Saturday, August 17, 2019

O que é a loucura? Reflexão a partir de um caso do CAPS

Havia um paciente, no CAPS, que muitos de nós nos perguntávamos se ele era de fato louco ou não. Com mais de 30 anos de idade, boa aparência e boa oratória, ele geralmente se apresentava como sendo deputado federal.

Sempre falava de modo bastante altivo, firme e alegre. Isso envolvia os ouvintes. As pessoas paravam para ouvir o que ele tinha dizer, e adoravam estar perto dele, porque era sempre muito divertido e engraçado.

E ele não se limitava a dizer que era deputado federal. Era também o que ele pudesse incluir como autoridade a ser respeitada e admirada: médico, juiz de direito, procurador geral da república, candidato a governador do Distrito Federal, presidente do partido ao qual era filiado, o PHS (Partido dos Homens Sérios), etc.

Durante um certo tempo frequentou meu grupo de fala, o grupo de metas, e no início eu acho que ele até atrapalhava a condução dos trabalhos porque sempre que se expressava, sua fala era sempre voltada para as suas aspirações e empreendimentos políticos. E quando falava mais em primeira pessoa, ou de vida pessoal, sempre tentava mostrar que tinha uma secretária ou alguma mulher muito bonita e amorosa que cuidava de toda a sua vida sentimental afetiva. Era também um galanteador. Algumas pacientes mais jovens e mais bonitas chegavam a se encantar um pouco com suas palavras, mas jamais tive notícia de que ele tivesse tido qualquer tipo de encontro amoroso com alguém.

No início de seu acompanhamento no CAPS havia muitas dúvidas em relação a quais possíveis transtornos ele devia ter, assim como também em relação à sua vida íntima, familiar. Porém, depois foi se tornando de conhecimento da equipe que ele morava com a mãe e que em uma das consultas, acompanhado pela mãe, teria se comportado de modo completamente diferente do que quando estava sozinho. Na presença da mãe teria ficado quieto, um pouco parado e sem palavras, como se na frente dela todos os seus personagens simplesmente desabassem, deixassem de existir.

Uma das psiquiatras que o atendeu, que não faz mais parte da equipe, e que era conhecida pela precisão de seus diagnósticos, dizia que não se tratava de um caso de psicose (de loucura clássica), porque ele muitas vezes ria das histórias que contava.

A convicção que exibia em relação às fabulações que narrava parecia variar conforme o contexto. Ele nunca abria mão das suas versões fictícias, porém sempre se comportava de modo relativamente organizado e orientado para seu próprio tratamento, porque estava sempre atento às medicações que devia tomar, assim como para qualquer outro tipo de orientação de saúde, embora tivesse dificuldades de ordem cognitiva para compreender uma série de procedimentos que devia adotar para o seu próprio bem-estar.

Tinha passe-livre para poder andar de ônibus para onde quisesse, e isso era um indicativo de que tinha possivelmente um histórico de deficiência mental, porque se trata de um direito somente concedido a pessoas com necessidades especiais.

Não carregava dinheiro, nem cartões ou qualquer coisa relacionada a um manejo próprio de recursos financeiros, e parecia de fato não compreender o valor de diferentes notas de dinheiro. Não sabia diferenciar o poder de compra de uma nota de R$ 10 para uma nota de R$ 100, por exemplo.

Tinha uma retórica e oratória excepcionais, mas muita dificuldade para lidar com números. Não era capaz de contar até 20, por exemplo. Esse contraste de capacidades, de uma capacidade discursiva muito desenvolvida com uma capacidade matemática bem limitada, também despertava a surpresa de muitos da equipe.

João Paulo (nome fictício) não gostava de ser chamado por seu nome próprio, e sempre se identificava com um outro nome, que se parecia mais com nomes de políticos famosos, e o resultado era um inusitado sebastianismo. Dizia que tinha nascido por volta de 1945, em um estado do Nordeste, e começado toda a sua carreira política por lá. Tinha por volta de 30 anos, mas sempre se identificava como um senhor por volta de 70 anos de idade.

Foi durante um bom tempo uma incógnita para muitos de nós. Como seu estado geral de saúde era sempre bom, fomos adiando a visita domiciliar o quanto pudemos, porque havia casos mais prioritários, mais urgentes.

Porém, em um dia em que ele estava na convivência, interagindo com outros pacientes de modo mais livre, percebi que eu tinha o tempo disponível para ir com ele até a sua casa. Eu e uma colega de equipe fomos com ele até sua casa, em carro próprio, porque não havia nem mesmo transporte oficial para nos conduzir até lá.

João Paulo sempre me convidava para ir conhecer seu "barraco", e agora que tínhamos essa oportunidade, era bom não desperdiçar.

