Saturday, December 31, 2011

A questão da dignidade humana e do direito de morrer


Novamente estamos tocando em questões de bioética. O suicídio é condenável se provoca males maiores do que evita. Se o suicida, com seu ato consumado, deixa em sofrimento extremo a pessoa ou o grupo de pessoas as quais dependiam dele; e se isso provoca um sofrimento maior do que seu próprio sofrimento enquanto vivo, então é um ato moralmente condenável. Agindo assim, em termos sociais e do bem de todos, o suicida está agindo errado e provocando muitos males em tese evitáveis. Por outro lado, se não há dignidade, se o grupo social no qual o sujeito está inserido não é capaz de lidar ou amenizar seu sofrimento extremo; se o que impera é um sentido absurdo de solidão e isolamento, sem qualquer possibilidade de amparo social à sua dor, logo fica assim justificado moralmente seu direito de morrer:

“Se a aliança que une o homem à sociedade for considerada, será óbvio que cada contrato é condicional, deve ser recíproco, isto é, supõe vantagens mútuas entre as partes contratantes. O cidadão não pode ser ligado ao seu país, aos seus associados, mas pelos laços de felicidade. Se estes laços são cortados em pedaços, a este homem deve ser restabelecida a liberdade. 

A sociedade, ou aqueles que representá-lo, ao usá-lo com severidade, ao tratá-lo com injustiça, não tornam assim a sua existência dolorosa? A melancolia e o desespero lhe roubam o espetáculo do universo? Em suma, por qualquer razão que seja, se ele não é capaz de suportar seus males, deixe-o sair de um mundo que para ele é somente um deserto terrível.” (D'Holbach 1970, 136-137)

Esta questão está intimamente ligada a outros textos já postados aqui, principalmente àqueles relacionados à eutanásia, sofrimento e sentido da vida.

Referências

D'Holbach, Baron. The System of Nature, or Laws of the Moral and Physical World, Volume 1, Robinson (trans.), New York: Burt Franklin, 1970.

Saturday, December 17, 2011

A ética do vegetarianismo

Na diminuição do consumo de carne é possível encontrar uma forma mais ética de alimentação, pois tal alternativa:

1. É mais ecológica: um quilo de proteína vegetal consome muitas vezes menos energia, água e área.

2. É mais econômica. É mais barato, o que por si só justifica uma produção maior de alimentos com os mesmos recursos, logo capacidade para alimentar um número muito maior de pessoas.

3. É mais humana. Não diz respeito necessariamente a manter este ou aquele animal vivo, mas tem como questão fundamental o proposito de se eliminar sofrimentos evitáveis. As formas atuais de criação e abate ainda impõem muito sofrimento aos animais dos quais nos alimentamos.

4. Fora também as várias evidências de que é mais saudável.

Por outro lado, argumentos tais como: “não como nada que tenha de ser morto”, ou que já foi vivo; ou, como diz a Xuxa: “não como nada que tenha rostinho”- são de fato ridículos. Quem for vegetariano por essas razões merece piada e está obviamente equivocado. Isso, contudo, não invalida os argumentos filosóficos que sustentam a prática do vegetarianismo.


Importante: Deve-se fazer, contudo, as devidas ressalvas em relação à ingestão de vitamina B12, a qual depende fundamentalmente de origem animal e é importantíssima em termos nutricionais.  O vegetariano estrito, o qual não ingere qualquer tipo de alimento de origem animal (nem mesmo ovos, leites e derivados), deve portanto atentar para a suplementação desta vitamina, cuja falta pode acarretar danos sérios e irreversíveis à saúde.


Alguns links com referências interessantes para este debate:
           



                        Peter Singer - referência filosófica importante para este tema




Friday, December 09, 2011

Brasília é uma cidade triste



Brasília é uma cidade triste: ninguém costuma aparecer para ajudar a empurrar um carro velho ou com problemas pra pegar. 

Geralmente tem de se implorar por ajuda, a qual costuma vir com contragosto e cara feia. Na maior parte do Brasil é diferente: junta um povaréu a empurrar seu carro, e uma alegria e festa bonita quando o bichinho pega... 

Que pena, Brasília, que pena...

Tuesday, November 08, 2011

“Ouça seu coração”? - sobre o Romantismo, suas virtudes, ilusões e perigos




Eis, no título, entre aspas, outro comando do senso comum, o qual concebe os sentimentos como mais importantes do que a racionalidade. Primeiramente, é interessante mencionar a origem moderna desta concepção. Em termos modernos tudo começa com o Romantismo, na segunda metade do século XVIII. 

Os românticos, em contraposição ao espírito iluminista, convocam o sentimento e as paixões como o centro de seu projeto de elevação do ser humano. Para os românticos a verdade se encontra em tudo o que é marginal, desviante, diferente, não-massificado, natural, descontrolado, louco, desmedido, alterado, espontâneo, original e animalesco. É a valorização do sentimento e das paixões, em oposição à racionalidade e às convenções. 

