Sunday, April 13, 2025

É socialismo ou a barbárie (2)

Na China algumas coisas são, de certo modo, sagradas. Uma delas é a de que o monopólio dos meios de produção não pode ficar nas mãos do setor privado. E eu acho esse princípio importantíssimo. Penso que deveria ser aplicado no mundo todo. E não consigo dar outro nome para isso. O nome disso é socialismo. 

Mais ou menos um terço das riquezas da China está nas mãos do Estado. Outro terço é misto. E outro terço é privado. Parecem ter encontrado, por ora, o melhor equilíbrio desses três setores. Embora saibamos que no final das contas o setor mais poderoso é o estatal, comandado pelo Partido Comunista Chinês.

E alguém poderia argumentar: "eis o desequilíbrio, pois agora quem oprime é o estado. Porque a concentração de poder sempre gera uma série de malefícios".

Porém se observarmos novamente por essa divisão desses três terços esse poder não é assim tão concentrado. O estado tem um poder decisório, organizador, de administração, criação e supervisão de políticas públicas, as quais também estão voltadas para políticas de desenvolvimento econômico e industrial. Investe em determinados setores, retira recursos de outros, que não estão produzindo os devidos resultados, e está o tempo todo voltado para a construção do desenvolvimento nacional. 

O que existe, em primeiro lugar, não são os interesses particulares. A prioridade são os interesses coletivos. A coletividade está acima da individualidade. E alguns princípios são praticamente sagrados, tais como a luta por mais igualdade e pelo fim da pobreza e da miséria. E nesse sentido há um compromisso muito grande para fazer valer alguns princípios fundamentais da "Declaração universal dos direitos humanos", que a maior parte do mundo capitalista ainda está longe de conseguir fazer valer ou de conseguir fazer frente ao que a China já conseguiu.

Nos últimos 50 anos retiraram mais de 800 milhões de pessoas da miséria. 

E outra coisa que é de certo modo equivocada é a afirmação de que eles não têm uma democracia representativa. Eles realmente não tem uma democracia representativa plena, no sentido de que não votam, por exemplo, para Presidente da República. Mas há muitas eleições diretas na China, que começam nos bairros e cidades e vão até os congressos populares e condados. Há muita política e muito debate político na China, em diversos níveis. Até a inteligência artificial do Google sabe disso: 

"A China possui um sistema eleitoral com diferentes níveis de representação. As eleições diretas ocorrem em nível local, para os Congressos Populares nos bairros, cidades e condados. Nestas eleições, os cidadãos votam diretamente em seus representantes.
Em níveis mais altos, como nas províncias e no Congresso Nacional do Povo (o parlamento nacional), as eleições são indiretas. Os representantes para esses órgãos são eleitos pelos Congressos Populares de níveis inferiores."

E alguém pode até alegar que o partido comunista chinês não irá permitir, mesmo em níveis locais, a diversidade, que o partido comunista não permitirá que algumas pessoas se candidatem. Isso é um fato. O partido comunista chinês não permitirá que algumas candidaturas ilegais se efetivem. 

Aqui no Brasil não permitimos que exista um partido nazista. Lá também não é permitido que existam partidos que neguem os princípios fundamentais do socialismo. Qualquer um que queira se projetar na vida política chinesa divulgando que o estado é um opressor e que o estado não deveria existir, estará cometendo uma ilegalidade. E pelo que já pude compreender de como lidam com essas questões por lá, é que os chineses costumam se expressar livremente, com bastante tranquilidade. O que não conseguem é se organizar em alguns partidos políticos que sejam contrários a alguns princípios que, para a perspectiva socialista chinesa, são irrevogáveis. 

Então não dá para montar um partido político na China que defenda o lucro e o monopólio privado sem qualquer regulação do Estado. O estado chinês está todo constituído para não permitir o monopólio privado, para não permitir que grupos privados controlem o poder. E o partido comunista não é composto por um grupinho pequeno de pessoas que concentram o poder e controlam o país. 

O partido comunista chinês tem 96 milhões de membros. Isso corresponde a quase 7% da população chinesa, o que seria equivalente a ter uma organização ou um partido comunista brasileiro que tivesse cerca de 15 milhões de membros. É muita gente. 

O presidente chinês não faz o que quer. Não é exatamente o que costuma ser compreendido como um ditador. O que ele pretende fazer ele não tira da cartola, como qualquer ditador. Existem princípios e leis muito bem estabelecidas, que ele deve seguir.

Todos os 96 milhões de membros do partido comunista têm poder de voto, em um sistema com numerosas hierarquias e de altíssima complexidade. É meio ridículo tentar comparar o sistema político chinês com o de alguma republiqueta de bananas. As evidências têm nos mostrado que são universos completamente diferentes. Se em uma república de bananas impera a anomia, com o poder concentrado em uma família, em algo muito mais parecido com o que observamos em monarquias absolutistas e teocêntricas, como uma Arábia Saudita da vida, por exemplo; na China o processo é completamente diferente. É outro universo. É outra dimensão. 

