Monday, November 04, 2024

Psiquiatrização da psicologia

Tenho testemunhado muitos psicólogos cometendo um erro lamentável, que joga fora a psicologia, o que é específico da psicologia, em prol da psiquiatria, e que é um efeito ruim da psiquiatrização da vida.

Dou um exemplo. Um estagiário de psicologia queria conversar com o pai de uma paciente, para explicar a ele que sua filha estava com uma “doença real”, porque ele não validava, não reconhecia e compreendia o que ela sentia. Ela queria dar uma aula para ele sobre depressão. 

Confesso que não gostei da ideia. Achei equivocada e algo que supervaloriza o instrumental da psiquiatria em detrimento do que a psicologia pode e deve oferecer. Porque não faz o menor sentido chamar um pai, que não conhecemos, que ainda não foi ouvido, para lhe dar uma espécie de aula sobre o que é depressão e como ele deveria começar a tratar sua filha, que supostamente padece de tal condição. 

Isso não tem nada a ver com psicologia. Porque é sumariamente prescritivo e unicamente focado em uma classificação diagnóstica médica. É adotar muito rapidamente um jargão psiquiátrico, médico, em detrimento de tudo aquilo que um psicólogo de boa formação ralou muito para aprender durante toda a sua formação. É pegar a psicologia e jogar no lixo. É demonstrar que não se aprendeu o fundamental durante a formação em psicologia. É participar de um jogo que goza com algum fetiche sobre classificações psiquiátricas, que pode até cair bem no gosto popular, mas tem muito pouco a se oferecer como um instrumento ou técnica consistente da psicologia.

Não, não tem que chamar familiar, que ainda não se conhece, para explicar para ele o que é a depressão. Pode-se chamar o pai primeiramente para ouvi-lo e conhecê-lo, para observar a interação entre pai e filha, para tentar, juntamente com eles, construir caminhos que possam ajudar a melhorar seu relacionamento. Para investigar melhor o que está acontecendo nesta interação, sem se apressar em ter logo na manga o nome do suposto transtorno mental em questão.

Psicologia que fica na barra da saia da medicina é uma psicologia que não sabe de si, de suas especificidades, de seu poder e limites, e assim se perde na marola de alguns saberes ou classificações médicas. É uma psicologia que se exclui do debate, porque submerge ao saber médico, como se este lhe servisse de referência. E isso não tem relação com a realidade. É somente uma prática triste e desinformada, que desqualifica a si mesma pelo fetiche das classificações psiquiátricas. É desolador ver psicólogos(as) fazendo isso.

Wednesday, October 02, 2024

Não é psicose

Não é psicose. Não era psicose. Geralmente não é loucura. Aí fora no mundão, fora das unidades de saúde, fora dos CAPS da vida e dos hospitais psiquiátricos, geralmente há muito mais gente doida do que a gente imagina. E quando digo "doido", estou me referindo ao seu uso mesmo de senso comum, que é mais uma figura de linguagem ou um exagero em relação a qualquer atitude desmedida que alguém possa ter em determinado contexto. 

Sim, as pessoas de modo geral são mais doidas do que a gente imagina. Porque "de perto ninguém é normal", como já dizia Caetano Veloso. E obviamente sabemos que o problema não é esse. O problema é perceberem, de longe, que não somos normais. Porque de perto ninguém é normal mesmo. Todos temos nossas desmedidas, nossas pequenas loucuras e estranhezas, que são geralmente expressas na intimidade. Porém, quando percebem, de longe, que não somos normais, é exatamente aí que começa o estigma, o preconceito, a discriminação. 

Nesse ponto não há mais como se falar que de médico e louco todos temos um pouco. Porque esse "um pouco" não classifica ninguém exatamente como médico ou louco. Quem não é médico continua a não sê-lo. E o mesmo vale para quem não é louco. Os loucos continuam sendo loucos. E nós, que não somos assim classificados, não passaremos a sê-lo.

Então, retificando: de longe alguns não são normais, e esses enfrentam o horror do olhar de todos aqueles que são. 

Gabriel (nome fictício) entrou no consultório acompanhado de sua irmã. 

- Ele precisa encostar – disse ela.

- Eu nunca gostei de viver. Só não me matei ainda porque ainda não encontrei um meio eficaz – prosseguiu ele.

- Acho que ele tem de se aposentar... – completou ela.