Pregam o retorno a um estado de natureza perdido. Para o romântico, natural é sinônimo de verdadeiro e saudável; o respeito à individualidade rompe com qualquer convenção. O reino da verdade está na espontaneidade, na diferença, no comportamento das crianças e dos animais. Ser romântico é se deixar arrebatar, romper com limites, ir além do concebível, para deixar que a imaginação e a natureza, com sua força atômica, tomem o timão da vida; é surpreender-se, trair-se, e implodir com todo e qualquer espírito retilíneo e de coerência; é sempre estar disposto ao diferente, ao mutável, ao imprevisível; é entregar-se para a intensidade da vida, para que dela se usufrua de sua essência mais crua, nua e sem pudor.

O Romantismo é o movimento que deu um grito desvairado de liberdade em direção ao projeto iluminista de controle de tudo. É o movimento desesperado na direção do amor louco que habita os porões de todas as convenções e tentativas de padronização do humano. É o grito do indivíduo em sua desmedida busca de si mesmo no olho do furacão de seus infinitos mistérios, mergulhados na carne viva das paixões e dos sentimentos. 

Como falar de Romantismo sem se perder, sem fazer com que a linguagem entre em ebulição, sem se empolgar, sem paixão? Sem ouvir música, sem música sendo bombeada para dentro da cabeça, e ela em vulcão a se queimar pelas lavas do amor que espirram do coração? Como falar de Romantismo sem a vertigem psicotrópica de tudo o que os homens já cultivaram de alterações de consciência no parquinho de seus corpos recheados de sexualidade e mistério? Como falar de Romantismo sem explodir com os exércitos da razão e da percepção? Como muito bem sempre desejaram os românticos, se as portas da percepção fossem abertas, veríamos tudo como é: infinito, escancarado, nascente e voluptuoso.

O Romantismo, em seu estado de gema, na sua nascente, foi concebido como “tempestade e ímpeto”, assim que era chamado o movimento. Há muita energia concentrada e libertação dessa energia. Não se produz Romantismo sem arrebatamento ou até sem um certo exagero bizarro. O Romantismo da gema praticamente nada tem de semelhante com o que o senso comum define. Este é um romantismo com letra minúscula mesmo. É a massificação da concepção original de Romantismo, sua pasteurização vulgar, enjoativa e cafona. 

Sim, faz parte do Romantismo o elogio do amor erótico. Para os românticos é a via do corpo (e não a da mente) que trará a liberdade, e com tudo de animalesco que ele traz junto: sexo, troca de secreções, e sua finitude escancarada, por que não? Assim, o corpo liberta, o amor, a comunhão com o outro liberta, seja por meio do sexo ou o êxtase psicotrópico e espiritual, este nunca desabraçado do corpo: a volúpia de alguns rituais religiosos, principalmente os pré-cristãos ou quaisquer rituais cristãos renovados e dispostos a se misturar com as diversidades que navegam pela realidade humana.

O senso comum traça um perfil muito pobre do que seja o espírito romântico, uniformizado a demonstrações piegas e vulgares, as quais vangloriam modos padronizados de amor, atirando à latrina da memória a marginalidade, a loucura, o horror, o bizarro e a desmedida em que habitam a “tempestade e o ímpeto”.

Não nos esqueçamos, para o Romantismo, pleno, da gema, há verdade na droga, no louco, no sexo, no corpo, no mendigo, no marginal, no êxtase. É virtuosa a experiência dos limites. Essa busca, ressaltemos, não é imune de autodestruição. Românticos muito frequentemente ultrapassam todos os limites e vão lá se enamorar da fronteira última, a morte. 

Desde que surgiu o Romantismo, as artes aí mergulharam e pouco conseguiram, até hoje, se desfazer de seus aromas. Mais de duzentos anos depois, quase tudo o que é arte ou artista ainda exala Romantismo. E como criar sem se libertar, sem se entregar aos rincões mais remotos de nossos horrores, escondidos em nossa essência mais espontânea e animalesca? Como criar sem extrapolar, sem transgredir com padrões preestabelecidos?

É esse o buraco existencial em que o artista se mete, e em que alguns se perdem e se matam. Como, nessa empreitada de louco, de ser artista contemporâneo, não bater de cara com o botãozinho da autodestruição? Como não esbarrar nele sem querer? Como saber o momento de parar? 

E assim, reparem nas toneladas de exemplos, muitos artistas morrem cedo. Alguns deixam legados profundos, o quais foram construídos de modo meteórico. E muitos outros morrem anônimos e são rapidamente esquecidos.

Mas ouvir o coração tem também algumas outras nuances, as quais deixarei para um outro texto...



Tuesday, October 18, 2011

“Posso ser amigo de meu terapeuta”?



Muitos se perguntam, por que não? Qual é o problema? Já ouvi de alguns pacientes:

- Adriano, quero você como meu amigo!