A China tem mais de 4 mil anos de civilização em tempo contínuo e mais de 2 mil anos de burocracia. É uma das culturas e uma das burocracias mais antigas de toda a história e tudo isso em tempo contínuo. 

Derrubaram a monarquia em 1912 e, 37 anos depois, em 1949, superaram o capitalismo. Nos 23 anos seguintes sofreram com o embargo econômico dos Estados Unidos. E mesmo com essa cruel retaliação tiveram taxas médias de crescimento econômico anual de 6,5% na década de 1950 e de 4% na década de 1960, mesmo com todos os erros, já compreendidos e assumidos, que ocorreram durante o período da revolução cultural entre 1966 e 1976.

Com o objetivo de provocar um distanciamento entre China e União Soviética, em 1972 os Estados Unidos puseram fim ao embargo econômico, permitindo assim que a China saísse do isolamento e voltasse a comercializar com o restante do mundo. E é aquela história. Se o socialismo tem tudo para dar errado, para que fazer embargo econômico? Se o socialismo tende a ser um desastre, porque não deixam os países socialistas em paz? Por que os Estados Unidos sempre tentam isolar esses países do restante do mundo, sufocando-os economicamente? 

Esse retorno da China ao comércio mundial se consolidou com a política de "Reforma e abertura", de Deng Xiaoping, em 1978. 

Desde então as taxas anuais de crescimento são de 7.9% durante a década de 1970, 9,5% durante a década de 1980, 10,6% durante a década de 1990, mais de 10% ao ano durante os anos 2000 e de 7,7% entre 2010 e 2019. 

Então, a partir de 1978, com a permissão dos Estados Unidos para voltar a fazer comércio com o mundo, a China começou a construir um socialismo singular, que também permitia um significativo empoderamento do setor privado, do mercado, da lei da oferta e da procura. Porque o mercado também possui suas virtudes: de produção acelerada de riquezas, autorregulação, concorrência e vários outros princípios já muito bem conhecidos desde a ascensão do capitalismo. 

Porque o socialismo não é a negação do capitalismo. É sua assimilação e superação. E está passando da hora do mundo todo fazer o mesmo: também ser capaz de superar o capitalismo e permitir que adentremos um outro estágio de humanidade e civilização, muito mais preparado para os desafios que estão pela frente. É socialismo ou a barbárie!

É socialismo ou a barbárie (1)

Cheguei em um ponto de minha vida no qual já não acredito mais (tanto quanto acreditava antes) na democracia liberal, nas democracias ocidentais.

Com isso não estou querendo dizer que devemos implantar um regime autoritário em nosso país, de modo algum. Não sinto isso como minimamente factível e nem desejável. Não é disso que estou falando e quem quiser confundir o fará de modo intencional e até maldoso. Só estou querendo dizer que durante toda a minha vida, até alguns meses atrás, eu ainda acreditava muito no modelo liberal de democracia.

Antes eu era bem mais otimista do que sou atualmente. Antes eu sentia que havia a real possibilidade de mudanças importantes por meio desse modelo. E de uns meses para cá tenho me tornado mais pessimista em relação a isso, porque o problema é mais embaixo. No papel somos uma democracia, existe liberdade de expressão, de participação política. A Constituição Federal é a constituição cidadã.

Mas é uma constituição que, com seus quase 35 anos de existência, ainda não fez valer muita coisa importante. Muito do que está previsto em nossa Constituição ainda está longe de ser cumprido. E cito somente um dos pontos que para mim é mais emblemático: a questão do uso social da terra. 

Se nós de fato cumpríssemos o que está na Constituição, eu tenho a impressão de que já era para ter ocorrido a reforma agrária. E estamos muito longe disso. A concentração de terras nas mãos de poucos ainda é obscena e os níveis de desigualdade social em nosso país ainda são indecentes. 

Outra coisa que também me preocupa bastante, senão a que mais me preocupa, é a questão ambiental, no mundo todo. A crise climática já está aí. É um trem colossal, em alta velocidade, que precisa imediatamente parar. Essa não será uma tarefa nada fácil. É o maior desafio para a humanidade em séculos, quiçá milênios. E eu não tenho a menor esperança que com esse modelo de democracia conseguiremos alguma coisa, porque em tese é um modelo muito bonito, mas na prática tem se mostrado um modelo refém de grandes interesses econômicos e lobbies.

Quem manda no mundo capitalista é o poder econômico. Quem manda aqui no Brasil, e até naquilo que muitos acreditam que seja a maior democracia do mundo (os Estados Unidos), é o poder econômico. E lá atualmente, mais do que nunca, eles estão muito mais próximos de um sistema totalitário de direita do que nós. Mas assim que eles caírem, caímos junto. E eles estão nitidamente caindo. 

O poder absurdo que os bilionários e as big techs alcançaram é algo que não me deixa nada otimista. Esses caras agora mandam e desmandam no mundo ocidental e em todas as democracias liberais. Quem manda e desmanda hoje em qualquer sociedade capitalista é esse povo. 

E aí eu fico aqui torcendo para haver alguma alternativa. E quando se fala em alternativa, me perdoem, mas só consigo pensar no quê? Sim, na China.

