Tuesday, August 27, 2019

Desigualdade - "Vai pra Cuba!"

Tenho um colega, porteiro, 15 anos mais jovem do que eu, que não sabe ler nem escrever (reconhece as letras e sílabas, mas ainda tem dificuldades para ler uma frase inteira), com o qual converso com uma certa frequência. Vou chamá-lo de Edson (nome fictício).

Em nossa última conversa me fez várias perguntas. Sinto que tem um certo interesse específico em temas relacionados à geografia e geopolítica.

- Mas qual país é o mais inteligente, Adriano? Estados Unidos, Alemanha ou a China?

E por tudo que já conversei com ele, sinto que há talvez algum déficit cognitivo, o que não tem relação alguma com o fato de não saber ler nem escrever. Já pude em minha vida interagir com diversas pessoas analfabetas, e muitas delas eram bastante inteligentes, com uma capacidade de compreensão para inúmeras coisas. Mas esse infelizmente parece não ser o caso de Edson. O que também não quer dizer que isso seja imutável.

Nessa nossa última conversa também falamos sobre riqueza e pobreza:

- Do que eu sei, Edson, é que está na miséria aquela pessoa que não tem um mínimo para poder viver... E é pobre aquela pessoa que tem somente o mínimo, e sem qualquer possibilidade de poupar para poder futuramente aumentar seu patrimônio, por exemplo... Porque a melhor forma de ficar rico é já ter nascido rico...

- Mas eu, Adriano? Você acha que eu sou pobre?

- Sim, Edson. Eu acho que você é pobre.

- E você, Adriano? Você não é mais pobre, não é?

- Olha, Edson, eu também acho que eu não sou pobre. Porque tenho, ao longo de minha vida, conseguido poupar...

- Então você é rico?

- Pois é... Sinto que temos conceitos para definir o que é a miséria e a pobreza, mas talvez não tenhamos um conceito bem delimitado para definir o que é a riqueza, que defina uma pessoa como sendo rica. Mas a gente sabe muito bem que aqueles 1 ou 2% da população, que concentram mais da metade da riqueza do Brasil, são certamente ricos, muito ricos.

- O Neymar é rico, Adriano?

- Sim, ele é muito rico, Edson.

Aí puxei rapidamente pelo celular quanto Neymar ganha por mês (3 milhões de euros), converti para reais, e percebi que isso dava mais ou menos 15 milhões de reais por mês. Fazendo algumas contas ali, junto com ele, rapidamente mostrei para Edson que Neymar ganhava cerca de R$ 350 por minuto, 24 horas por dia, durante todos os dias do ano.

- Pois é, Edson. Neymar recebe o teu salário mensal a cada 3 minutos.

Nossa conversa se estendeu, como muitas outras vezes já havia ocorrido, com Edson às vezes olhando profundamente nos meus olhos, eu também olhando profundamente para ele, e um percebendo as expressões do outro. Assim como pude perceber que ele às vezes ficava bastante assustado, e que uma certa distância, em termos de formação acadêmica, que havia entre nós, ficava quase que completamente apagada, porque ali estávamos tranquilamente dividindo um com o outro uma série de experiências de vida.

E, desculpe-me, mas sempre lamento a existência dessa distância. Porque sei muito bem que não se trata simplesmente de mérito. Se trata de uma desigualdade instaurada histórica e sistematicamente. Edson não teve as mesmas oportunidades que tive. Edson por diversas vezes teve de lidar com a miséria, e eu não. Eu, no máximo, tive de conviver com a pobreza. Mas não com a miséria.

- Se eu e você tivéssemos nascido em algum país mais justo, a sua vida, Edson, certamente seria muito melhor do que é hoje. Nós estaríamos em um nível muito mais parecido em termos de formação escolar.

E não teve jeito: pensei e conversamos também sobre Cuba, que é também um país pobre, assim como o Brasil. Se eu e Edson tivéssemos nascido em Cuba, nós dois seríamos possivelmente muito pobres. Mas a nossa formação escolar seria muito melhor do que a que existe no Brasil, e Edson não estaria ali me olhando de baixo para cima, com seu rosto já cheio de rugas, com o olhar de alguém que foi massacrado pela vida, e que pouco tem consciência disso.

Talvez eu estivesse com o rosto com muito mais rugas do que tenho, e talvez a vida tivesse me massacrado mais do que a vida que tive e tenho no Brasil. Talvez eu e Edson estivéssemos putos da vida, querendo fugir daquela ilha, para qualquer outro lugar onde pudéssemos ter acesso mais fácil a uma série de bens e serviços, assim como possivelmente também a um nível maior de liberdade de expressão, a uma vida mais plena e feliz.

Porém não me esqueço e não quero me esquecer do olhar de Edson, de sua expressão precocemente repleta de rugas, como se emanasse de mim uma luminosidade solar a queimar seu rosto, como se Edson estivesse por muitas vezes implicitamente pedindo por um pouco de ajuda, por um pouco mais de justiça, de igualdade, que lhe foi e vem sendo negada por toda a sua vida.

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