Em maio de 2010, quando comecei a trabalhar na UTI, Pedro (nome fictício) já lá residia há cerca de seis meses. Tinha esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença degenerativa, progressiva, cuja sobrevida é de mais ou menos 5 anos após o diagnóstico.
Os pacientes com ELA vão perdendo todos os seus movimentos, inclusive a capacidade de respirar sem a ajuda de aparelhos. Porém sua consciência costuma permanecer intacta. É a doença da qual padece Stephen Hawking, cujo tempo de sobrevivência, após seu diagnóstico, está completamente fora da curva. Ou seja: ele tem sobrevivido muito além da média, devido ao emprego dos maiores avanços tecnológicos disponíveis, além de cuidados intensivos extremamente onerosos e completamente inacessíveis à maioria da população.
Pedro somente movimentava os olhos, e era assim que se comunicava, por meio de sim ou não, com a equipe. Seu olhar para a direita significava sim. Seu olhar para a esquerda significava não. Pedro não tinha nem mesmo o controle de suas piscadas. Era incapaz de piscar voluntariamente. Então restou-lhe somente esse movimento ocular da direita para a esquerda e vice-versa.
Como seu olhar para a esquerda era mais evidente, como o movimento para esta direção era mais evidente, mais fácil de ser executado, optamos por escolher essa direção como sendo o não, já que o sim seria simplesmente, muitas vezes, a ausência de qualquer movimento. Pedro tinha uma dificuldade muito maior de movimentar seus olhos para a direita.
Cheguei devagarinho e bem aos poucos fui conhecendo Pedro. A comunicação somente com o olhar é de uma intensidade afetiva singular: é um pouco hipnotizante, e pode produzir um pouco a sensação de que estamos sendo tragados pela interação. Não é comum adentrar o universo de pessoas desconhecidas, olhando-as fixamente. É uma outra forma de começar a conhecer alguém, de se vincular, de se afeiçoar. E é bem diferente dos olhares que trocamos com algum animal de estimação, pois esses não sabem ou não aprenderam, em sua história, a se comunicar de modo tão específico quanto um ser humano.
Meses depois Pedro era capaz de se comunicar comigo, ao ponto de conseguir expressar uma série de desejos que compunham a infinitude de suas carências naquele contexto cruel.
Por meio de uma tábua de letras, com as frequências das letras, da língua portuguesa, em ordem decrescente, eu construía, juntamente com Pedro, letra por letra, palavra por palavra, do que ele desejava comunicar.
Houve um dia em que ele me comunicou que queria jogar Meg...(?). As primeiras três letras eram essas aí. A partir das primeiras letras eu sempre tentava descobrir quais seriam as outras. Mas como eu não me lembrava de nenhum jogo cujo nome começasse com essas três letras, então perguntei para algumas pessoas da equipe:
- Pessoal, que jogo é esse, que começa dessa maneira: Meg? Meg... o quê?
- Mega Sena! - gritou alguém lá no fundo.
- É isso, Pedro? Mega-sena? - perguntei-lhe, por mais de uma vez, como sempre fazia, para poder me certificar da resposta certa.
Pedro não mexia seus olhos. Ou seja: isso significava que ele queria jogar na mega-sena!
E quase toda semana ele me passava os números que queria jogar na mega-sena. Em algumas vezes fui eu mesmo à lotérica para fazer os jogos que ele queria. Em outras ocasiões, quando não podia ir à lotérica, telefonava para seus familiares, para que eles fizessem os jogos pra ele.
Na segunda vez em que ele me ditou os números percebi que eram os mesmos números da primeira ocasião.
- Uai, Pedro, são sempre os mesmos números?
Respondeu com um discreto sinal de sim. E depois, conforme eu perguntava, foi confirmando que já vinha apostando nesses números há vários anos.
- Mas rapaz, agora que você tem uma conexão direta com o além, que você pode perguntar para o além em qual número jogar, por que ainda continua a apostar nesses velhos números? - brinquei, e ele sorriu...
Continuamos interagindo, nos comunicando, e após algum tempo ele me falou que gostaria de tentar apostar em novos números.
Quando ele me ditou esses novos números deixei que se alimentasse em mim uma suspeita bizarra e bem pouco provável: agora nesse estado de completa imobilização, ele tinha contato direto com alguma outra dimensão que lhe forneceria números muito prováveis de serem sorteados. Pedro estava muito próximo de realidades que eram completamente inacessíveis a nós mortais...
E se ele captasse os números corretos? Se isso ocorresse sairiam reportagens nos noticiários televisivos do mundo todo. Ele não somente ficaria rico. Seria notícia no mundo inteiro. Eu me regozijava em pensar sobre isso tudo, apesar de francamente acreditar que não passavam de fantasias com as quais eu simplesmente me divertia.
Cheguei inclusive a comunicá-lo sobre essas minhas fantasias e pudemos rir bastante juntos.
No final das contas a conta para Pedro teve um saldo imensa e inaceitavelmente doloroso. Nunca chegou nem perto de acertar na mega-sena, e sua capacidade de movimentação dos olhos logo se degenerou. Cada dia que passava Pedro tinha mais dificuldades para se comunicar com movimentos oculares. Portanto a frequência de suas comunicações se tornou bem mais irregular. A regularidade maior, agora, era a do choro, era a expressão muito frequente de que seu sofrimento era intenso, constante, e simplesmente irremediável.
Pedro ficou internado em nossa UTI durante três anos e meio, dos quais somente no primeiro ano é que foi capaz de se comunicar de maneira regular e frequente. Posteriormente, durante cerca de dois anos e meio, a regularidade, a rotina de Pedro, em suas tentativas de comunicação conosco, era o choro, a expressão de sofrimento intenso e constante.
Pedro, essa pessoa inclusive da qual não posso mencionar o verdadeiro nome, foi o ser humano que mais vi sofrer nessa vida. Eu nunca havia testemunhado tanto sofrimento, e tanto desprezo, desdém, de uma sociedade mais sensível à manutenção de algumas tradições notoriamente antiéticas e desumanas, do que preocupada com os sofrimentos evitáveis, e inaceitáveis, de seus próprios membros.
Nesses três anos e meio em que esteve internado na UTI pediu inúmeras vezes para morrer. Sofrimento eterno, e sem alívio: eis a definição do padecimento no inferno e o que Pedro viveu durante 3 anos e meio.
Não ganhou e, via de regra, nem nunca ganharia na mega-sena. Ganhou, em três anos e meio, a constante negação, do estado brasileiro, de seus direitos sobre seu corpo e sua vida. O governo investiu, nesses três anos e meio, contra a vontade de Pedro, cerca de 3 milhões de reais em seu sofrimento intenso, e completamente inaceitável por qualquer ser humano capaz de um mínimo de empatia e compaixão.
Pedro não ganhou na mega-sena. Não recebeu uma fortuna com a qual iria possivelmente resolver muitos dos seus problemas e de seus familiares. Mas o estado brasileiro investiu uma pequena fortuna em seu sofrimento atroz: quantia que ultrapassa a soma dos rendimentos de todos os seus familiares, durante toda a sua vida.
E essa tem sido infelizmente a realidade de muitos brasileiros no final de sua vida...