Pensem por favor comigo na crise climática. Vocês acham que conseguiremos resolver a crise climática com bilionários que só pensam em perfurar poços de petróleo? Vocês pensam que é possível resolver a crise climática sendo refém de lobbies do poder econômico?

Há quem diga que talvez seja impossível viver em um mundo sem lobbies. Mas fico pensando que talvez não seja impossível não, e fico pensando que uma sociedade como a chinesa não é refém de lobbies. Se eles existem lá, são muito fracos.

Perto de uma sociedade como a nossa, a sociedade chinesa é tecnocrática. E há quem veja um perigo enorme na tecnocracia. Mas querem saber? O que o mundo mais precisa hoje é disso, é de tecnocracia. E sinto que o pesadelo que vivemos durante a pandemia talvez tivesse sido o suficiente para nos darmos conta disso. Mas parece que a maioria das pessoas não se deu conta disso. Faltou-nos um pingo de tecnocracia, e com isso o saldo foi o que vimos: cerca de 400 mil pessoas mortas por uma liderança ignorante, que não ouvia o a ciência, os técnicos da área. E eu falo em 400 mil mortes porque estou falando do saldo a mais. Porque se o Brasil tivesse se enquadrado nas médias mundiais de óbitos, teríamos tido somente umas 300 mil mortes e não todo aquele horror bizarro que vivenciamos.

A crise ambiental atual demanda participação de todos os setores de modo equilibrado e não como ocorre em um país como nosso, no qual o setor privado deturpa tudo. Sim, deturpa tudo. Não tem cabimento um Congresso ser composto pelas pessoas que estão lá, que não representam os interesses da maior parte da população. Não tem cabimento o poder que esse povo tem para fazer pobre defender e votar em rico. Pobre de direita é uma excrescência que só é explicada pelo modelo no qual vivemos, onde praticamente todo mundo tem um preço.

No papel somos uma democracia, uma democracia liberal. Mas na prática é o governo de quem tem mais poder econômico. É uma plutocracia ou uma oligarquia. Dêem o nome que acharem melhor. Não é o governo da maioria.

Não adianta falar em liberdade de escolha se as pessoas não têm o mínimo de condições para produzirem escolhas mais conscientes. Quem não tem as condições mínimas de subsistência está longe de ter qualquer tipo de liberdade de escolha para qualquer coisa. Quem não tem uma formação política, acadêmica e cidadã mínima, não tem liberdade de escolha. 

E aí vai sempre aparecer alguém para dizer que o caminho é a educação e esse também é outro equívoco. O que manda num bom sistema educacional não é a educação em si. A educação não brota da educação. A história mostra que os maiores avanços em termos educacionais se deram na sociedades que conseguiram se desenvolver em termos industriais, que têm políticas industriais. 

O Brasil está há décadas a derivar no oceano do subdesenvolvimento principalmente por falta de políticas de desenvolvimento industrial. Praticamente não existe desenvolvimento sem desenvolvimento industrial, e será muito difícil também desenvolver um bom sistema educacional sem isso. 

E alguém pode ainda aqui dizer: mas em Cuba? Cuba tem altíssimos níveis de alfabetização e um excelente sistema educacional. Mas Cuba continua sendo também muito pobre e não se desenvolve. Claro, há obviamente o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, e esse é um fator crucial. Mas Cuba também sofre com um modelo pouco versátil de socialismo, ainda muito centralizado e baseado quase somente no estado.

Eu por enquanto creio que os chineses tenham encontrado o melhor equilíbrio entre os setores econômicos da sociedade. E também creio que eles não estão sozinhos nessa. Um exemplo claro de um país que tem seguido modelo semelhante me parece que é o Vietnã.

Há um equilíbrio entre os setores privado, misto e público na China. Cada um deles detém cerca de um terço das riquezas. 

Sim, o Estado na China é muito forte. E é bem mentirosa essa conversa de que o que mais atrasa uma sociedade é o Estado.

Somente o estado investe onde há mais risco e as maiores descobertas mundiais de nosso tempo e das últimas décadas foram todas fruto de investimento estatal. Acho muito tolo quem ainda acredita naquele papo furado de empreendedores de fundo de garagem. A China chegou onde chegou porque é um socialismo de mercado, ou um capitalismo de estado. Dêem o nome que quiserem. Eu obviamente prefiro chamar de socialismo de mercado porque acredito que estamos vivendo um contexto de esgotamento do modelo capitalista. Esgotou, já era. Se continuarmos nessa, não conseguiremos sair desse lamaçal da crise ambiental, que está somente começando. Por quê? Porque quem manda aqui é lobby, meu irmão. E os grandes interesses econômicos estão pouco se lixando para o bem-estar comum. E é por isso que a ganância tem que ser o tempo todo regulada pela mão de um Estado forte. Ou é isso ou é a barbárie. 

É socialismo ou a barbárie!

Não tente conquistar ninguém

Tentar conquistar o amor ou a amizade de alguma pessoa, em específico, costuma ser furada. Faz mais sentido tentar melhorar nossas habilidades sociais e atributos, que possam fazer com que mais pessoas se simpatizem por nós.

