Saturday, November 18, 2017

Fatos inusitados em narrativas de pacientes

Talvez nenhum outro profissional de saúde se dedique de maneira tão intensa e integral aos pacientes quanto o psicólogo.

Já pude me surpreender tanto com o que ouvi de meus pacientes que faz todo o sentido de vez em quando relatar aqui. Então abaixo vou somente pincelar alguns conteúdos de 3 histórias que acompanhei e como elas são aparentemente, ou de fato, surpreendentes:

1. Uma paciente que tivera toda a sua história de vida permeada por uma orientação heterossexual e de repente conheceu uma mulher, a qual se transformou em sua amiga, e depois de um certo tempo as duas se apaixonaram e passaram a viver juntas. Ambas relatavam que eram heterossexuais até o momento em que se conheceram. Essa paciente sempre me dizia que não tinha, que nunca havia sentido atração sexual por outras mulheres. Dizia que era homossexual somente na relação com essa companheira, e que se um dia isso terminasse ela voltaria para sua vida heterossexual. Àquela época, pelo acompanhamento que ela tinha comigo, em inúmeras sessões, minha hipótese era a de que, havendo um rompimento, ela não voltaria exatamente para a mesma vida que tinha antes. A minha hipótese era a de que, após esse relacionamento, ela passaria também a ter uma orientação homossexual em sua vida. Ela passaria a ter então uma orientação mais bissexual, pois as características de sua companheira tenderiam a ser generalizadas para outras mulheres. Mesmo que a fala dela em relação ao que sentia para com outras mulheres, que não a sua companheira, não fizesse o menor sentido, o próprio relato não deixa de ser interessante e fecundo para análise e algumas reflexões.

2. O caso da paciente que tinha muitos episódios de violência física na relação com seu marido, porém a violência nesse caso geralmente produzia mais malefícios e ferimentos para ele e não para ela. Não os acompanhei ao ponto de saber o que sucedeu depois, e não cabe aqui enunciar os motivos para a interrupção da terapia com eles. Porém, à época, havia um risco muito grande de morte para esse rapaz, pois ela já tinha um histórico judicial de sérias tentativas de homicídio. Em um confronto mais sério, mesmo que começado por ele, havia o risco grande dele se ferir gravemente ou morrer. Como era ela a paciente, e não ele, chegamos, eu e ela, juntos, a essa conclusão. Ela estava em vias de deixá-lo e ele, muito ciumento, oferecia riscos, pois em um outro momento de rompimento já havia abordado-a na rua, armado de uma faca. Ela, porém, era maior, mais pesada e mais ágil do que ele, e dessa vez, diante dessa ameaça com uma faca, na rua, ela conseguiu tomar-lhe a faca das mãos, imobilizá-lo, e ainda dar-lhe uma surra. Sempre que havia um confronto físico entre os dois, ela levava a melhor e ele sempre saía todo arrebentado. Segundo ela, havia marcas indeléveis de sangue nas paredes da casa dela, as quais ela havia tentado lavar, mas mesmo assim não se apagavam. E era sangue dele, devido às brigas que haviam tido e ele, como já mencionei, sempre levava a pior. Quem saía sangrando, e bastante machucado, era sempre ele.

3. Tive um paciente alguns anos atrás, no CAPS, que era assim como vários outros: bem parecido com um Forrest Gump da vida. Era uma pessoa muito diferente e com sérias dificuldades de adaptação social. Em seu histórico escolar havia sofrido bullying por diversas vezes. Tinha 19 anos de idade e não tinha mais dente algum na boca. Usava próteses totais em ambas as as arcadas dentárias. Ou seja: usava dentadura tanto na arcada superior quanto na inferior. Tivera uma vida tão sofrida que até mesmo esse era um indicativo de seu sofrimento: perdera todos os dentes antes de completar a maioridade. Era um menino diferente, muito diferente. Tinha uma origem muitíssimo humilde. Foi retirado, por sua tia, de uma roça muitíssimo pobre, ainda pequeno, com menos de 10 anos de idade. Alguns médicos o diagnosticaram como tendo um retardo mental leve. Outros talvez não tenham feito tal diagnóstico porque percebiam o quanto havia sofrido e o quanto a carga enorme de sofrimento de sua vida havia maculado até mesmo parte de sua capacidade intelectual. Mas não se sabia ao certo o quanto esse provável processo era reversível ou não. Trabalhava na construção civil, como peão de obra, e enfrentava, à época, os constantes abusos e loucuras de sua tia. Ela era uma mulher extremamente controladora, a qual acabava enclausurando-o em casa, ou tentando fazer com que ele se transformasse em alguma coisa que jamais se transformaria: alguém que viesse a fazer e completar um curso universitário. Ele era peão de obra e gostava de ser peão de obra. Sonhava em ser carpinteiro, e ter esse posto dentro de uma obra. Era muito bonito acompanhar, testemunhar sua dedicação ao trabalho em um canteiro de obras. Era também muito interessante ver o quanto tinha pureza, ideais elevados, nobres, relacionados principalmente a querer aprender as coisas, a gostar por exemplo de desenhos, animes japoneses. Era tocante observar que, no fundo de sua solidão absurda, tinha sonhos muito nobres. Um paciente que sem dúvida me marcou, assim como vários outros, dos quais não falarei aqui para que esse texto não fique muito longo e entediante...

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