Quero falar de uma frase que costumam atribuir a Sartre, mas importa menos sua autoria do que a compreensão que as pessoas parecem geralmente ter do enunciado em questão. É a seguinte:
"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você."
Muitos compreendem que o que fazemos com aquilo que fizeram conosco é somente uma manobra semântica que brota de um ato espontâneo de nossa vontade. Desse modo bastaria força de vontade e o que muitos chamam de atitude. A pessoa teria então de reagir, se levantar e dar um novo sentido para o que fizeram com ela.
Porém, o problema são os pormenores. Que as pessoas têm de reagir e dar um novo sentido, disso parece não haver praticamente dúvidas. E talvez reagir e dar um novo sentido não seja a causa de nada, mas seja já um dos efeitos desejados.
Se for esse o caso, a coisa muda totalmente de figura. Se o que importa é o que você faz com o que fizeram de você, a questão é o que você deve fazer com o que fizeram de você, e como isso irá ocorrer. O que é necessário para que você (na sua vida especificamente, com as suas particularidades e contexto) comece a construir algo novo e mais produtivo a partir do que fizeram com você?
Porque não adianta nada dizer para as pessoas que elas devem fazer dos limões uma limonada, se elas nunca antes na vida fizeram uma limonada. Ou nunca lhes foi mostrado como fazer uma limonada. Fora o fato de que existem inúmeros tipos de limão e limonadas nessa vida. Porque cada caso é um caso. Cada caso tem seus pormenores e peculiaridades, e temos portanto, num primeiro momento, de entender em detalhes o que está ocorrendo com cada sujeito, em cada contexto, para assim podermos tentar ajudar essa pessoa.
Para isso deve-se proceder com muita escuta e um forte espírito investigativo, disposto a realizar o mínimo do que é necessário para um procedimento, por exemplo, científico. É necessária a construção conjunta de hipóteses e a testagem dessas hipóteses, constantemente. E isso será muito provavelmente realizado em várias tentativas, porque é comum se construir e se testar hipóteses que não são corroboradas. Daí devemos construir uma outra hipótese, e testá-la a partir de um outro caminho, a partir de uma outra estratégia.
Por outro lado, quando me reporto à primeira parte do enunciado, de que não importa o que fizeram conosco, na minha compreensão atual isso não faz o menor sentido, porque contradiz toda a história de evolução de nossa espécie, contradiz nossa natureza social.
A questão então é que sozinho será sempre muito difícil mudar qualquer coisa. Em minha prática clínica volta e meia encontro pessoas que estão se degladiando com as condições sob as quais vivem, e sozinhas estão tentando, com muito esforço, efetuar mudanças, e isso torna a mudança bem menos provável. São pessoas que não estão, por exemplo, conseguindo acordar cedo, não estão conseguindo fazer atividades físicas ou se alimentar de modo adequado. E de modo geral o que vai facilitar a mudança de comportamento é o outro, o compromisso com outras pessoas, atividades geralmente realizadas em conjunto ou em compromisso com outras pessoas, e na medida do possível se respeitando algumas inclinações individuais.
Vamos tomar como exemplo o caso de alguém que deseja introduzir a prática de exercícios físicos em sua rotina. Muitas pessoas querem começar a fazer exercícios físicos em academias de ginástica, e nem sempre esse é o ambiente mais adequado para a pessoa em questão. E também muitas vezes observo que as pessoas querem começar a realizar atividades intensas e repetitivas, para as quais não têm o mínimo de condicionamento, e isso obviamente irá se tornar muito desmotivante.
Portanto, em um primeiro momento, é muito importante não nos esquecermos do custo de resposta. Se a tarefa é inicialmente desproporcional ao condicionamento do sujeito, o custo de resposta é alto. Sendo alto, o nível de motivação é baixo.
Então penso que a mudança sempre ocorrerá em pequenos passos, em pequenas tarefas, que conforme vão se entrelaçando vão assim se configurando em um conjunto, em uma meta maior. E isso também tem tudo a ver com a gradação da dificuldade. Ou seja, deve-se começar com as atividades mais simples, mais fáceis e que podem ser realizadas em menor tempo.
Em alguns casos, conforme vamos ouvindo o que o paciente nos tem a dizer vamos, junto com ele, percebendo que talvez o melhor a ser feito não é buscar por uma academia de ginástica. Se essa pessoa talvez começar com algo muito mais leve e em um ambiente que, em alguns casos, é menos aversivo do que uma academia forrada de pessoas malhadas e (com um padrão de beleza e condicionamento físico acima da média), e na companhia de alguém que lhe apraz, talvez seja muito mais fácil desse modo a iniciação de uma atividade física.
Então, finalizando, eu diria que é muito importante o que fizeram conosco, para poder compreender exatamente o que aconteceu, e como nos sensibilizamos, nos traumatizamos ou nos paralisamos, para podermos assim facilitar nossa libertação, a desejada alteração de comportamento. Assim como também é muito importante o que iremos fazer com que fizeram conosco. Mas eu digo sempre isso em primeira pessoa do plural: o que iremos nós, enquanto grupo social do qual essa pessoa faz parte, juntamente com ela, iremos fazer com o que foi feito com ela.
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