Ela somente falava em atestado e aposentadoria. Seu objetivo principal parecia ser a aposentadoria de seu irmão e isso, infelizmente, logo no início de seu primeiro atendimento comigo, em um de seus primeiros atendimentos no CAPS, não era um bom indício. Confesso que senti um certo incômodo, que procurei dissipar com uma orientação básica e sucinta:

- Compreendo a angústia da família com o sofrimento pelo qual Gabriel está passando e todas as limitações impostas por sua condição de adoecimento. Porém devo informar que a prioridade agora é acolher e conhecer melhor Gabriel, para podermos ajudá-lo da melhor forma possível. Para tanto é provável que em seu próximo atendimento, com o médico, Gabriel seja afastado do trabalho por alguns dias para descansar e se cuidar, para que possamos, junto com ele, cuidar melhor de sua saúde.

Após essa orientação sua irmã se acalmou um pouco e permitiu que Gabriel falasse. 

No início de sua fala senti que talvez ele sua irmã estivessem ambos simulando alguma condição patológica com o objetivo de conseguirem algum benefício do governo. Por mais inacreditável que pareça, isso não é incomum. Não faltam em um CAPS paciente que, até juntamente com seus familiares, simulam ou exagerem sua condição e sofrimento com o objetivo de “encostar”, como dizem. 

Isso não quer dizer que muitas, talvez a maioria dessas pessoas, não esteja sofrendo. Muitas padecem com sintomas de ansiedade e depressão e sentem que os caminhos mais rápidos e simples para o alívio de sua dor seriam um remédio mágico e a aposentadoria, que perfazem uma espécie fórmula perfeita para o fim de todos os seus males.

Isso é facilmente atestado pela grande quantidade de falas comuns que se acumulam acerca da felicidade, com inúmeras pessoas a dizer que bastava ganhar na loteria ou que simplesmente seriam felizes se tivessem mais dinheiro. A literatura científica mostra que isso é um fato quando alguém sai da linha da miséria, quando sai de uma condição na qual não tem o mínimo necessário e se transfere a um patamar financeiro mais elevado, no qual pode usufruir do mínimo para recuperar sua saúde.

Se uma pessoa está doente e o dinheiro pode lhe prover tratamentos mais adequados, a tendência é que ela fique mais feliz com mais dinheiro. Contudo o fator financeiro não pode ser alçado à única condição para uma saúde melhor. Se assim o fosse, gente rica não ficaria doente e nem teria ansiedade ou depressão. 

Gente rica que só come porcaria, não tem hora para dormir ou acordar, passa o dia dentro do conforto do ar-condicionado de seu quarto, no escuro, assistindo porcaria na televisão, tenderá a ficar doente e tem muito mais chances de ter transtornos de ansiedade ou depressão. 

Então mais dinheiro pode ajudar sim. Mas essa ideia não cabe em qualquer contexto. Se, por exemplo, o sujeito vive em um país na qual a saúde é toda privatizada e não tem acesso gratuito a acompanhamento básico de saúde. Diante do primeiro problema é óbvio que dinheiro fará toda a diferença. Mas sabemos muito bem que a saúde, como um todo, depende via-de-regra de alimentação balanceada, atividade física regular, higiene do sono, suporte sócio-afetivo e regime luminoso adequado. Esse conjunto de fatores em boa medida determinará quem terá saúde e quem não terá. Se o sujeito é atleta, no auge de sua forma física, tendo sono preservado, luminosidade e alimentação adequadas, mas não tem suporte sócio-afetivo durante um tempo considerável, é provável que tenha sintomas de ansiedade e depressão. É provável que adoeça. 

E o que significa não ter suporte sócio-afetivo? Significa aquele sujeito não ter o mínimo necessário para ele. E alguém pode até objetar: “Cada um é um. O que é necessário para um pode não ser para outro”.

Mas as oscilações não são tão individuais. A grande maioria das pessoas morrerá após 4 dias sem água. Alguns perecerão antes, em dois dias. Outros talvez resistam durante  4 dias. Porém, após 4 dias são raríssimas as pessoas que sobrevivem. 

O mesmo vale para fatores como o suporte sócio-afetivo. A tendência de praticamente todas as pessoas é adoecer quando submetidas a assédio e isolamento social. Hostilização social adoece. Bullying adoece. Pessoas solitárias tendem a adoecer com mais frequência e morrem mais precocemente do que pessoas menos solitárias, que têm suporte sócio-afetivo. Solteiros adoecem com mais frequência e morrem mais cedo do que pessoas casadas.

