Thursday, October 06, 2016

A polidez - em complemento a um texto de Leandro Karnal

O texto de Karnal no link abaixo:


E eis também a assertividade: o constante esforço da polidez sem fingimento e da sinceridade sem rispidez.
Mas, a título de complementação, vamos também um pouco de Comte-Sponville, em sua obra, o “Pequeno tratado das grandes virtudes”:
“As boas maneiras precedem as boas ações e levam a estas.”
(...)
“A polidez é como uma moral do corpo, uma ética do comportamento, um
código da vida social, um cerimonial do essencial. “Moeda de papel”, diz Kant, mas que é melhor do que nada e que seria tão louco suprimir quanto tomar por ouro verdadeiro; uns “trocados”, diz ele também, que não passam de aparência de virtude, mas que a tornam amável. E que criança se tornaria virtuosa sem essa aparência e essa amabilidade? A moral começa, pois, no ponto mais baixo – pela polidez -, e de algum modo tem de começar.”
(...)
““A polidez”, observava La Bruyère, “nem sempre inspira a bondade, a eqüidade, a complacência, a gratidão; pelo menos dá uma aparência disso
e faz o homem parecer por fora como deveria ser por dentro.” Por isso ela é insuficiente no adulto e necessária na criança. É apenas um começo, mas o é. Dizer “por favor” ou “desculpe” é simular respeito; dizer “obrigado” é simular reconhecimento. É aí que começam o respeito e o reconhecimento.”
(...)
“A polidez é anterior à moral, e a permite. “Ostentação”, diz Kant, mas moralizadora. Trata-se, primeiro, de assumir “os modos do bem”, não, claro, para contentar-se com eles, mas para alcançar, por meio deles, o que eles imitam – a virtude – e que só advém imitando-os. “A aparência do bem
nos outros”, escreve ainda Kant, “não é desprovida de valor para nós: desse jogo de dissimulações, que suscita o respeito sem talvez merecê-lo, pode nascer a seriedade”, sem a qual a moral não poderia se transmitir nem se constituir em cada um. “As disposições morais provêm de atos que lhes são semelhantes”, dizia Aristóteles. A polidez é essa aparência de virtude, de que as virtudes provêm. Portanto, a polidez salva a moral do círculo vicioso (sem a polidez, seria necessário ser virtuoso para poder tornar-se virtuoso) criando as condições necessárias para seu surgimento e, mesmo, em parte, para seu pleno desenvolvimento.”
(...)
Um grosseirão generoso sempre será melhor do que um egoísta polido; um homem honesto descortês melhor do que um crápula refinado. A polidez nada mais é que uma ginástica de expressão, dizia Alain; é dizer claramente que ela pertence ao corpo, e, é claro, o coração ou a alma é que prevalecem. Inclusive, há pessoas em que a polidez incomoda, por causa de uma perfeição que inquieta. “Polido demais para ser honesto”, diz-se então, pois a
honestidade às vezes impõe ser desagradável, chocar, trombar. Mesmo honestos, aliás, muitos ficarão a vida toda como que prisioneiros de suas boas maneiras, só se mostrando aos outros através da vidraça – nunca totalmente transparente – da polidez, como se tivessem confundido de uma vez por todas a verdade e o decoro. No estilo certinho, como se diz hoje em dia, há muito disso. A polidez, se levada por demais a sério, é o contrário da autenticidade. Os certinhos são como crianças grandes bem-comportadas demais, prisioneiras das regras, enganadas quanto aos usos e às conveniências. Faltou-lhes a adolescência, graças à qual nos tornamos homem ou mulher – a adolescência que remete a polidez ao irrisório que lhe é próprio, a adolescência que está pouco ligando para os usos, a adolescência que só ama o amor, a verdade e a virtude, a bela, a maravilhosa, a incivil adolescência! Adultos, eles serão mais indulgentes e mais sensatos. Mas, enfim, se é absolutamente necessário escolher, e imaturidade por imaturidade, é melhor, moralmente falando, um adolescente prolongado do que uma criança obediente demais para crescer – é melhor ser honesto demais para ser polido do que polido demais para ser honesto!
O saber-viver não é a vida; a polidez não é a moral. Mas não quer dizer que não seja nada. A polidez é uma pequena coisa, que prepara grandes coisas. É um ritual, mas sem Deus; um cerimonial, mas sem culto; uma etiqueta, mas sem monarca.”

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