Ele morava com a mãe em uma casa de fundos, composta por quatro cômodos: cozinha, sala e dois quartos. Era uma casa pequena, simples, muito limpa e aconchegante. Na cozinha havia muitos paninhos bordados ou com enfeites de crochê. Era um espaço muito bonitinho. Confortou-me saber que ele vivia em um lugar digno, em um lar onde parecia haver muito amor.

Assim que chegamos à sua residência, ele passou a se comportar de modo muito mais silencioso, abandonando seus discursos políticos, para somente apontar para os objetos que havia na casa. Passou a se comportar de modo mais parecido a um bichinho, que não sabe falar e somente aponta, olha ou se comporta na direção de algo que é importante.

João Paulo estava tentando nos dizer um monte de coisas que eram extremamente importantes, mas para as quais ele agora não tinha palavras. Estava totalmente mudo de palavras. A comunicação não saía mais de sua boca, de sua oratória impressionante. Praticamente tudo estava sendo expresso por seu olhar aflito e para o que apontava.

Sua mãe não se encontrava no recinto, e ele nos entregou uma pasta que continha vários documentos referentes à sua história clínica.

Um deles era um ofício judicial, demandando providências para o caso de João Paulo, com diagnóstico de retardo mental e sintomas de depressão. Estava escrito algo mais ou menos assim:

"João Paulo possui um histórico de deficiência mental desde a sua infância. Não conseguiu frequentar adequadamente a escola. Frequentou durante alguns anos aulas no ensino especial. Encontra-se abatido, com humor rebaixado há x meses. Não sai de casa, fica somente isolado, fechado em seu quarto. Apresenta sintomas de ansiedade, com medo de interagir com as pessoas. Necessita de acompanhamento psicológico."

E do que me lembro parece que neste relatório da justiça também constava que ele ainda não tinha o benefício de prestação continuada, que é o benefício a ser concedido para pessoas com necessidades especiais e de baixa renda.

Então, do que pude compreender, aproximadamente um ano após a elaboração desse relatório, João Paulo passou a receber o benefício de prestação continuada e teve também autorizado seu passe-livre para ônibus interurbanos.

Talvez, nessa mesma época, ele já estivesse frequentando o CAPS. Mas só me lembro dele ou somente vim a conhecê-lo cerca de três anos depois.

Essa visita foi muito importante porque gerou mais uma evidência de que o caso dele era verdadeiro, e de que ele tinha mesmo um histórico de deficiência cognitiva.

Hoje sinto que João Paulo é para mim, em minhas lembranças cinematográficas, uma espécie de mistura dos protagonistas de dois filmes que assisti: Forrest Gump e Reine sobre mim.

Forrest Gump é um personagem com limitações cognitivas, que conseguiu conquistar o coração de muitas pessoas, apesar de todas as suas dificuldades, principalmente pelo fato de que desenvolveu um estilo próprio, tendo realizado algumas ações extremas e admiráveis, que chamaram a atenção e causaram a admiração de um volume muito grande de pessoas.

O personagem principal de "Reine sobre mim" (interpretado por Adam Sandler) por sua vez é alguém que se comporta como se fosse louco, mas sabemos, no final das contas, que não é exatamente isso, mas somente um mecanismo de defesa que se mostrou eficaz dentro do contexto de todas as suas limitações.

Ou seja: ambos os personagens expressam com uma certa clareza aquilo que talvez possa ser definido como estilo, que não seria necessariamente uma potência, mas uma limitação que funciona. Porque o estilo é muitas vezes aquilo que faz com que sejamos somente o que podemos ser e não o que queremos ser. O estilo é a aceitação plena de nossas deficiências, transformando isso em algo fundamental para a caracterização de nossa identidade e de nosso agir singular no mundo.

E na minha compreensão há vários fatores que podem facilitar o florescimento ou o cultivo de uma certa estilística da existência. Um deles é o cultivo da tolerância, das diferenças, de uma sociedade mais plural. E o CAPS, quando de fato consegue atuar de uma maneira mais plena junto aos pacientes e à comunidade, trabalha muito nesse sentido.

Há ainda outras histórias interessantes sobre esse paciente que eu gostaria de narrar aqui. Porém o presente texto já se estendeu bastante, e talvez fique para outras oportunidades. Gostaria ainda de falar do papel que ele tinha em meu grupo de fala, e de como se dava essa capacidade dele em elevar o ânimo dos ambientes onde se encontrava, sem me esquecer também de contar como foi ter saído com ele ali do espaço do CAPS, para irmos almoçar juntos em um restaurante. Observar sua interação com as pessoas fora do espaço do CAPS também foi algo bastante interessante. Mas essa parte fica para um próximo texto.

PS: E se para Wakefield o transtorno mental é marcado por uma disfunção danosa, o estilo é talvez, fundamentalmente, uma disfunção benevolente, refuncionalizante. A busca por uma estilística da existência é provavelmente algo de grande relevância quando falamos de saúde mental e bem-estar psicológico. E, antes que me recomendem: sim, eu conheço o trabalho de Joel Birman.

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