Pessoas que não gostam da gente tenderão a continuar não gostando. Em muitos casos o tempo de convivência coloca a pessoa na realidade e ela percebe que não éramos aquilo que ela pensava. Depois desse tempo de convivência, se essa pessoa continuar não gostando, provavelmente ela nunca irá gostar de você.

Não faz sentido ficar correndo atrás de ninguém. É importante o autocuidado, que envolve cuidados com a saúde e com a aparência, e tentando se manter sempre bem no sentido das capacidades de lidar com os outros de modo saudável e gentil. Então é importante sempre estar saudável, não se descuidando da aparência, e se manter também como uma pessoa agradável, de modo geral, na relação com os outros.

Feito isso, o resto é com o destino. O resto será obra do tempo e das vicissitudes da vida, para a qual não cabe a fixação em uma pessoa especificamente. Primeiramente porque a obsessão é coisa de gente doente. Não tem que ser especificamente aquela pessoa. Cuide de seu jardim, que o cheiro de suas flores, os ventos e os destinos da vida trarão algumas abelhas. Mas não necessariamente aquela abelha com a qual você sonhou. E mesmo que apareça essa abelhinha com a qual você sonhou, pode acontecer dela não ser aquilo tudo que você pensava. Porque ter sempre sonhado com alguma coisa específica é algo que concorre consistentemente para aumentar a probabilidade de que você se frustre.

Um ensinamento importante do estoicismo é o de que devemos aceitar o que não pode ser mudado. Isso também vale para os amores e as amizades, para nossos círculos sociais e afetivos. Se passado um tempo considerável de convivência, mesmo assim aquela pessoa continua não gostando de você, ela provavelmente nunca terá simpatia por sua pessoa. 

Quando lhe pedir um favor, que lhe custe algum sacrifício, depois do sacrifício você receberá somente um "valeu", bem seco. E se você lhe responder que não tem condições de fazer tal sacrifício, essa pessoa deixará você falando sozinho antes mesmo que você justifique seus motivos. Porque é exatamente assim que funciona o desamor. E que para você não deveria ser motivo de revolta, porque é de onde menos se espera que vem sempre o mesmo resultado: nada ou muito pouca coisa. 

Pessoa alguma jamais deveria ser alçada ao posto de última coca-cola do deserto. A última coca-cola do deserto é a ante-sala da extinção sumária das coca-colas. Se chegou nesse ponto é porque já estava fadado a não sobrar mais nada.

Sunday, March 30, 2025

Violência no CAPS

Nos dias em que o CAPS se transforma num caos as coisas podem sempre piorar.

Eu estava com meu grupo de pacientes, o grupo de metas, na maior sala, bem perto da entrada, quando começamos ouvir uma gritaria. Pedi licença e fui até a porta. Era um rapaz de mais de 1,90 m e bem robusto. Seu nome era Edvan (nome fictício). Não era somente alto, era consideravelmente forte. Isso lhe conferia certamente uma aparência intimidadora. 

Eu quero meu Rivotril! Não saio daqui sem meu Rivotril. Não saio dessa poha sem meu Rivotril! Ô, desgraça! Vocês são um bando de vagabundos! Vocês tem que trabalhar! Eu pago o salário de vocês, seus vagabundos!

Não era paciente de nossa unidade. Não era paciente de CAPS. Era a primeira vez que ele aparecia por ali. Chegara há poucos minutos. Exigia atendimento imediato e literalmente furando a fila. Havia outras pessoas que tinham chegado antes dele. 

Minha hipótese é a de que ele chegou e, em seu primeiro contato, com o primeiro servidor, infelizmente não foi recebido de forma muito gentil. Infelizmente existe uma cultura bastante generalizada no Distrito Federal de não haver gentileza, simpatia ou sorrisos com estranhos. Muitos brasilienses não respondem a um cumprimento de bom dia e nem são abertos para conversar trivialmente com estranhos no supermercado, parada de ônibus ou em qualquer outro local fora de casa. Creio que esse paciente chegou ao CAPS e disse um bom dia para alguém que não lhe respondeu a esse cumprimento de bom dia e não lhe sorriu, e que esse tipo de interação pode ter sido a faísca que faltava em alguém com um potencial explosivo tão grande.

Ele já estava bastante agitado, caminhando de um lado para outro e vociferando para as pessoas presentes na instituição, que não eram poucas. 

- Você não me conhece. Fica esperto! Você não sabe com quem você está lidando - dizia furiosamente para o vigilante e quaisquer outras pessoas que estavam por perto, tentando acalmá-lo.

Paulo, nosso vigilante daquela ocasião, se manteve muito sereno e com o tom de voz modulado para baixo, tentando acalmar aquele rapaz que parecia confiar bastante em sua estrutura física ameaçadora. 

Paulo fitava-o com mansidão, com o oceano de um olhar tranquilo. Não se opunha. Colocou-se à sua frente e parecia tentar acalmá-lo, de modo firme e pacificador. Eram dois homens pretos, separados por quase 30 anos de diferença. Unidos pela cor da pele, estatura e separados em duas gerações e biografias completamente diferentes, sendo Edvan o mais jovem e impulsivo e Paulo o quase ancião dessa história. 

