse seu filho ou neto, não sei.
Quando ela me viu, e viu que o espaço ali ficaria reduzido, recomendou que eu não entrasse.
Eu, porém, fui entrando, e dizendo a ela que eu já tinha esperado muito tempo, e que já era o segundo elevador que eu estava aguardando.
Ela, contudo, ficou irritadíssima, e resolveu nesse dia falar o que não havia me dito no dia da discussão sobre a temperatura da piscina.
- É uma falta de respeito tremenda você entrar dentro do elevador com essa bicicleta, fazendo com que a gente fique aqui espremido! Você é mal educado!
Tentei novamente argumentar, mas com pessoas assim é praticamente em vão:
- Minha senhora, esse elevador é de serviço. É prioritariamente para cargas. Há dois outros elevadores sociais, e somente um único de serviço. Esse já é o segundo elevador que estou esperando, porque as pessoas estão usando-o para outras finalidades que não prioritariamente a de serviço.
Não teve jeito. Ela saiu repetindo, em alto e bom tom, em modo de xingamento, na área externa do prédio, para que todas as pessoas possíveis ouvissem:
- Mal educado! Mal educado!
Somente repliquei:
- Siga as regras, e teremos mais tranquilidade no convívio. Basta seguir as regras.
Como faço todos os dias, hoje novamente eu estava pedindo pelo elevador de serviço. A porta se abriu, e quem estava lá? Novamente essa senhora e o adolescente.
Dessa vez, porém, ela foi mais inteligente. Já foi logo saindo do elevador e, resmungando, se dirigiu aos elevadores sociais.
Ao invés de retrucar suas grosserias, achei melhor gratificar seu bom comportamento:
- Isso! Muito bom! Seguindo as regras! Muito obrigado, e tenha um bom dia!
Sei que meu tom, no final das contas, soou um pouco irônico. Mas não me restou muitas alternativas. E não há como ela me acusar de ironia, porque eu realmente a parabenizei, a agradeci e lhe desejei um bom dia.
É assustador pensar que boa parte dessas pessoas está hoje pensando ou planejando ter porte de arma.
Monday, May 02, 2022
Brasileiro não é previdente
O brasileiro médio é imediatista e supersticioso. Não gosta de pensar sobre riscos, porque isso seria “ficar pensando coisas ruins”, e que não pode falar sobre “coisas ruins”, porque isso as atrai. O nível é de uma positividade tóxica bem demente. Porque a dureza da realidade só existe se for para encontrar alguém para punir ou matar. Existe uma noção implícita, subterrânea, o esgoto do juízo das coisas, que concebe castigos e sofrimento como purificadores. Não conseguem conceber que proteger-se ou proteger o outro nem sempre implica em ter de espancar ou matar alguém. 400 anos de escravidão nos legaram um potencial muito grande para o fascismo.