Thursday, April 04, 2019

O pior ano de minha vida

Em 1985 e 1986 (dos 12 anos e meio aos 14 anos) sofri intensamente com sintomas obsessivos, compulsivos, de ansiedade e de depressão, e me recuperei, completamente. E, dentro dos parâmetros atuais de classificação psiquiátrica, eu certamente teria sido classificado como alguém padecendo de algum ou de alguns transtornos mentais.

Ou seja, já tive transtorno mental, com os sintomas acima mencionados e, depois de mais um menos um ano em sofrimento intenso, entrei em remissão, a qual se prolongou e foi, aos poucos, se transformando em recuperação, em recuperação completa. Ou seja: cura.

Durante cerca de um ano tive em média uma crise a cada dois meses e, sempre depois de uma crise, eu prometia para mim mesmo, com todos o meus esforços, que não mais passaria por aquele vexame, por aquela situação extremamente vergonhosa e embaraçadora a qual, em minha concepção, estava causando um mal-estar enorme em minha mãe e em minha família. Quem mais sofria era eu mesmo, mas perceber que aquilo se alastrava para meus familiares era um sofrimento a mais em meio a tanta dor.

Minhas obsessões eram quase sempre compostas por pensamentos ruins, que me eram muito aversivos, que é o que ocorre com a grande maioria das pessoas que sofre com obsessões. Eu era acometido por imagens de coisas ruins, muito ruins, acontecendo comigo e com pessoas que amava, e as compulsões eram como pequenos rituais de neutralização das obsessões, que pareciam ter força de maus agouros. E é isso mesmo que costumam ser as compulsões, para quem sofre com elas.

Meu sentimento era o de que aquelas obsessões eram extremamente ridículas, bizarras e vergonhosas. No início eu impliquei com o movimento involuntário de piscar os olhos, e não conseguia mais fazer as coisas direito, porque eu não conseguia deixar de pensar em meus olhos.

Depois comecei a imaginar que eu havia vendido minha alma ao diabo, como se houvesse algo em mim que fizesse isso, contra a minha vontade, mas me enganando o tempo todo. Havia um lado meu, que eu abominava e que eu não controlava, que de repente ia lá e fazia algo irreversível: vender minha alma ao diabo. Porque se a gente reza em silêncio, a gente pode também vender a alma ao diabo em silêncio. E essa capacidade de fazer coisas em silêncio era o que me matava.

Eu tinha uma vergonha muito grande de tudo aquilo que estava ocorrendo comigo. Tinha medo de relatar minhas obsessões a alguém e que elas assim se fortalecessem, adquirindo poder de realização, mais ou menos dentro da superstição de que não podemos tocar no nome de coisas ruins que assim elas podem aparecer, acontecer. Então conversar sobre isso, sobre minha suspeita de que eu havia vendido minha alma para o diabo, por exemplo, era algo extremamente difícil. Minha vida estava travada, bloqueada, e a angústia, a dor, era muito intensa. Era tão intensa que ainda hoje considero que o pior ano de minha vida foi 1985.

Depois passei a fazer e desfazer várias coisas: falava e desfalava, olhava e desolhava. E isso teve inspiração em uma brincadeira supersticiosa infantil. Quando uma criança pulava a outra, tinha depois que despular (pular de novo) porque senão a criança pulada em número ímpar não cresceria, não se tornaria um adulto. E o problema era o número ímpar. Para desfazer algo ruim, tinha que ser em par. Então, imaginem, eu chegava a olhar e desolhar para alguma coisa que me despertava ansiedade por várias vezes, e isso também se estendia às palavras.

E, em 1985, o que eu mais queria na vida era crescer, entrar na puberdade e não ficar ali me vendo como uma criança em meio aquele monte de amigos que já eram púberes, adolescentes, com maior estatura do que eu, com peso e uma cara mais parecida com a de um adulto, e que adultos mandavam em crianças, e que crianças não tinham voz, e que nada dos que as crianças faziam tinha força ou validade.

“Ah, você é café com leite”, “O que você tá falando não tem validade”, “Você é uma criança. Não quero namorar com você. Quero um homem”, “Você não é um homem. É um menininho, uma criança boba, um menininho cuja tibieza e vergonhas estão escancaradas nesse corpo esquálido, nessa estrutura que pode ser massacrada e sufocada a qualquer momento por qualquer um aqui nesse mundo deserto de compreensão, de abrigo para essa solidão que grita em cada contorno de sua dor, mas que você nem sabe que é isso: solidão”.

Essas eram algumas frases e orações que ecoavam em mim e para as quais hoje até consigo dar um pouco de expressão poética.