Ninguém é feliz ou sadio se estiver isolado, sozinho numa cela ou num quarto escuro, por mais que se alimente de modo adequado e faça atividade física regular.

- Eu nunca fui feliz. Sempre quis morrer. Tenho medo de perder meu emprego. Não fui trabalhar hoje. Preciso de afastamento do trabalho...

- Ele precisa se afastar e precisamos de relatório para o INSS – completa a irmã.

- Você toma remédios psiquiátricos? – perguntei-lhe

- Já tomei, muitas vezes, durante muito tempo. Mas nunca foram eficazes para tirar essa tristeza do meu coração.

- Quando você começou a tomar medicamentos psiquiátricos?

- Quando eu tinha 17 anos fui sozinho no Hospital São Vicente [hospital psiquiátrico] procurar por atendimento, por ajuda. Eu vivia triste e queria algum tipo de ajuda. Lá tive uma consulta e a médica me receitou amitriptilina. Eu gostava desse remédio. Ele me deixava menos triste e me ajudava a dormir melhor. Mas depois de dois anos eu passei por uma tristeza tão grande que tentei me matar tomando uns 80 comprimidos de um monte de remédio psiquiátrico diferente. Correram comigo pro hospital, fizeram lavagem estomacal e meu cérebro ficou bastante bagunçado depois disso. Porque eram muitos remédios diferentes e numa quantidade grande. E é foi aí que ele começou a aparecer pra mim em sonhos e também durante o dia.

- Ele quem?

- Saicema. O nome dele é Saicema. É assim que ele se apresenta. Ele vem aparecendo para mim, tanto em sonho como quando eu estou acordado faz mais de 20 anos. Ele vive me atazanando e me aterrorizando. Tem dia que ele não deixa eu dormir e fica atrás de mim o tempo todo sussurrando coisas horríveis em meus ouvidos, dizendo para eu me matar. 

- Então ele é real. Ele existe mesmo...

- Não. Eu sei que ele não é real. Eu sei que tudo isso é uma invenção da minha cabeça, do meu cérebro. Mas ele me incomoda demais. É uma tortura. Eu tomo vodka todos os dias para diminuir essa fala e essa aparição constante dele.

Não é psicose. Foi o que ficou claro para mim logo após essa fala de Gabriel. As pessoas podem cometer atos extremos e serem vítimas de profusas e intensas alucinações e mesmo assim não serem psicóticas.

As psicoses são as loucuras clássicas. Seu sintoma central é o delírio, que é uma ideia equivocada e patológica. Nem toda pessoa extremamente ciumenta, que vê infidelidade onde ela não existe, está com delírios de ciúme. Nem toda pessoa que pensa equivocadamente que está sendo perseguida tem delírios de perseguição.

Para ser delírio é necessário que o equívoco tome por completo a vida da pessoa, se relacionando com tudo o que ela pensa e faz, tenha algumas características aberrantes e bizarras e seja completamente associal. Ter um ciúme doentio é diferente de ter um ciúme enlouquecido. Se o ciumento pensa que seu cônjuge está traindo-o com o cachorro da vizinha, que é na verdade um espião da CIA, eis o delírio.

E Gabriel também padecia de ausências. Quando ficava muito nervoso ou estressado, por vezes entrava em crise e ficava irreconhecível. Perdi por completo sua gentileza usual. Xingava, proferia palavrões, corria descontroladamente para as ruas e tentava se jogar para debaixo de algum carro que passava. Era muito querido por todos, porque era sempre polido e solícito. Suas crises, porém, pareciam transformá-lo em outra pessoa. 

- Acho que tenho duas personalidades...

“Tem nada, papo furado”, eu pensava, sem muito hesitação. Porque é pouco provável que isso exista assim, nesses termos cinematográficos. Parece-me mais com uma desculpa perfeita para quaisquer arroubos e um passe-livre para uma série de abusos.

“Sou doente!”, poderiam assim alegar os abusadores, que certamente não são loucos.

Gabriel, por sua vez, comportava-se como se tivesse enlouquecido e jamais perdia o afeto de todos que o amavam. “Médico e monstro”. Homem médio e monstro. O contraste absoluto entre uma pretensa personalidade e outra e a quase rara sazonalidade de suas crises eram o passaporte para seu perdão eterno.