Outros exageram:

- Eu quero que você faça parte de minha família...

Costumo responder, emendando um trocadilho:

- Amigo terapeuta enfraquece a amizade; e terapeuta amigo enfraquece a terapia.

Ser terapeuta e dois tristes preços a pagar:

1. às vezes perder amigos que queriam ser tratados como pacientes.

2. às vezes perder pacientes que queriam ser tratados como amigos.


Monday, October 17, 2011

Gianecchini e o câncer como uma dádiva



Muitos devem ter ficado impressionados com a seguinte e notória declaração de Reynaldo Gianecchini sobre o câncer do qual padece: "Acredito que isso possa ser uma dádiva para mim".

É uma declaração forte. Demonstra força de espírito. É admirável e ao mesmo tempo impactante. Traz à tona alguns conceitos já debatidos aqui nesse blog. Por exemplo, a sentença geralmente atribuída a Nietzsche: “o que não mata, fortalece”; ou a questão da utilidade ou não do sofrimento.

Traz à tona o kardecismo, muito presente nas declarações de Gianecchini, o qual concebe que todo sofrimento é útil, que todo sofrimento tem finalidade ou sentido, os quais dizem respeito a um processo de evolução que se remete a outras vidas, em outro de plano de existência.

Neste sentido, o kardecismo age como um lenitivo, como consolação para se aceitar melhor o sofrimento e os males do mundo. Para quem segue esta crença é valioso este tipo de concepção. O sentimento é de produção de sentido e finalidade para a existência: “Não estamos aqui por acaso, estamos aqui para evoluir. Mesmo nosso sofrimento, por mais extremo e incompreensível que possa parecer, é justificado por esse processo de evolução, o qual se remete para além desta vida encarnada”.

Confesso, não me sinto muito à vontade com esse tipo de ideia. O problema é a espiral de sofrimento extremo e injustificado para a qual muitos pacientes são tragados, sem qualquer possibilidade de escolha sobre seu próprio corpo e sua vida.

Aprender algo valioso com uma enfermidade e poder assim se fortalecer como ser humano é sem dúvida louvável. Contudo, conceber que todo sofrimento tem finalidade para quem sofre, pode ser também, em alguns contextos, muito perigoso. Exemplifico: o contexto de muitas UTIs pelo mundo afora. O que ocorre nesses contextos? Quando há a presença de pacientes terminais, ocorrem dilemas acerca de se prolongar ou não uma vida condenada a sofrimentos extremos e irreversíveis.

Até mesmo o Papa João Paulo II escolheu nesse tipo de situação. Escolheu morrer em casa. Escolheu não ir para uma UTI, não ser entubado, não prolongar sua vida desnecessariamente, já que estava condenada a se perpetuar em sofrimentos. Acreditar que a vida deve ser vivida, prolongada, a qualquer custo, é algo que nem mesmo o papa fez.

Como já defendi em outro post, acho mais prudente se pensar que todo sofrimento é na verdade inútil, e que a questão central não é essa. Não se trata de utilidade ou inutilidade. Trata-se de se pensar em sofrimentos evitáveis e inevitáveis. Há sofrimentos evitáveis e inevitáveis e a fronteira entre uns e outros é móvel: o que é inevitável hoje, pode não ser amanhã. Há como se evitar uma série de sofrimentos sem que isso enfraqueça quem sofre ou coisa similar. Para isso é que existe a constante produção de novas técnicas e saberes, além da simples utilização de sensatez e empatia, é claro. Nem toda sobrevida é fortalecedora.

A ocupação de um leito de UTI custa cerca de mil dólares por dia. Muitas pessoas, pacientes terminais, padecem de sofrimentos absurdos nesse tipo de situação, tendo sua vida prolongada indefinidamente, sem qualquer consideração pelo volume obsceno de sofrimentos a que são submetidas. Ficam muito geralmente encarceradas em seus corpos e leitos, sem qualquer possibilidade de escolha sobre si mesmas, sobre seu destino. Sacralizar a vida humana em desfavor do sofrimento é masoquismo ou insensibilidade às dores e direitos fundamentais das pessoas sobre seus próprios corpos e vidas.

A ocupação de um leito de UTI não custa somente mil dólares por dia. A ocupação desse leito por quem já está condenado e sofrendo horrores à sua revelia, custa também seu próprio sofrimento (e de seus próximos) e a vida de várias outras pessoas que poderiam ter sido salvas caso esse mesmo leito estivesse livre. A ilegalidade da eutanásia, sobre a qual já falei aqui também, pode em muitos casos transformar uma UTI em um ambiente duplamente desumano, antieconômico e antiecológico.

Duplamente desumano, pois:

1. Não respeita o direito de quem padece de terminalidade a uma morte tranquila e livre de sofrimentos evitáveis, desnecessários. Impõe a obrigação da vida sob todo e qualquer custo. Viver deixa de ser somente um direito e passa a ser uma obrigação. E a vida, assim entendida, não é de quem vive, mas sim do estado. Sua vida, neste contexto, não é sua não; é do estado.