Não compreendo como Paulo não se intimidou, pois tinha diante de si alguém bem mais jovem, grande, forte e propenso à violência.

- Você não sabe quem eu sou. Se liga, Mané! Eu pago teu salário! - vociferava Edvan.

Começou a retirar-se, em direção à rua.

- Eu vou embora, mas eu volto! 

E nem foi-se por completo. Atravessou a rua e coletou um grande pedaço de cascalho que repousava no chão. Era uma pedra com uns dois ou três quilos de massa, pouco maior que um tijolo comum, de barro, com o qual Edvan rumou novamente em direção ao CAPS, que estava lotado, resultando em correria generalizada. Pacientes e servidores se debandaram, desesperados, rumo aos fundos do prédio, que se estende por cerca de 50 metros de comprimento, talvez 30 ou 40 metros de largura e composto por diversas salas. Não sabíamos do que ele era capaz. Estávamos todos em busca de fuga ou refúgio.

Corri em direção à copa, um pouco antes da enfermaria, praticamente nos fundos do terreno. Antes que lá chegasse, ouvi o primeiro forte estrondo, resultante do impacto do cascalho nos vidros da porta de entrada.

- É tiro! É tiro! - gritavam aflitos alguns pacientes, mais ao fundo do CAPS, que não sabiam o que estava acontecendo.

Eu sabia que Edvan havia coletado na rua um grande cascalho e que aquele estrondo era resultante do impacto. Corri e tentei me esconder, porque não tinha a menor confiança de que seria capaz de me proteger de suas investidas ou de um cascalho que pudesse ser arremessado em minha direção. Não seria capaz de me esquivar. Como a maioria das pessoas, corri e fugi sem hesitar, pois não havia mais o que ser feito. 

Então, se dependesse de mim, Edvan facilmente tomaria a posse de todas as instalações do CAPS. Não tentei bloqueá-lo fisicamente. Isso não se afigurava como uma possibilidade para mim.

Edvan adentrou o CAPS pelo portão, caminhou até perto da porta e arremessou o primeiro cascalho, destruindo completamente um dos vidros.

Paulo, das raízes profundas de seus 59 anos de idade e mais de 20 como vigilante, agiu de modo completamente diferente de mim e da grande maioria das pessoas que ali se encontravam.

Quando Edvan invadiu o CAPS com o primeiro cascalho, também se escondeu, pois não lhe restava outra alternativa, ao risco de receber uma pedrada certamente bastante danosa. Ser vítima do arremesso de um cascalho daquele tamanho poderia facilmente ser fatal. 

Contudo, quando percebeu que Edvan retornava à rua para coletar o segundo cascalho, rumou em sua direção, para maior desespero de alguns poucos, que ainda observavam a sucessão daqueles lamentáveis eventos. 

- Seu Paulo, volta! Volta! Não vai lá não! O cara tá louco! - gritavam alguns. 

Paulo, porém, não corria propriamente na direção de Edvan. Na verdade corria para fechar e trancar o portão, o que somente fez aumentar a ira de Edvan, que agora corria na mesma direção, para impedir que Paulo o trancasse, com o risco de que houvesse um embate físico entre os dois. 

Por sorte, nosso vigilante conseguiu trancar o portão a tempo. Edvan chutava o portão com força, deformando-o completamente. Era bem forte, mas sua força era insuficiente para quebrar o ferrolho e seu grande cadeado. Paulo, em seu treinamento, possivelmente havia ensaiado aqueles movimentos por diversas vezes e também ensaiado vários outros movimentos de contenção de pessoas agressivas.

Porém, a distância entre o portão e a porta de vidro era de menos de 10 metros, com um bloqueio gradeado que permitia a visualização desta porta e sua mira. Diante de tal contexto, Edvan não hesitou em arremessar o grande cascalho com toda sua força.

Por sorte, esse segundo cascalho bateu na junção de ferro dos vidros, e não sei exatamente por qual motivo Edvan deu-se por satisfeito. Talvez não houvesse mais cascalhos por perto. Ele, porém, continuou do lado de fora, na rua, praguejando.

- Vocês são uns vagabundos! A gente paga pra vocês trabalharem e não para ficar negando serviço! Vocês precisam respeitar as pessoas! É por isso que esse Brasil não vai pra frente! Eu sou cidadão de bem e exijo respeito! 

Alguns pacientes se refugiaram dentro de um banheiro. Muitos choravam e rezavam. Eu me abriguei dentro da copa, juntamente com alguns outros colegas, também servidores. Todos estávamos com medo que Edvan avançasse para dentro das dependências da instituição, agredindo e ferindo quem estivesse pela frente. Todos tinham medo de algo parecido com um massacre coletivo, como naquelas invasões de atiradores de escolas. 

