Quando começo a pensar na situação específica de alguns de meus pacientes, confesso que fico um pouco apreensivo de que eles assistam ao filme. E, por sorte, acho que muitos deles, se vierem a assistir, irão falar do que viram e de como estão se sentindo. E isso é muito importante para que possamos intervir de modo a deixar claro que as consequências para crimes graves, para quem padece de transtornos mentais, no Brasil, são também bastante graves e muito sofridas.
Porque, na prática, existe prisão perpétua no Brasil. Ela ocorre quando alguém que é pobre, e comprovadamente padece de transtornos mentais, comete um crime de grande gravidade. Basicamente irá permanecer, para o resto de sua vida, na ala psiquiátrica de algum presídio. E se não for pobre, ficará também em regime de reclusão, por um bom tempo, em alguma clínica psiquiátrica particular, com doping forçado. Ou seja, sofrerá, durante muito tempo (possivelmente para o resto da vida), um controle químico severo, terá uma vida de zumbi, e terá sua vida em sociedade completamente arruinada, por mais que haja toda uma estrutura técnica e social avançada no setor de reabilitação psicossocial. Porque os casos de pessoas com transtornos mentais, que cometem crimes graves, talvez sejam os mais delicados e severos.
Já atendi muitos pacientes que me comunicaram desejos genocidas, de sair matando pessoas a esmo, ou de matar a própria família e se matar. Quando atendo a casos assim, nos quais existe esse tipo de desejo ou ameaça, faço o que posso para mostrar a gravidade das consequências, e do quanto de sofrimento que produzirão, para si e para diversas pessoas.
Porque é fundamental informar. Não basta somente ouvir, demonstrar empatia e acabar, no final das contas, sem querer, gratificando intenções e planos para cometer atrocidades. O manejo técnico, nessas e em várias situações clínicas, se dá nos detalhes. É fundamental ouvir a maioria das coisas que os pacientes dizem, mas não tudo o que dizem ou pretendem dizer. É necessário saber certinho se estamos entrando em detalhes desnecessários e talvez nefastos, perigosos. Se estamos, sem querer, adentrando um terreno no qual o paciente se regozija em narrar para nós os detalhes de seus desejos e de como cometerá suas atrocidades. Temos de ser companheiros sem sermos cúmplices.
E fico também preocupado com aqueles que não estão mais em um espaço terapêutico, em um espaço de terapia pela fala, e com pessoas que estão na iminência de uma crise psicótica, e possam se sentir inspiradas a cometer algum ato de violência grave depois de assistirem a um filme como Coringa.
Mas as fontes para inspiração são muitas. Não podemos conceder essa onipotência a esse filme. As pessoas também se inspiram, e muito, quando veem alguma notícia de atentados em massa, de alguém que entrou em algum lugar armado e matou diversas pessoas a esmo, e se matou, ou de pessoas que mataram suas famílias e se mataram. E sei que algumas pessoas ficam particularmente inspiradas pela possibilidade de depois serem classificadas como incapazes, como doentes. E por isso, reitero, que sempre deixo claro a meus pacientes que doença não é álibi.
Mas outro problema crucial também é o acesso facilitado a armas de fogo. O desastre, de modo geral, somente se completa se houver acesso facilitado a armas de fogo, como ficou também muito bem ilustrado pelo filme. Dificilmente alguém consegue cometer um crime grave, e de grandes proporções, se não houver acesso a armas de fogo. E neste aspecto os norte-americanos estão ainda muito mais suscetíveis do que nós brasileiros, simplesmente porque lá é muito mais fácil ter o porte de armas de fogo.
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