José, 49 anos de idade, internado na UTI há cerca de um ano, tinha esclerose lateral amiotrófica. Esta é uma doença que pode tranquilamente ser classificada como pior do que câncer. Trata-se de uma doença degenerativa que afeta a parte motora, mas mantém a pessoa consciente até seus últimos dias de vida.
José somente movimentava seus olhos e mesmo assim também com certa dificuldade. Não era capaz nem mesmo de piscar seus olhos voluntariamente. Se lhe pedíssemos, por exemplo, que piscasse por duas vezes, isso não ocorria. José não era capaz de se comunicar piscando os olhos. Mas era capaz de movimentar voluntariamente os olhos para a esquerda e para a direita, sendo que para uma dessas duas direções havia uma dificuldade um pouco maior, o movimento era bem mais lento.
O lado, então, para o qual seu movimento era mais rápido e menos custoso, foi escolhido como o que seria mais utilizado, como o lado da resposta de "sim".
Havia uma tábua de letras, com todo o alfabeto, com a frequência das letras na língua portuguesa, a qual era colocada frente à José, a uma distância visível, para que ele fosse aos poucos apontando as letras com as quais iria formar as palavras que formariam as frases na sua comunicação conosco.
Eu lhe mostrava a tábua de letras, e começava a soletrar uma por uma, esperando pelo movimento rápido de "sim" de seus olhos, o qual sinalizaria que a última letra deveria ser escolhida.
Esse tipo de comunicação aumentou a qualidade de vida de José na interação com os profissionais da UTI, assim como também na interação com qualquer pessoa que viesse lhe visitar.
Certo dia, durante a visita de um de seus filhos, uma técnica de enfermagem veio até o leito e retirou um cobertor que sempre ficava enrolado debaixo dos joelhos de José, e ele imediatamente expressou sua insatisfação, que apesar dos poucos movimentos faciais que lhe restavam, foi uma comunicação rápida e clara de completo desagrado e desconforto.
Tanto eu quanto seu filho tentamos comunicar à técnica de enfermagem que aquele cobertor enrolado debaixo de seus joelhos era um pedido constante dele, para que não fosse removido, pois era significativamente eficaz para a redução de suas dores nas pernas. Somente para se ter uma ideia, a frase mais longa que José já havia ditado para mim, por meio da tábua de letras, era assim:
"Diga à enfermeira, quando vier me trocar, para não se esquecer de colocar um cobertor enrolado debaixo das minhas pernas."
De minha convivência com José, por quase um ano, ali naquele ambiente, percebi o quanto era torturante ficar sem aquele cobertor debaixo das pernas, e padecer indefinidamente das dores que ficavam muito bem demonstradas em suas expressões faciais de sofrimento.
Apesar de parecer algo absolutamente simples, esse tipo de procedimento concedeu a José parcelas importantíssimas de paz, em meio à inundação obscena de sofrimentos que era a sua vida. Encarcerado em seu corpo, e constantemente torturado por uma condição atroz, eram frequentes os pedidos de José para morrer. José sempre nos pedia, aos prantos, para morrer.
Tentamos explicar à técnica de enfermagem da utilidade daquele cobertor enrolado debaixo das pernas de José. Ela contudo não estava muito disposta a nos ouvir, e logo replicou que aquilo que estávamos fazendo era absolutamente errado, impróprio, pois aumentaria as dores e o sofrimento dele.
Tentei lhe explicar que aquele cobertor debaixo das pernas era uma medida que vinha sendo tomada há alguns meses, a pedido do próprio paciente, o qual sempre relatava se sentir melhor daquela forma.
Essa mulher, contudo, não estava com muita paciência para dialogar ou ouvir qualquer pessoa que tivesse concepções um pouco diferentes da dela:
- O senhor está se intrometendo, passando por cima de minhas atribuições! Cuide de seu trabalho que cuido do meu!
- Veja bem, Joana...
- Não lhe dirijo mais a palavra! Não quero saber de conversa com o senhor! Vou direto na chefia, falar o que está acontecendo! O senhor vai se entender é com a chefia!
- Faça isso, por favor!
Quando ela disse que iria até a chefia, ela estava dizendo que iria até o chefe dela, o enfermeiro responsável pelo plantão.
Foi até ele e não poupou o tom agressivo para se referir à minha pessoa.
Deixei que conversasse à vontade com seu chefe, que falasse o que quisesse, inclusive percebendo que ela me acusava de uma série de coisas que, na minha visão, não correspondiam à realidade, não faziam o menor sentido.