Sim, tratava-se somente de uma única pessoa, que não portava a arma de fogo. Porém, dada sua agressividade e porte intimidador, e o fato de estar munido com grandes pedaços de pedra, que podiam ser arremessados em qualquer pessoa, praticamente ninguém teve a coragem de se manter por perto, dado o risco de se ferir seriamente.

Mas Paulo estava lá, bem perto, diante de Edvan. Paulo era a pessoa que continuava a encará-lo com grande proximidade e risco. 

A copa tinha uma janela, que dava para a horta. Pulei essa janela e da horta telefonei para a polícia, sem saber que Edvan estava trancado para fora do CAPS, na rua.

- Um sujeito invadiu o CAPS de Samambaia, coletou grandes pedaços de pedra e os arremessou na porta de vidro, e talvez nesse momento esteja invadindo as dependências e depredando o que encontra pela frente. É possível até mesmo que tenha ferido alguém seriamente.

- Ele está armado com arma de fogo?

- Não, mas está muito agressivo e é um sujeito bem grande e forte.

- Ele feriu alguém seriamente? 

- Não, mas o desespero aqui é geral. Vários servidores e pacientes correram e estão todos escondidos.

Essa conversa com a atendente se estendeu. Ela parecia resistir a qualquer informação que eu lhe passava. Parecia que iria acionar o serviço de urgência somente se houvesse alguém seriamente ferido. E eu de certo modo até compreendo. Se a polícia militar também estiver padecendo do problema que nós mesmos padecemos: falta de recursos humanos, falta de pessoal. Com falta de pessoal e uma demanda muito grande, devem ser priorizado os casos onde há pessoas feridas ou seriamente feridas.

Nada disso acalma quem está desesperado, assim como nossos pacientes desesperados também não costumam se acalmar rapidamente. Era o caso propriamente de Edvan, que diante de seu desespero, pelo visto, geralmente explode em agressividade. Fico imaginando se fosse Edvan ao telefone, pedindo socorro para a polícia. Ele xingaria violentamente a atendente:

- Olha aqui, sua phuta! Você não tá vendo que tá rolando a maior merda aqui? Phuta que phariu! Vocês vão esperar alguém ser morto? Karalio!

A polícia, contudo, chegou rapidamente. Porque antes de mim, ou ao mesmo tempo, outras pessoas também haviam telefonado para pedir socorro. Não havia mais gritaria e pude ver que Edvan estava na rua, já conversando com alguns policiais. 

- Eles me negaram atendimento. Sou um trabalhador, um cidadão de bem e tenho transtorno mental... - dizia aos policiais, em tom de voz bem mais ameno, chorando.

 Era a primeira vez que Edvan botava os pés dentro de um CAPS. Tinha o discurso e o comportamento organizados, o juízo de realidade preservado e não tinha histórico de internações psiquiátricas. Vinha na verdade fazendo uso abusivo de benzodiazepínicos, no caso o Rivotril, pelo qual furiosamente agiu para que o obtivesse de modo imediato, e sem qualquer tipo de espera ou diálogo.

Chegara ao CAPS e queria ser atendido em 5 minutos, furando a fila composta por diversas outras pessoas que haviam chegado bem antes dele e também tinham suas urgências. Provavelmente estava acostumado a ser agressivo e conseguir o que queria. A agressividade é algo que vicia. A minha hipótese é que Edvan era mais uma dessas pessoas intimidadoras que são viciadas em serem agressivas. Porque funciona. Porque dá resultado. Produz resultados favoráveis e imediatos, com uma série de efeitos colaterais a longo prazo, que não são tão bem percebidos por quem é agressivo. Mas que acabam, mais cedo ou mais tarde, por se fazer pesar em suas vidas. Porque, ao agirmos de modo agressivo e truculento, também por vezes colhemos as consequências morais ou jurídicas resultantes de tal comportamento.

Era o que estava acontecendo naquele dia. A minha hipótese é a de que Edvan estava novamente agindo de modo agressivo, porém agora estava tendo de lidar com uma consequência jurídica imediata. Passou dois ou três dias preso e nunca mais apareceu por ali. Não temos quase ideia alguma de quem era aquela pessoa e quais eram os problemas pelos quais estava passando. Entrou naquela manhã no CAPS, tomando-nos todos de assalto. Aquilo foi um assalto. Fomos todos tomados de surpresa, sob intensa ameaça. Não houve tempo para diálogo, escuta, conversa nada. 

Edvan entrou no CAPS com um único objetivo; pegar algumas caixas de Rivotril. E eu sei muito bem como é um assalto. Porque já fui assaltado algumas vezes. Simplesmente não há qualquer possibilidade de diálogo. Na maioria das situações é tudo muito rápido, e os criminosos agem para que não seja diferente.

Esse triste episódio foi tema de algumas reuniões de equipe. Ficou claro que em nossa formação continuada era necessária a inclusão de algumas aulas ou debates sobre estratégias de desescalonamento da agressividade. Assim foi feito. Durante duas ou três reuniões assistimos apresentações sobre técnicas e métodos para a prevenção de atos de agressividade tão intensos. E não era somente assistir a essas apresentações. Havia também debate exaustivo.