2. Deixa assim morrer outros pacientes, recuperáveis, justamente pela ocupação de leitos por quem pede para morrer de modo tranquilo e já está condenado.
É desumano com quem está condenado, sem direitos sobre si e sofrendo no ambiente de UTI, assim como com quem vem a falecer por falta desses mesmos leitos. Os aspectos antieconômicos e antiecológicos são facilmente dedutíveis a partir do que já foi exposto.

A sacralização da vida humana e o prolongamento irracional de sobrevidas podem ser piores do que tortura. Nos mais notórios métodos de tortura já produzidos pela humanidade, a vida acabava com uma parada cardiorrespiratória. Em uma UTI isso tende a se prolongar, pois há muito geralmente a opção pela ressuscitação. Ou seja, a tortura não termina. Quase nunca existe a importante distinção entre parada e morte. Morte: trata-se de terminalidade, logo o paciente está morrendo, e não parando. Logo, não cabe ressuscitação. Parada: o paciente não é terminal, tem condições de se recuperar. Neste caso uma vida é salva, e o bem se produz. No primeiro, um sofrimento é prolongado, e o mal se perpetua.

Portanto, a declaração de Gianecchini é muito bonita e elevada se não nos esquecermos deste outro lado da história: o de respeitarmos o direito fundamental que cada um de nós tem sobre nossas vidas e nossos corpos. A importância de se respeitar a escolha das pessoas e a variação de crenças.

Dizer que todo sofrimento é útil (ou dádiva) e lutar contra a eutanásia voluntária, contra o direito de pacientes terminais decidirem sobre o destino de suas vidas, é autoritarismo e egoísmo. Não respeita o que é mínimo em termos de direitos individuais.

Wednesday, October 12, 2011

Emboscado pelos nazistas


Não sei por que esses caras, esse trio germânico (Es, Ich und Über-Ich), resolveram me jogar, numa noite dessas, no meio dos nazistas.

Em uma emboscada, capturaram a mim e ao meu irmão. Como tentou fugir, foram mais maus com ele. Quando vi, ele estava sendo arrastado, inconsciente e, segurando pelas pernas, batiam com sua cabeça num pilar, para matá-lo. Foi o tempo de eu poder gritar, soluçando, em alemão, que era meu irmão: "Mein bruder!".

Soltaram-no imediatamente, e ele milagrosamente acordou e saiu cambaleando.

Acordei, ofegante, enclausurado no trem que iria para algum campo de concentração...

Ou melhor, depois de poucos segundos, me reconheci no absurdo conforto de meu quarto.

Situação gravíssima


Esta noite (em um sonho),

sozinho, em um lugar absolutamente remoto do planeta,

diante de um perigosíssimo psicopata serial killer,

ao lhe dar voz de prisão,

tive uma de minhas terríveis e incapacitantes crises de tosse.

Resultado: quase morri...

Wednesday, October 05, 2011

Monday, September 26, 2011

"Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você"?




Eis mais um enunciado do senso comum. Porém, um enunciado interessante, pois é geralmente classificado como uma regra moral fundamental: “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”.

Se a ontologia é o campo filosófico de reflexões acerca do “ser”, a moral é o campo do “dever ser”. Reflexões acerca do que ideias e coisas são ou deixam de ser geralmente dizem respeito ao campo ontológico, dos fatos, são reflexões ontológicas. Por outro lado, no campo moral, as reflexões são sobre o que devemos ou não fazer, sobre o que válido ou não, certo ou errado. São reflexões sobre o campo dos valores, sobre o que é mais ou menos desejável para a produção do bem comum. Portanto, a reflexão que se desenvolverá no presente texto é de cunho moral.

Essa regra, “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”, é tida como fundamental para a constituição da moral até mesmo pelo filósofo Peter Singer, da Universidade Princeton, um dos grandes nomes da ética atual. Ele chega a afirmar que essa é uma “regra de ouro” da moral.

Contudo, com uma análise mais acurada, é possível afirmar que se trata de uma regra eticamente falha e insuficiente.

Basta não fazer aos outros o que você não gostaria que fizessem a você? Ou, dito de outro modo, basta fazer aos outros o que você gostaria que fizessem a você?
Além de não bastar, tal atitude pode incorrer em erro. Pode, em muitos casos, produzir mais malefícios do que benefícios.

Do modo como está enunciada é uma regra falha, pois uma referência moral não pode se situar em primeira pessoa. Não podemos tomar a nós mesmos como referência central para agirmos moralmente. E essa regra assim o faz.

Se você só faz ao outro o que gostaria que fizessem a você ou, dito de outro modo, se você não faz ao outro o que não gostaria que fizessem a você, você está tomando a si mesmo como referência central para agir eticamente. Eis o equívoco, pois a ação ética é uma ação que leva em conta os interesses do outro, segundo as referências do outro. Portanto, o agir moral demanda empatia.