E eu era ali uma criança que não tinha a menor condição de se impor perante um mundo que me era completamente estranho. Mas não queria mais ser uma criança. Era e não era uma criança. Nisso eu era talvez tipicamente adolescente. Queria assumir diversas responsabilidades de adultos, mas percebia, de modo obscuro (e eis o problema), que aquele mundo pra mim, no campo afetivo, era um completo deserto. Eu estava no deserto, morrendo de sede, e não sabia, com clareza, que aquilo era um deserto.

E eu tinha uma hipótese. Eu acreditava que tudo aquilo se resumia ao fato de que eu ainda não era um púbere. Quando eu me transformasse em um púbere, quando eu começasse a crescer, adquirindo pelos por todo o corpo, eu faria novamente parte de uma tribo, e poderia ser amado. Porém, os termos que usei aqui não cabem na descrição que eu tinha de mim mesmo em 1985. Eu sentia algo parecido com isso, mas não havia os nomes precisos, as classificações que podem definir o jogo.

E essa hipótese de fato fazia bastante sentido, porque depois, com a entrada definitiva na puberdade, tudo ficou muito mais fácil.

Contudo, havia outros aspectos de minha vida para os quais eu não estava tão atento, e que certamente poderiam ter me fornecido uma compreensão melhor acerca do que ocorria em minha vida. Eu não estava bem dentro de minha própria família de origem. Meu relacionamento com meus pais e irmãos era bem ruim, no sentido principalmente de ausência. Eu vivenciava um vazio muito grande de companheirismo, e nem me dava conta disso. Fui perceber melhor esse ponto somente cerca de 5 anos depois, quando eu e meu irmão mais novo estabelecemos uma relação bem mais empática e companheira.

Então se eu tivesse uma estrutura familiar que me fosse mais acolhedora, eu muito provavelmente não teria sido engolido por aquela trama de sensações a me fazer pensar que havia somente uma solução para meus problemas: entrar na puberdade. Não havia somente essa solução, e era a ela que eu me agarrava.

E também não havia ajuda, suporte técnico-profissional consistente. Primeiro minha mãe me levou a um clínico geral do INAMPS. Como várias vezes anteriores, acordamos às 2:30 hs e fomos para a fila, com nossos banquinhos. Às 7 horas o portão abriu e mais ou menos no final da manhã fomos atendidos muito, mas muito rapidamente mesmo, por um médico que nos encaminhou a um neurologista.

E depois, não teve jeito, peregrinamos por alguns consultórios, a maioria particulares, à busca de alguma resposta. A minha sensação era de que algum distúrbio estava repentinamente acontecendo em meu cérebro. Os médicos rapidamente descobririam o que estava ocorrendo, e isso seria facilmente corrigido.

Era comum, naquela época, ouvirmos que esta ou aquela criança tinha "foco", no cérebro, e que em virtude disso precisava de remédios psiquiátricos. Então, prontamente pensei que meu problema também devia ser esse: eu devia estar com "foco".

No consultório particular de um neurologista fizemos a primeira eletroencefalografia, e não foi constatada qualquer tipo de anormalidade. Semanas depois esse mesmo exame foi repetido, porém agora no consultório de um neurologista, que também era psiquiatra, e que havia nos convencido de que era necessário um novo exame em sua clínica.

Novamente não houve qualquer tipo de alteração, e esse médico quis, diferentemente do anterior, conversar um pouco comigo, em privado. Ele me fez algumas perguntas, e essa nossa interação ocorreu por no máximo uns 20 minutos, após os quais pediu para que minha mãe entrasse.

Em minha presença disse à minha mãe que eu era um "perfeccionistazinho", e assim prescreveu clomipramina (um antidepressivo tricíclico) e o outro medicamento eu não me lembro mais qual era.

Tomei esses dois medicamentos durante uns 2 ou 3 meses, e não percebi qualquer tipo de alteração em meus sintomas. Isso me deixava bastante revoltado, porque simplesmente parecia não haver qualquer tipo de solução médica para meu problema. Não havia qualquer tipo de definição acerca do que estava acontecendo.

E meu pai também ficava bastante revoltado:

- Adriano, porra, vamo pará com essa merda! Puta que pariu, Adriano, o que é que tá acontecendo com você?

E assim diversas suposições, palpites, dicas, conselhos e superstições brotavam da boca das mais variadas pessoas que acabavam sabendo um pouco do que estava ocorrendo comigo.

Na escola os adolescentes não perdoavam: "Adriano, é verdade que você ficou louco?", "Esse aí é aquele crânio, que ficou louco", "Olha só, de que adianta o cara ser inteligente pra caralho, e ser pequenininho, feio e magricela desse jeito. Parece um ET", e assim, para alguns ali, meu apelido passou a ser ET.