Infelizmente porém algumas pessoas, que ainda têm a cultura de não responder a um simples cumprimento de bom dia (ou que não sabem trocar gentilezas com desconhecidos), ainda continuam se comportando do mesmo modo.

Wednesday, March 26, 2025

Inveja e tolice

A inveja é a infelicidade pela felicidade do outro. Mas por que alguém ficaria feliz ao observar que o outro está feliz? Se essa outra pessoa é um inimigo, logo facilmente se compreende o motivo da infelicidade. Mas o problema é que existe gente invejosa até de filhos, que não são inimigos. Existe gente invejosa que observa o outro feliz e sente isso como uma grande injustiça. E só fica bem quando causa o mal a quem está feliz. Às vezes só fica bem quando consegue perceber que o outro também está infeliz.

São pessoas que tentam nivelar o mundo por baixo, pela miséria, por sua própria miséria pessoal. Não conseguem compreender o que seria necessário para também alcançarem aquele admirado estado de bonança ou de bem-estar. E mesmo que de fato exista injustiça, não conseguem compreender quais são as causas dessa injustiça. 

É muito nesse contexto que se forma o ressentimento. Existe a raiva, que é somente uma emoção, e geralmente passageira. Existe o ódio, que é o cultivo da raiva. E existe o ressentimento, que é o cultivo do ódio. O ódio do ressentido é plantado, colhido, descascado, fatiado amassado, fermentado, temperado e cozido durante meses, anos a fio. É sentir, e sentir novamente, por uma infinidade de vezes. 

É a vingança colocada no centro e no sentido da vida. É obsessão pelo outro como o sentido da própria vida. Não para ajudá-lo, acolhê-lo ou acalantá-lo. É a obsessão por um outro fantasmático, superdimensionado. É o mote de vida de gente miserável e geralmente boba, muito boba, que muitas vezes se orgulha de sua própria ignorância, de suas próprias tolices, como se essas fossem virtuosas. Justificam sua ignorância e tolice como uma espécie de espírito prático e resolutivo.

É olhar para o outro, que está bem e não entender absolutamente nada, tendo somente como propósito a reivindicação de alguma justiça que fica longe de ser produzida no horizonte míope de quem não entende minimamente os motivos de tal assimetria ou desigualdade. É a perspectiva viciosa da busca de igualdade pela destruição de tudo. 

O ressentido não sonha com um mundo melhor. É um tolo que percebe o sofrimento e a miséria somente na linha d'água de seu próprio umbigo. É incapacitado para empreender esforços na direção de uma sociedade mais igualitária, porque não foi disso que se alimentou durante boa parte de sua vida. Durante muito tempo foi doutrinado para dividir o mundo entre vencedores e perdedores e achar que esse é o espetáculo da existência humana.

Tuesday, February 18, 2025

A maldade

Há pessoas, muitas pessoas, que sei que não são más. Ou não são terrivelmente más. Mas que já me fizeram muito mal. Por medo ou mágoa de mim. Por ignorância ou egoísmo. Por pequenez de consciência. Ou talvez mesmo por terem razão, por eu merecer e não saber.

E há pessoas que pouco conheço e que nem tenho coragem de conhecer melhor. Porque infelizmente tive delas indícios, para mim muitos sérios, de que são realmente maldosas. Quando vejo o que me assusta, crio uma barreira protetora, raramente criada entre mim e qualquer pessoa, porque sou um ser tranquilamente aberto ao contato humano, para conhecer melhor quem quer que seja.

E essa barreira felizmente me transforma por completo. Adquiro, espontaneamente, a capacidade de ficar, imóvel, porque acende-se um alerta de perigo, a me avisar constantemente que com aquela pessoa devo ter muito cuidado. 

Nunca me fez mal algum, mas diante dela coisas horríveis ocorreram. Têm cheiro de algo muito errado. Estão sempre no centro de alguma confusão, no meio de transações obtusas, de jogos ardilosos de poder. Desprezam, tratam com violência e sorriem sadicamente para os vulneráveis. São afáveis e calorosos com pessoas poderosas. 

Com quem se comporta assim, sinto que todo cuidado é pouco. Somente observo. E tento tocar o rebanho inocente de minha vida adiante. Porque também sei o quanto sou vulnerável e você, pessoa malvada, que se regozija em ser assim, você não me engana.

Monday, February 10, 2025

Gatilhos

Há sintomas dos quais padecem as pessoas, que estão com transtornos mentais severos, que são inacreditáveis. Se alguém me dissesse que uma outra pessoa não tem condições nem mesmo de ouvir algo um pouco nojento, e que a partir disso literalmente vomita, eu não acreditaria.

Eu conversava com uma colega, no CAPS, que me perguntava detalhes sobre uma técnica de laboratório de análises clínicas. Ela queria saber mais especificamente como era a técnica Harada Mori. Essa técnica implica na coleta de uma amostra de fezes e sua parcial diluição em água destilada, formando-se assim um creme, como se fosse uma espécie de milk shake de fezes.

Um paciente estava perto, ouviu o que eu falava e saiu imediatamente do recinto, correndo em direção ao jardim, para vomitar.