Há uma anedota em que o sujeito está passando em um determinado local onde há uma espécie de um lago. Ele observa que há alguns seres debaixo d’água, os quais estão se debatendo. Nesse momento ele toma a si como referência e, inferindo que estão se afogando, retira rapidamente todos esses seres da água. Contudo, instantes depois, eles vêm a morrer, pois eram todos peixes.

Ou seja, eram seres diferentes dele. E ele fez aos outros aquilo que queria que fizessem por ele, para ele. Então, nesse caso, ele agiu de acordo com essa regra: fez ao outro o que gostaria que fizessem a ele.

Nesse sentido, qual é a consequência? A consequência gerada, deste modo, é a produção de mais malefícios do que benefícios, devido a uma ação que toma somente a si mesmo como referência: uma ação egocêntrica travestida de moral. Não houve uma compreensão mais precisa das diferenças entre ele e os outros. A referência voltada somente para si mesmo gera problemas de autoconhecimento. Não compreendendo o limite entre eu e outro, fica comprometido tanto o conhecimento de si quanto do outro.

Assim, o agir moral também demanda autoconhecimento, e esse último só existe a partir do contato com o outro. Portanto, quanto maior o nível de autoconhecimento, mais fácil e eficazmente se age em termos morais. Deste modo há uma maior compreensão acerca de onde o eu termina para começar o que é do outro. Isso para poder de fato agir segundo os interesses e as necessidades do outro, e não somente a partir das nossas.

Por outro lado, há um outro modo para se expressar a regra moral de ouro de forma mais precisa: “Coloque-se no lugar do outro”. Além de ser um enunciado mais simplificado, sugere direta e claramente a empatia. E esta sim é um componente fundamental do agir moral.

Porém, colocar-se no lugar do outro não é tarefa das mais fáceis. Como colocar-se no lugar do outro e compreender exatamente o que ele precisa, o que demanda, o que ele sofre?

Obviamente não é possível viver pelo outro, mas é possível compreender e aumentar essa capacidade de compreensão acerca do que o outro está vivendo, do que sofre. Esse é um dos objetivos das teorias e práticas do campo da psicoterapia, por exemplo.

A regra de ouro da moral, portanto, ultrapassa os limites de crença, etnia, religião. Ou seja, a moral de certa forma se calca no comportamento, no que as pessoas fazem. E no que elas fazem ou deixam de fazer concretamente (porque omissão também produz consequências, resultados), o que isso produz concretamente de bem para todos.

Portanto, o que as pessoas fazem é mais importante do que suas crenças. Em linguagem comum, pode se dizer que é mais importante fazer o bem do que acreditar nessa ou naquela suposição, nessa ou naquela divindade.

A tendência de muitas pessoas que possuem uma determinada crença é acreditar que aquele que não comunga da mesma concepção não é moral ou possui falhas morais.

Nesse sentido, é perfeitamente possível uma moral laica. Uma moral que esteja voltada exclusivamente para se pensar a relação com o outro, dentro de uma perspectiva que recomenda a empatia, a qual é independente de preceitos religiosos. 



Este debate pode ser complementado pela leitura da entrevista de Peter Singer para  a revista Época.



Wednesday, September 14, 2011

"Respeite minha crença"




As pessoas se perguntam muito sobre isso, sobre crenças. “No que você acredita?”; “Qual é a sua religião?”. E nem sempre estão preparadas para ouvir a resposta, nem sempre são tolerantes para com as diferenças e liberdade de crença.

Mas tenho nessas horas um prazer especial em responder com toda a sinceridade possível, com toda a sinceridade irônica possível, indo direto ao ponto, sem rodeios:

“Não acredito em nada de sobrenatural, nada! Não acredito em espírito, alma eterna, Deus, ou qualquer baboseira desse tipo; com a devida exceção, obviamente, aos duendes e às fadas madrinhas.”

E muitos se assustam, do começo ao fim:

“Como assim? Você acredita em duendes e fadas madrinhas?”

“Sim. Sou devoto fervoroso de “Fradinho da mão furada” e “Zanganito”. Minhas padroeiras são Melusina e Lorelei.”

E há pessoas que insistem em não entender a piada:

“Mas não tem cabimento. Você diz que não acredita em Deus e acredita em duendes. Isso não tem sentido.”

Finalizo a conversa com carinha de ofendido:

“Eu acho que você está me ofendendo, ofendendo minha crença e meus deuses, meu querido. Respeito é bom e eu gosto”.

Saio sem dar satisfações e encarnando o ofendido. Uma ou outra pessoa espalha que acredito em duendes, que não bato bem, e assim, de modo excitante, as mitologias sobre a minha pessoa vão se difundindo. E, como sou bem ambicioso, de mitologia em mitologia, uma hora eu monto uma nova religião. 