Depois de ouvi-la, ele veio até mim. Disse-me que a técnica tinha relatado o problema e me indagou:
- E você, tem o que a dizer sobre isso?
- Não tenho nada a dizer. Acho que seria melhor ouvirmos o paciente.
Acatou minha sugestão e fomos até o leito:
- José, você quer que coloquemos o cobertor de volta, debaixo das suas pernas?
Com os olhos José respondeu repetidamente que sim. Ao ter novamente o cobertor debaixo de suas pernas exibiu uma expressão de profunda satisfação.
Olhava fixamente para mim, movimentando repetidamente os olhos, e eu já sabia o que isso significava. Ele queria que eu pegasse a tábua de letras para falar alguma coisa para mim e para o enfermeiro.
Escolheu, em sequência, as letras O, B e R.
- "Obrigado"? É essa a palavra? É isso, José?
Respondeu que sim, e as lágrimas transbordaram de seus olhos. Seu rosto se enrubesceu e inchou. Seu choro era marcado por uma transformação intensa na aparência e nas expressões do rosto. Era um choro intenso, contagiante, carregado de lágrimas e tremores.
Depois de tanta tensão foi muito difícil não embarcar naquelas lágrimas, não se deixar levar por aquele choro torrencial que lavava um pouco (talvez uma parte bem ínfima) da lama ressecada que rotineiramente corroía sua vida naquela UTI.
Fiz o que pude para me conter, mas não resisti. As lágrimas escorreram de meus olhos. Para não intensificar ainda mais a situação, tentei desviar um pouco o foco daquilo tudo, simulando que estava assistindo um pouco à televisão que ficava ao lado de seu leito.
Quando essa torrente de choro passou, tanto a dele quanto a minha, olhei para ele e me despedi, pois minha escala daquele turno já havia se completado.
Meus olhos estavam inchados, eu estava um pouco constrangido, e queria sair rapidamente dali. Passo rápido, desviando o olhar de quem eu pudesse, para que não percebessem o que havia acontecido.
Contudo não teve jeito, uma paciente acenava para mim, querendo me dizer alguma coisa. Era Ana. Ela estava gradativamente se recuperando dos ferimentos resultantes de uma bala perdida em seu abdômen.
Já estava na UTI há uns 40 dias. Como o projétil atingiu seu intestino grosso, teve peritonite, a qual muitas vezes é uma coisa demorada para se resolver, pois pode resultar em infecção generalizada.
Ana não somente teve infecção generalizada, como ficou desenganada por uma parte da equipe. Muitos acreditavam que ela não resistiria. Além de permanecer por 3 semanas completamente sedada, inconsciente, Ana permaneceu ali na UTI, quase todo esse tempo, com a barriga aberta. Contudo, para que suas vísceras não ficassem expostas ao ar livre, era colocado um plástico por cima, o qual evitava tanto a desidratação quanto a perda de calor. Esse procedimento é chamado de Bolsa de Bogotá.
Para quem não está familiarizado com esse tipo de procedimento, como era o meu caso, observar uma pessoa que está com seu abdômen totalmente aberto, e com as vísceras expostas constantemente, não é uma visão nada agradável.
Além dessa aparência de certo modo assustadora, Ana também teve uma série de complicações clínicas, fazendo com que seu quadro se tornasse gravíssimo em várias ocasiões. Então foi um caso muito difícil, e de uma história muito bonita de superação, sobre a qual não entrarei aqui em detalhes.
Ana me chamou, e eu fui até seu leito saber o que ela queria. Para minha surpresa ela não queria que eu lhe ajudasse com nada:
- Estou vendo que o senhor se emocionou com alguma coisa...
Disse isso com um olhar carinhoso, e em um volume bem baixinho, com a voz bem fraca, de quem estava saindo de um turbilhão de acontecimentos que quase acabaram com sua vida.
Nos entreolhamos por alguns segundos. Tentei retribuir seu carinho com meu olhar. Não lhe disse nada. Somente me despedi:
- Vou indo, Ana, querida... Minha hora já deu. Até mais!
Fui para casa caminhando, me sentindo um pouco anestesiado. Era aquela anestesia, aquele torpor de quem acabou de travar uma grande batalha, de quem levou uma surra. Era final de tarde e o sol se punha, mas era ainda meu primeiro ano naquela UTI. Era ainda o amanhecer de minha jornada em um mundo hostil, no qual eu era e seria muitas vezes classificado como um corpo estranho, como uma pequena e isolada aberração.