"Cala a sua boca, porque você não tem moral alguma para dizer nada! Você está consumindo toda a grana da casa com seu psiquiatra. Vai lá conversar com seu psiquiatra e não me enche o saco!", era o que algumas vezes ouvi de meus irmãos, muitas vezes na presença de pessoas de fora da família, em algumas situações em que nos desentendemos.

E ouvir algo assim era extremamente eficaz para fazer com que eu me calasse mesmo, porque eu me sentia extremamente culpado e envergonhado com tudo aquilo.

Esse grande consumo de recursos estava ocorrendo primeiramente porque a renda de minha família era muito baixa em comparação com os preços de consultas em psiquiatras e psicólogos. Minha mãe inicialmente procurou por assistência em um hospital público, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Tínhamos uma vizinha que lá trabalhava como técnica de enfermagem, e ela recomendou que procurássemos pelo serviço de psiquiatria, no qual trabalhava o Dr. Felipe (nome fictício).

- Vai lá, e procura por ele. Ele é um crânio.

Entretanto Dr. Felipe nos atendeu somente uma única vez naquele hospital público. Logo em seu primeiro atendimento convenceu minha mãe de que seria melhor se fôssemos acompanhados em seu consultório particular. Não tratarei aqui do provável problema ético envolvido nesse tipo de encaminhamento. A resultante desse tipo de procedimento é mais importante para a narrativa e as considerações que estou fazendo neste texto: o valor das consultas com esse psiquiatra era extremamente alto diante da renda familiar que tínhamos àquela época.

Não bastasse todo o sofrimento que eu já estava vivenciando, ainda havia o adicional de me sentir como um peso, o grande estorvo de minha família. Da criança que, um ano antes, todos os dias lavava as louças e arrumava a cozinha, participando ativamente em várias tarefas da casa, e sendo um bom ajudante de minha mãe, que praticamente não consumia nenhum recurso que fosse dispendioso para a família, me transformei em um peso.

Em uma família que vivia uma espécie de economia de guerra, para poder continuar funcionando e construindo alguma coisa para o futuro, eu era agora um um fardo muito grande para ser carregado: era assim que me sentia.

Assim então comecei uma psicoterapia com esse psiquiatra. Inicialmente as sessões ocorriam semanalmente, e talvez tenham ocorrido somente umas três ou quatro sessões com essa frequência, porque de fato ficou bastante pesado em termos de orçamento familiar. Portanto a minha lembrança é a de que tive no máximo umas 10 sessões com esse médico.

E senti algo similar ao que muitas pessoas sentem quando fazem psicoterapia pela primeira vez: o terapeuta pouco falava, porém, por sorte, fazia muitas perguntas. Contudo eu não tinha ideia de que respondendo às perguntas dele, e falando do modo mais livre possível, de modo a me envolver o máximo possível, eu poderia ter tido um aproveitamento muito melhor.

Às vezes fico pensando também que talvez não houvesse condições para que ele mesmo se envolvesse de modo mais profundo com seus pacientes. Entretanto também talvez não faça muito sentido fazer uma série de especulações acerca de algo que ocorreu há mais de 30 anos, quando eu era uma criança.

Uma coisa porém, apesar de tantos anos já terem se passado, para mim é clara: foram pouquíssimas sessões dentro daquela modalidade de acompanhamento.

Por sorte, não sei se em função das próprias contingências de convívio e de sensações que eu vinha vivenciando, ou até mesmo em boa medida em função das interações que eu vinha tendo com esse terapeuta, comecei a interagir com as pessoas de modo um pouco diferente e mais flexível.

Entretanto, mesmo com algumas variações em meus comportamentos, no ano de 1986 tive ainda umas duas crises. Após a primeira delas meu pai, kardecista, fez questão de me levar ao centro espírita que de vez em quando ele frequentava, para que eu pudesse "tomar um passe", porque eu estaria possivelmente sofrendo em virtude da atuação maléfica de algum espírito obsessor.

Vários dias após o ritual kardecista eu continuava me sentindo do mesmo jeito, e assim sobreveio uma segunda crise. E, para piorar, depois dessa segunda crise, padeci durante cerca de 40 dias de muitos sintomas de ansiedade. Tivera a infelicidade de assistir, juntamente com um de meus irmãos, um filme de terror ("A profecia") no qual muitas pessoas enlouqueciam após serem possuídas pelo demônio.

A trama desse filme fazia novamente ressoar em mim o pavor de ser possuído pelo diabo, enlouquecer e assim cometer atrocidades. Muitos dos personagens do filme, quando possuídos, além de enlouquecidos e assim cometerem atrocidades, eram também mortos de forma atroz. E tudo isso acompanhado por uma trilha sonora indigesta e horripilante.