Sunday, September 04, 2011

O suicida



Tenho 27 anos de idade e há muito tempo carrego no espaço vazio de minha existência escura a constante ideia, em carne viva, de que tanto faz estar vivo ou morto.

Desde minha adolescência não consigo navegar meus pensamentos de outro modo, longe do porão turvo de ideologias sobre o qual venho construindo o edifício de minha alma.

Se me dissessem assim, agora: “você vai morrer com um tiro na nuca”. Se me garantissem que a morte fosse instantânea, como o desligamento repentino de tudo, meu sentimento seria marcado também por uma certa indiferença.

Provavelmente ficaria muito tenso, temendo o tiro, a dor, a explosão, o impacto arrebatador do projétil. Porém, existencialmente, em relação à vida, nada me coloca em outro ponto além de meus desejos mórbidos.

A infinitude do universo, seus mistérios cintilantes, surdos, escuros ou o absurdo de qualquer realidade inconcebível, somente alimentam meu desejo de voltar a não existir, como um dia já foi, antes de meu nascimento. A imensidão de tudo traga meu espírito para a boca dos ímpetos mais animalescos a querer dar cabo de mim mesmo ou lançar a existência aos seus cumes imprevisíveis e incontroláveis.

Sou um homem (apesar de nunca ter me sentido como homem algum) que carrega nos ombros o peso de uma história desprezível, e também a inveja dos mais miseráveis com quem me defronto nos rincões tristes de saber que a realidade da vida é tão injusta e o sofrimento a experiência primeira de nossa colisão brutal com a existência.

Existimos tão pouco na existência de tudo. E existimos demais para nós mesmos. Não me suporto. Não dou conta da luta voraz que explode em mim, a querer devassar o campo flagelado de minha racionalidade.

Solidão, esse sempre foi o meu nome, minha identidade diante de nunca ter encontrado qualquer reflexo amoroso para o povo faminto de meu rosto no espelho da vida.

Friday, September 02, 2011

A ortotanásia é mais ética do que a eutanásia?



No Brasil, no campo da bioética, esse é um debate frequente. Primeiro é necessário definir os termos. Quando falamos de eutanásia, ortotanásia, distanásia, estamos falando de temas que são cruciais que se referem a pessoas que estão em sofrimento extremo e em casos terminais. Pessoas que estão em sofrimento extremo e que irreversivelmente morrerão.
Em alguns países como Bélgica e Holanda, por exemplo, a eutanásia já ocorre, existe há muitos anos e é legalizada. Eutanásia vem do grego e significa etimologicamente “boa morte”, trata-se de uma espécie de suicídio assistido ou de uma assistência para morrer. No caso da eutanásia voluntária, o sujeito em sofrimento extremo e terminal pede ajuda para morrer. Assim o faz porque não tem condições de realizar tal ato por si mesmo. Pede ajuda, portanto, para dar cabo de sua vida e acabar com seu sofrimento.
Em sistemas de saúde como o da Bélgica ou da Holanda, por exemplo, é possível obter essa ajuda do estado. Costuma ocorrer da seguinte forma: uma junta médica se constitui e de fato ajuda esse sujeito a morrer. É utilizada alguma medicação, a qual provoca a sua morte, e assim o paciente tem seu sofrimento abreviado.
No Brasil costumamos falar de eutanásia, ortotanásia e distanásia. Distanásia é o prolongamento inútil de tratamento que faz com que a pessoa sofra muito mais. Ela permanece vivendo dentro de uma UTI, por exemplo, padecendo de alguma condição médica terminal e em sofrimento extremo. Os médicos de modo geral prolongam seu tratamento, mas isso provoca muito sofrimento e não produz qualquer efeito significativo em direção à cura.  Trata-se do contrário da eutanásia. Trata-se da morte ruim, de prolongar uma vida condenada ao seu término e ao sofrimento extremo.
A ortotanásia, por sua vez, seria mais ou menos o “deixar morrer”. Trata-se da eliminação de tratamentos que sejam fúteis, que não impliquem na cura ou na diminuição do sofrimento. Portanto a ideia de ortotanásia possui uma similaridade grande com o deixar morrer.
A eutanásia, na língua inglesa, costuma ser classificada em: passiva, ativa, voluntária e involuntária. A eutanásia voluntária ocorre quando o paciente pede ajuda para morrer. No caso da eutanásia involuntária, o sujeito não é capaz de pedir. Geralmente se encontra em estado vegetativo permanente. Como se encontra em uma situação terminal e de coma irreversível, são outras pessoas que tomam a decisão de abreviar sua vida.
A eutanásia involuntária é muito menos defensável em termos éticos, pois não respeita a autonomia e a vontade do sujeito em questão. Isso ocorre muito em nossa relação com os animais, principalmente os de estimação, os que amamos. Quando estes apresentam alguma condição terminal, costumamos, por compaixão, sacrificá-los, para poupá-los de sofrimentos inúteis. Contudo, para seres humanos, a coisa se complica, pois até mesmo a eutanásia voluntária gera uma série de polêmicas.
Na língua inglesa não se fala muito de ortotanásia. O que assim denominamos, os falantes da língua inglesa chamam de eutanásia passiva,  que seria o deixar morrer ou algo semelhante ao invés de ajudar o sujeito a morrer e provocar a sua morte.
A eutanásia passiva, ou seja, a ortotanásia seria então mais ética do que a eutanásia?
Quem responde a esta questão é Robert Young, filósofo da La Trobe University (Austrália), no verbete que escreveu sobre eutanásia voluntária para Stanford Encyclopedia of Philosophy, a qual pode ser acessada pela internet.
De início, baseados neste verbete, podemos dizer que a ortotanásia é certamente menos ética do que a eutanásia em uma condição: se o deixar morrer provoca mais sofrimento do que o matar; ou seja, depende de como é feita a ortotanásia, de como são dados os cuidados paliativos. A retirada de alimentação ou hidratação, por exemplo, tende a provocar mais sofrimento. Logo, nesses casos, a ortotanásia acaba sendo menos ética do que a própria eutanásia.
Se o sujeito está, por exemplo, em estado vegetativo permanente, e ocorre a retirada de sua alimentação ou hidratação. Nesse caso, ele não irá morrer em função de seu estado vegetativo permanente, ou em função de suas perdas cerebrais; irá morrer em função da falta de água ou de alimento. Assim, portanto, a omissão funciona como o fazer morrer, como o matar, a qual por sua vez acabaria provocando muito mais sofrimento do que no caso da aplicação de uma medicação que pudesse abreviar rapidamente a vida do sujeito. Ou seja, nesse caso não há muita diferença entre deixar morrer e matar. Ambos matam e, nesse caso, a ortotanásia mata produzindo muito mais sofrimento, sendo portanto menos ética do que a eutanásia.
Isso também serve para os médicos que, nestas situações, fornecem altas doses de morfina. Estas, em muitos casos, acabam também provocando a morte. Mas a questão das altas doses é a de que a omissão pode de fato provocar a morte. A questão é que boa parte dos procedimentos ortotanásicos, os quais em tese tem o objetivo de deixar morrer, na verdade matam. Eis o autoengano de seus defensores.
Robert Young deixa alguns pontos bem claros. Primeiramente, a fronteira entre deixar morrer e matar é muito pouco clara, porque tanto os procedimentos ativos quanto os procedimentos de omissão da equipe médica têm efeitos, os quais muitas vezes aceleram e provocam o término de uma vida. Logo, as omissões próprias à ortotanásia também produzem a morte, também matam. Estas são as objeções e o contra-argumento de Robert Young para a ideia, muito comum, por exemplo, no Brasil, de que a ortotanásia é mais ética do que a eutanásia.