Pensei: "não é possível. Ele deve estar somente emitindo aqueles reflexos de vômito".

Para minha surpresa, quando cheguei perto vi que estava de fato vomitando.

Pedi-lhe desculpas e deixei claro que a partir de então eu iria sempre tomar o máximo de cuidado para verificar se ele não estava por perto quando o assunto se remetesse a algo parecido, para que não tivéssemos mais um infortúnio como esse.

Para uma pessoa que está severamente adoecida os cuidados devem ser redobrados. Para outras pessoas, que simplesmente exigem que existam alertas de gatilho para quase todo e qualquer tipo de assunto, penso que elas também devem ser informadas de que precisam sim ir enfrentando, aos poucos, o que elas estão caracterizando como gatilhos. Porque a cultura do gatilho é extremamente enfraquecedora e adoecedora. Quanto mais nos esquivamos e nos protegemos daquilo que consideramos como gatilhos, mais fracos nos tornamos para o que nos é aversivo. 

Superproteção é uma coisa enfraquecedora. Superproteção institucionalizada é algo desastroso.

Covardia

Não consigo pensar ou sentir de outra maneira. Sempre que vejo alguém defendendo bilionários ou gente rica, de modo geral logo penso comigo mesmo: esse sujeito é um bunda mole, um covarde. 

Porque é um sinal imenso de covardia ficar do lado mais forte. As ideologias que pregam isso são sustentadas eminentemente por pessoas profundamente covardes.

- Você não tem vergonha na cara de ser tão covarde, tão bunda mole? - é o que tenho vontade de lhes perguntar.

E outro ponto também é que não se trata somente de covardia. Mas também de mesquinhez existencial, de egoísmo existencial. São pessoas que não querem ter dúvida em relação a se dar bem às custas de outras, que estão mais vulneráveis. Não têm o mínimo de grandeza de espírito para aceitar que o outro também pode ter os mesmos direitos que elas. Detestam a igualdade. 

E acrescente-se a isso o fato de que a defesa de bilionários também soa como um comportamento interesseiro, típico de puxa-sacos. Porque puxa-saquismo é refúgio comum de gente covarde.

Wednesday, January 29, 2025

"A terra vai pegar fogo"

O paciente estava com um livro na mão que me chamou a atenção. O nome do livro era "O mundo vai pegar fogo". Tinha capa de filme de ficção científica, daqueles que falam do fim do mundo.

- Perdoe-me, mas eu fiquei um pouco curioso como que você está lendo. Parece ser um livro muito interessante...

Ele prontamente colocou o livro em minhas mãos. 

- Estou gostando muito! É uma leitura muito envolvente!

Abri-o, e comecei a ler uma das orelhas.

Falava de riscos globais atuais: mudança climática, ameaça nuclear e das inteligências artificiais. Falava de como os cientistas já haviam nos alertado e de que a classe política não não havia ouvido o que diziam.

Gostei... Mas logo em seguida percebi que era um livro de cunho religioso. Começava falando de ciência e terminava com pregação e texto bíblico. 

- Você sabe o que são o que quer que você faça?

- Não. Como assim?

- Ele quer que você passe a frequentar a igreja dele.

- Eu sei disso. Mas jamais passaria a frequentar a igreja dele. Porque já tenho a minha. Fui batizado na Assembleia de Deus aos 13 anos de idade e jamais sairei de lá.

- Peço-lhe desculpas por ter desviado um pouco o assunto. É que esse livro tem uma capa muito chamativa, atrativa...

- Imagina... Não tem problema. Gosto muito de conversar sobre o que estou lendo. 

Nesse dia ele falou sobre muitas coisas, de sua própria história de vida, e em um determinado momento ressaltou:

- Mas tem uma coisa que mudou a minha vida. E é recente, coisa de dois ou três anos atrás.

- Mudou para melhor ou para pior?

- Para melhor, com certeza. Se não fosse isso eu ainda estaria refém de uma série de pessoas que só me faziam mal. Se não fosse isso eu nunca teria enxergado o quanto essas pessoas são tóxicas.

- E o que aconteceu há cerca de 2 ou 3 anos? O que mudou a tua vida? 

- Ayahuasca.

- Você bebeu o chá? É isso?

-Sim, bebi o chá seis vezes. E pretendo continuar bebendo. Não vejo a hora de beber novamente! Se não fosse o chá, eu jamais teria percebido o quanto alguns conhecidos e muitos dos meus familiares são extremamente tóxicos e somente ajudavam a me manter numa situação de sofrimento para o qual eu não via nenhuma alternativa de alívio.

Fiquei um pouco atônito. Ele começou o atendimento falando de religião, como se fosse uma pessoa religiosa fervorosa e no final acabou me revelando que o que mudara sua vida foi a ayahuasca.

Quando se trabalha um CAPS é tudo muito previsível. Sempre ocorre a mesma coisa. Boa parte dos pacientes sempre nos surpreende. É sempre isso que ocorre, essa previsibilidade. Sempre ocorre alguma coisa impactante, que nos surpreende e abala o chão sob nossos pés.