E durante a noite eu tinha de dormir em um quarto, juntamente com meus irmãos, que tinha algumas imagens de demônios e símbolos satânicos estampadas nos pôsteres das bandas de heavy metal que meu irmão mais velho gostava. Isso, por mais ridículo que possa parecer, fez com que eu tivesse muitas noites mal dormidas, angústia intensa e muita vergonha por estar sentindo tudo aquilo durante uns 40 dias.

Até que de repente, em um final de tarde, eu estava em casa estudando, e coloquei um dos discos de meu irmão para tocar. Estava fazendo algum dever escolar, por escrito, e o disco era do Pink Floyd. Eu gostava muito de Pink Floyd, mas aquele disco, cuja capa era um ouvido mergulhado na água, aquele eu ainda não havia ouvido inteiro.

Era “Meddle”, disco de 1971, e a música era “Echoes”, que tem mais de 20 minutos, e tomava todo o lado B do vinil. Começa com um som ecoante e suave, como se fosse de um pingo, entra em um crescente grandioso, atinge seu clímax, e vai se desfalecendo até se transformar em sons com um aspecto horrendo, assombroso.

Eu estava sozinho, e ainda estava vivenciando todo aquele pesadelo de estar apavorado com a possibilidade de sofrer em função do poder sobrenatural de uma entidade sobre a qual não há qualquer tipo de evidência. Porém para mim, àquela época, havia uma possibilidade razoável de que algo assim (totalmente fora de nosso controle e extremamente poderoso) existisse.

Estava anoitecendo e a casa já estava toda escura, havendo somente acesa a lâmpada da luminária que eu usava para estudar. Mas eu já não aguentava mais toda aquela tortura. Levantei-me, em fúria, e fui até o fundo do quintal, nos quartinhos dos fundos, onde costumeiramente nem eu nem meus irmãos íamos durante a noite sem que sentíssemos um certo frio na espinha.

Inspirado em uma passagem da obra "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa, a qual havia sido retratada em uma minissérie da Rede Globo meses antes, no escuro olhei para o céu e fiz uma espécie de desafio ao diabo:

- Já tô bem cansado disso tudo, e não aguento mais ter medo de alguma coisa que eu não sei se existe. Ou você aparece agora e aí a gente vê o que faz, ou então estarei livre! Apareça agora, Belzebu, Coisa Ruim!

O tempo passava e nada acontecia. Mesmo assim eu continuava invocar, e fiz isso por várias vezes. Desse modo fui ficando mais tranquilo, e percebendo que eu poderia esperar um pouco mais para ver se as coisas de fato iriam acontecer da forma que eu tanto temia.

Nesse dia minha crença no diabo sofreu um grande golpe, e eu tive um sentimento intenso de libertação. Eu não estava livre de todos os meus problemas e sintomas, mas esse havia sido certamente um passo importante. Eu tinha a intuição de que era importante que eu tentasse me habituar, que era necessário entrar em contato com aquilo que temia. Só não sabia exatamente como fazer isso e nem estava tendo a ajuda adequada.

E eu também de certo modo acreditava que minha vida precisava de algumas mudanças concretas e objetivas, as quais iriam resultar em alterações no modo como as pessoas se relacionavam comigo.

Minha crença porém não continha as especificidades necessárias para compreender meu contexto de vida de uma forma mais completa. Supunha que existiam algumas direções básicas, mas não tinha a menor ideia de que existiam algumas outras alternativas também. Algumas coisas fundamentais, em termos afetivos, não estavam ocorrendo em minha vida, e isso não se resumia ao fato de ainda não ser um púbere.

Após esse episódio em que eu praticamente me libertei do medo do diabo, consegui adquirir um pouco mais de estabilidade, e passei a contar cada dia que eu conseguia continuar vivendo sem ter uma crise. E assim os dias e os meses foram se passando, e eu continuei contando. Até que algo em torno de um ano inteiro se passou, e eu resolvi que já era hora de parar de contar. Porque também agora eu já era o que tanto havia desejado ser: um púbere, de corpo e alma.

Os anos foram se passando, e meus desafios e problemas foram se alterando, se alternando e se recriando, ou até mesmo se acumulando em alguns momentos, como ocorre na vida de qualquer pessoa.

Sei que em alguns momentos tive dificuldades mais acentuadas, e com as quais cheguei a pensar que não iria conseguir lidar. Tive, como quase qualquer pessoa, momentos felizes e outros bastante dolorosos, e nunca tive comigo a sensação de que sei viver. O aprendizado é constante, e sempre podemos aprender com o mais variado tipo de pessoas.

Ter escolhido fazer Psicologia, dentre outros propósitos, também se relacionou com querer entender melhor tudo isso que é a vida, o sofrimento e a complexa interação entre as pessoas. Conforme os anos foram se passando é que fui compreendendo melhor o que ocorreu comigo naqueles tão sofridos 1985 e 1986.

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