Monday, August 29, 2011

“É preciso ter fé”?



Para o senso comum cristão é quase uma norma afirmar que sem fé é impossível viver. A fé, contudo, não é uma orientação religiosa ou espiritual universal. Há religiões em que ela inexiste e deve até mesmo ser evitada. Este é, por exemplo, o caso do budismo. Para esta tradição, em boa medida, não há a prática ou o estímulo à fé. E o mesmo vale para Deus. Não há culto ou devoção a nenhuma espécie de Deus. O budismo é, portanto, uma religião sem Deus e sem fé.

E se pensarmos então no conceito de desapego, caro a esta tradição, aí a fé perde ainda mais terreno. Trata-se de não lamentar o passado e não esperar nada do futuro. Ou seja, trata-se mesmo de não ter fé, de evitá-la. Nesta perspectiva, ela é considerada um mal a ser evitado. Ter fé é esperar, desejar algo que não depende de nós. Isso é o apego, o desejo tomando conta, e é exatamente o que os budistas constantemente meditam para evitar.

Mas o que é a fé? Comte-Sponville (2003, p.241-242), em seu “Dicionário Filosófico”, pode ajudar:

 “Fé é crença sem prova, como toda crença, mas que dispensa vantajosamente, por vontade, confiança ou graça. Vantagem equívoca, se não suspeita. É se crer, se fiar ou se submeter. Toda fé peca por suficiência ou por insuficiência. (...)

No sentido mais corriqueiro, a palavra designa uma crença religiosa e tudo que a ela se assemelha. É crer numa verdade que seria um valor, num valor que seria uma verdade. (...)
A fé também é voltada para o futuro. É como uma utopia metafísica: a esperança inventa um objeto para si, o qual a transforma em verdade. Trata-se de crer, como dizia Kant, que “algo é... já que algo deve acontecer”. Essa mentira, em sua sinceridade, é a própria religião.

A fé nutre-se tão somente da ignorância de seu objeto. “Tive pois de pôr de lado o saber”, reconhece Kant ainda, “a fim de obter algum lugar para a fé”. Os homens de saber, nos últimos vinte e cinco séculos, têm feito o contrário.”

