Monday, September 26, 2011

"Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você"?




Eis mais um enunciado do senso comum. Porém, um enunciado interessante, pois é geralmente classificado como uma regra moral fundamental: “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”.

Se a ontologia é o campo filosófico de reflexões acerca do “ser”, a moral é o campo do “dever ser”. Reflexões acerca do que ideias e coisas são ou deixam de ser geralmente dizem respeito ao campo ontológico, dos fatos, são reflexões ontológicas. Por outro lado, no campo moral, as reflexões são sobre o que devemos ou não fazer, sobre o que válido ou não, certo ou errado. São reflexões sobre o campo dos valores, sobre o que é mais ou menos desejável para a produção do bem comum. Portanto, a reflexão que se desenvolverá no presente texto é de cunho moral.

Essa regra, “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você”, é tida como fundamental para a constituição da moral até mesmo pelo filósofo Peter Singer, da Universidade Princeton, um dos grandes nomes da ética atual. Ele chega a afirmar que essa é uma “regra de ouro” da moral.

Contudo, com uma análise mais acurada, é possível afirmar que se trata de uma regra eticamente falha e insuficiente.

Basta não fazer aos outros o que você não gostaria que fizessem a você? Ou, dito de outro modo, basta fazer aos outros o que você gostaria que fizessem a você?
Além de não bastar, tal atitude pode incorrer em erro. Pode, em muitos casos, produzir mais malefícios do que benefícios.

Do modo como está enunciada é uma regra falha, pois uma referência moral não pode se situar em primeira pessoa. Não podemos tomar a nós mesmos como referência central para agirmos moralmente. E essa regra assim o faz.

Se você só faz ao outro o que gostaria que fizessem a você ou, dito de outro modo, se você não faz ao outro o que não gostaria que fizessem a você, você está tomando a si mesmo como referência central para agir eticamente. Eis o equívoco, pois a ação ética é uma ação que leva em conta os interesses do outro, segundo as referências do outro. Portanto, o agir moral demanda empatia.

Há uma anedota em que o sujeito está passando em um determinado local onde há uma espécie de um lago. Ele observa que há alguns seres debaixo d’água, os quais estão se debatendo. Nesse momento ele toma a si como referência e, inferindo que estão se afogando, retira rapidamente todos esses seres da água. Contudo, instantes depois, eles vêm a morrer, pois eram todos peixes.

Ou seja, eram seres diferentes dele. E ele fez aos outros aquilo que queria que fizessem por ele, para ele. Então, nesse caso, ele agiu de acordo com essa regra: fez ao outro o que gostaria que fizessem a ele.

Nesse sentido, qual é a consequência? A consequência gerada, deste modo, é a produção de mais malefícios do que benefícios, devido a uma ação que toma somente a si mesmo como referência: uma ação egocêntrica travestida de moral. Não houve uma compreensão mais precisa das diferenças entre ele e os outros. A referência voltada somente para si mesmo gera problemas de autoconhecimento. Não compreendendo o limite entre eu e outro, fica comprometido tanto o conhecimento de si quanto do outro.

Assim, o agir moral também demanda autoconhecimento, e esse último só existe a partir do contato com o outro. Portanto, quanto maior o nível de autoconhecimento, mais fácil e eficazmente se age em termos morais. Deste modo há uma maior compreensão acerca de onde o eu termina para começar o que é do outro. Isso para poder de fato agir segundo os interesses e as necessidades do outro, e não somente a partir das nossas.

Por outro lado, há um outro modo para se expressar a regra moral de ouro de forma mais precisa: “Coloque-se no lugar do outro”. Além de ser um enunciado mais simplificado, sugere direta e claramente a empatia. E esta sim é um componente fundamental do agir moral.

Porém, colocar-se no lugar do outro não é tarefa das mais fáceis. Como colocar-se no lugar do outro e compreender exatamente o que ele precisa, o que demanda, o que ele sofre?

Obviamente não é possível viver pelo outro, mas é possível compreender e aumentar essa capacidade de compreensão acerca do que o outro está vivendo, do que sofre. Esse é um dos objetivos das teorias e práticas do campo da psicoterapia, por exemplo.

A regra de ouro da moral, portanto, ultrapassa os limites de crença, etnia, religião. Ou seja, a moral de certa forma se calca no comportamento, no que as pessoas fazem. E no que elas fazem ou deixam de fazer concretamente (porque omissão também produz consequências, resultados), o que isso produz concretamente de bem para todos.

Portanto, o que as pessoas fazem é mais importante do que suas crenças. Em linguagem comum, pode se dizer que é mais importante fazer o bem do que acreditar nessa ou naquela suposição, nessa ou naquela divindade.

A tendência de muitas pessoas que possuem uma determinada crença é acreditar que aquele que não comunga da mesma concepção não é moral ou possui falhas morais.

Nesse sentido, é perfeitamente possível uma moral laica. Uma moral que esteja voltada exclusivamente para se pensar a relação com o outro, dentro de uma perspectiva que recomenda a empatia, a qual é independente de preceitos religiosos. 



Este debate pode ser complementado pela leitura da entrevista de Peter Singer para  a revista Época.



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