Sunday, October 23, 2016

Hipnose: a pobreza das evidências

Talvez um dos maiores problemas da hipnose seja a pobreza das evidências científicas. Ainda não sabemos o que é exatamente a hipnose. É um estado alterado de consciência, obtido por meio de uma técnica especial? Ou é somente um estado de maior concentração da atenção, o qual pode ser obtido pelos mais variados meios, tais como: ouvir e obedecer reiteradamente a sugestões simples; ouvir ou acompanhar uma narrativa, uma estória ou uma apresentação envolvente, a qual pode ser um filme, um livro, uma peça de teatro ou mesmo a pregação de um pastor fervoroso? Ou então esse estado de concentração poderia ser obtido também quando cantamos, dançamos, quando nos envolvemos um pouco mais profundamente com qualquer atividade que possa nos fazer esquecer um pouco do mundo à nossa volta...

Se o que chamam de hipnose pode ser obtido por meio dos mais variados procedimentos, e não depende de uma técnica específica, especial, por que continuar chamando isso de hipnose? Por que continuar acreditando que alguns poucos, os ditos iniciados, seriam os grandes condutores das alterações extraordinárias que prometem a preços exorbitantes?

E se desejamos provar que alguns comandos e sugestões reiterados ao pé do ouvido produzem alterações intensas no comportamento e nas sensações das pessoas, teremos de submeter esse procedimento a um teste chamado de teste placebo. Para se provar que uma técnica ou um medicamento é efetivo, eficaz, eles devem passar no teste placebo. Deve-se provar que são mais eficazes do que mero placebo, do que a mera crença na eficácia de uma substância inócua. Mas como provar que a hipnose é efetiva, eficaz, se ela é, por definição, uma espécie de placebo?

Em seu livro Snake Oil Science, Barker Bausell salienta que:

"A hipnose e o efeito placebo são tão intensamente dependentes dos efeitos da sugestão e da crença que é difícil imaginar como um controle placebo, com credibilidade, poderia ser concebido para um estudo sobre a hipnose."


Há dois grandes ramos de teorias e achados que divergem sobre o que seria a hipnose. Há as teorias de estado e as teorias de não-estado. Para as teorias de estado o estado hipnótico é um estado alterado de consciência, e a indução hipnótica é uma técnica especial que conduz a esse estado, o qual é capaz de produzir efeitos inusitados, e com grande potencial para a cura de diversos problemas de saúde. Para as teorias de não-estado o estado hipnótico não é um estado alterado de consciência, e portanto não é diferente de vários outros fenômenos de nossa vida cotidiana tais como: um alto de nível de concentração de nossa atenção ou um alto nível de envolvimento com nossos papéis e funções sociais.

Não há nem mesmo consenso científico quanto à definição do que seja a hipnose. Se o fenômeno não está nem mesmo definido, como é que podemos afirmar que existem comprovações de sua existência ou de sua eficácia para os mais diversos males humanos, como muitos hipnólogos gostam de afirmar? Nem sabemos se ela existe, ou se existe do que jeito que dizem que existe. O que dizer então da eficácia de algo que ninguém nem sabe definir?

Muitos praticantes ou apreciadores da área costumam citar um aspecto da hipnose, para o qual já haveria evidências científicas conclusivas: a questão da anestesia e analgesia hipnóticas.


A própria Psicologia, como ciência, tem muitos problemas de replicação. Imaginem então como é esse campo da hipnose. A pesquisa sobre hipnose padece de um volume muito maior de problemas em relação a replicação.
Theodore X. Barber (1927 - 2005) foi, com suas pesquisas, um dos grandes responsáveis por trazer a hipnose mais para perto do campo científico, conduzindo uma série de importantes experimentos nas décadas de 60 e 70, principalmente.


Em um de seus experimentos estabeleceu três condições para o procedimento de anestesia: nenhum tipo de intervenção, “anestesia” por meio de indução hipnótica e sugestões simples.

A sugestão simples era bem boba, bem básica: "Se você tentar imaginar que a água está agradável e tentar pensar que não está desconfortável, tenho certeza de que você será capaz de continuar imaginando assim e que não fracassará no teste".

A estimulação dolorosa, por sua vez, era feita por meio da imersão do antebraço em uma água salinizada, por volta de ser 0º C ou menos.

Os resultados são muito interessantes. Não houve diferença entre a indução hipnótica e a sugestão simples. Houve diferença entre esses dois procedimentos e a ausência de qualquer tipo de intervenção.

Um experimento como esse nos diz basicamente que, para se obter anestesia, não há a necessidade de indução hipnótica, de uma técnica especial que muitos chamam de hipnose, e isso portanto tira o foco da hipnose para esse tipo de procedimento.
Pelo que já pude ler dos textos de Barber, percebo esse achado como uma constante em vários de seus experimentos: a hipnose não é uma técnica especial, diferenciada, muito diferente de simples sugestões.

Agora, porém, o outro lado das evidências:

Em 1971, Martin Orne e Frederick Evans fizeram um experimento, intitulado "O hipnotizador desaparecido”, utilizando-se de dois grupos de sujeitos: altamente hipnotizáveis e simuladores. Realizaram, primeiramente, o procedimento de indução hipnótica padrão e os próprios experimentadores simularam então uma interrupção de energia. Retiraram-se, como se fossem à busca da solução de falta de energia elétrica, abandonando os sujeitos na sala.

O resultado é que, após um certo tempo, os simuladores abriram os olhos, pararam de representar e também deixaram a sala, ao contrário dos sujeitos altamente hipnotizáveis, os quais permaneceram prostrados em seus lugares e, somente muito mais tarde, e aos poucos, vieram a abrir os olhos, levantar-se e também sair.

Esse tipo de evidência pesa para o lado das teorias de estado, ou seja, para o lado de quem acredita que a hipnose é um estado especial, um estado alterado de consciência, pois esse tipo de resultado é uma evidência de que o sujeito hipnotizados não estão simulando e de fato, aparentemente, adentraram um estado de consciência muito diferenciado.

Então um dos grandes problemas é a pobreza das fontes independentes. São poucas as replicações existentes. Onde estão as replicações de experimentos como esses que foram citados, por meio de fontes independentes, realizadas por outros pesquisadores, em outros contextos? Se não existem estudos de replicação, não há a possibilidade de consenso científico, não há evidências conclusivas sobre o que é a hipnose. Portanto a hipnose continua sendo um fenômeno ainda muito mal definido, controverso, e que promete efeitos extraordinários. Isso funciona como um grande imã para charlatães e aproveitadores de toda espécie.

Para finalizar, não nos esqueçamos de uma frase que se tornou popular por meio do trabalho de divulgação científica de Carl Sagan: "alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias."

Duas leituras que recomendo:

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