É a conjunção absoluta do valor (do que é desejável, do que se deseja) com o que existe. É erigir valores, desejos, em verdades. “Ter fé no amor não é apenas amá-lo, mas fazer dele um absoluto, que existiria independentemente de nossos amores muitíssimos relativos”.

Para Kant é uma crença suficiente subjetivamente e insuficiente objetivamente. Segundo Comte-Sponville é suficiente para "os sujeitos que se contentam com sua subjetividade. Para os outros, a dúvida a acompanha e salva".



Referências


Comte-Sponville, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

__________________ (2003). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.




Podcast com comentários:



Saturday, August 20, 2011

SOMOS INQUILINOS DO ALÉM




(Crônica selecionada para o 1º Prêmio Escriba de Crônicas)
Foi ainda criança quando li uma citação de Machado de Assis, mais ou menos assim: “Pronto, está morto. Agora podemos elogiá-lo”. De fato, que ironia, basta morrer para uma pessoa se transformar em alguém melhor. A morte é um momento de aperfeiçoamento pessoal do morto. Defeitos são varridos para debaixo do tapete da memória e do morto passa somente a brotar nobreza.
Certa vez, um amigo, psicoterapeuta, disse que em determinada sessão baixou lá um espírito. Relatou ter sido um momento de difícil manejo e que teve de conversar muito com esse morto mal resolvido. É, mal resolvido, assim também podemos denominar os fantasmas, as almas penadas: mortos que precisam urgentemente de terapia. Pois são mortos que não se enxergam como mortos, como são (ou como não são?). É o sujeito que morreu e não sabe. O pior deve ser o dia em que cai na real. Imagine: “Nossa, eu morri. Como não pude perceber, esse tempo todo. Tantos sinais, tanta gente tentando me avisar...”, deve sentir-se atavicamente traído pelo destino, pelo além, uma traição da própria eternidade. Aliás, a morte é, por definição, uma traição da vida. Com a morte, a vida é passada para trás.
E fantasma é igual chifrudo, é sempre o último a saber de sua própria condição. Nossa, deve ser um baque emocional. Deve ser de matar, hein.
No final de sua estória meu amigo perguntou: “Escuta, morto paga sessão? Tem como eu cobrar dele? Sim, pois a sessão não foi do vivo. Ele ficou o tempo todo tomado pelo morto.”
Respondi assim: “Nós é que vivemos pagando para os mortos. Ninguém questiona a autoridade de um morto. Eles mandam. Nós temos muito temor aos mortos; respeito. Ninguém brinca com gente morta. Nós é que vivemos pagando coisas para eles. Aqui se faz e aqui se paga? É, mas muita gente dá o calote. Aliás, acho inclusive que os mortos cobram aluguel da gente. Não estamos aqui nessa vida de favor? Esse corpo não é um favor? Um empréstimo, como dizem muitas religiões? Somos inquilinos do além.”
A vida fica bem menos solitária e o mundo bem mais povoado quando pensamos que os mortos estão sempre entre nós. Sendo o morto absolutamente bonzinho, não havendo dúvidas quanto às suas boas intenções, estaremos seguros de constante boa companhia e proteção. Agora, se associarmos a isso a teoria de que entre nós estão predominantemente os mal resolvidos, aí a coisa fica mais apavorante. Pois uma pessoa mal resolvida dificilmente é uma boa companhia. Mesmo querendo ajudar, acaba atrapalhando. Pois sendo mal resolvida, acha que quer uma coisa quando na verdade quer outra. Não sabe o que quer e quando faz as coisas, faz atravessado: desconta raiva em inocentes; superprotege ou “ama” demais para recalcar ódio ou rejeição; se vinga de Fulano simplesmente porque esse se parece com Beltrano, sem nem mesmo saber que odiava ou desejava vingar-se do segundo. O mal resolvido é isso. Agride sem saber, indiretamente, de repente. Ou agride quando no fundo desejava amar e não pode. É a maldade sem motivo ou o amor que mata, o “amor” que aparece para encobrir talvez uma censurável rejeição ou mesmo o ódio.
E se continuarmos na trilha desta teoria, a de que os espíritos entre nós geralmente são os mal resolvidos, aí a coisa fica preta. É, pelo que me lembre, dizem que os bem resolvidos vão logo para o firmamento, para algum lugar, para um destino mais certo. Não ficam perambulando por aqui, partem logo para outra. Então quer dizer que o além é feito de muito sonho e temor. Porque é bom sonhar com o além ou um terror imaginar o que pode estar acontecendo às nossas costas, por meio da obra de nossas más companhias, as almas penadas. É, de fato, a vida não é um lugar seguro, nem mesmo para o que não se relaciona com ela. Viver é ser, por excelência, frágil. E o além dos vivos é, por definição, mal resolvido.