Saturday, August 17, 2024

Porção de amor, cercada de sofrimento por todos os lados

Um serviço comunitário de saúde mental, como o CAPS, abriga uma diversidade muito grande de pessoas e as mais variadas formas de sofrimento. E um de seus pilares é a humanização. Em um CAPS não é importante somente que os usuários (os pacientes) sejam tratados com respeito. Deve haver também muita gentileza e carinho na interação porque, como eu sempre digo, sempre que posso: "CAPS é amor".

Alguns usuários frequentam o serviço diariamente. E a maioria desses, que assim se comportam, estão entre os casos mais extremos ou severos. Farofa, 55 anos de idade, é um deles. 

- Todo mundo chama você de Farofa. Mas eu gostaria de saber como você gostaria de ser chamado, porque seu nome é José.

- Pra mim tanto faz. Eu gosto de ser chamado de Farofa.

Então passou a ser Farofa para todo mundo. Todo mundo o chama por esse apelido, e ele sempre foi um dos mascotes do CAPS. 55 anos de idade, mas com uma série de comportamentos pueris que despertam afeição e uma interação como se fosse a de uma família, como a interação que uma família tem com seus filhos, com suas crianças. Farofa muitas vezes apronta as suas, faz arte e é chamado à atenção, mas também, nessa convivência, são produzidos momentos memoráveis e encantadores.

Sempre chega ao CAPS, cumprimenta todo mundo, abre as portas dos consultórios para comunicar alguma coisa, dar um bom dia ou mostrar que ele está ali, que gostaria de interagir, ter atenção ou alguma forma de carinho por parte dos membros da equipe.

Ele costuma ter um comportamento muitas vezes invasivo que, além de invadir consultórios enquanto estamos atendendo outros pacientes, pede por abraços e um contato físico mais próximo, corpo a corpo, e isso acaba sendo um pouco incômodo para boa parte das pessoas, que não se sentem confortáveis ou estão no momento com disposição para aquele nível de intimidade ou proximidade corporal.

Certa vez se aproximou por trás de Jorge, um de nossos colegas de equipe, enfermeiro, sem que ele percebesse, e soltou um peteleco em sua orelha. Jorge se assustou, ficou desnorteado e inevitavelmente irritado. Sua primeira reação foi o sobressalto e gritar um bom de um palavrão:

- Phutta que phariu! Charalio, Farofa! Que phoha foi essa?

Talvez tenha até segurado Farofa pelo braço ou pelo pescoço, deixando claro que ele não poderia mais fazer aquilo.

- Não brinque assim! Você nunca mais faça isso comigo! Você ouviu?

Depois pediu desculpas a Farofa. Justificou para a equipe que tinha se exaltado, mas que seu espaço vital tinha sido invadido, e que ele tinha sofrido uma agressão, apesar de Farofa ter interpretado que aquilo era somente uma brincadeira inocente.

Noutro dia, dentro do banheiro, Farofa fez algo parecido, invadindo também a intimidade ou algum espaço vital de Ítalo, o vigilante, que naquele momento estava inclusive às pressas para chegar logo ao vaso sanitário, pois precisava urgentemente fazer suas necessidades.

- Farofa! Assim não! Pelo amor de Deus!

Nesse contexto acabou contendo um pouco o comportamento exacerbado e inquieto de Farofa, ao ponto talvez de tê-lo empurrado, com a mão em seu ombro ou em seu peito.

Alguns minutos depois eu saía da copa e Farofa, sentado confortavelmente em uma poltrona, daquelas reclináveis, de hospital, me chamou. Não se levantou, não foi até mim. Queria que eu fosse até ele.

- Adriano! Vem aqui, por favor!

- Por que você não vem aqui, Farofa?

- Não, vem aqui você, por favor. Eu tô descansando e você já tá em pé. Pra você é mais fácil. Vem aqui, por favor...

Eu já estava indo embora, mas voltei. Caminhei uns 15 ou 20 metros e cheguei até ele.

- Você está um pouco folgadinho, não acha? Quer tudo na mão. Quer que eu vá até você. Não vem até a gente. Fica sentadinho, esperando, no conforto... O que você quer?

- O Ítalo deu um soco no meu peito e machucou meu coração. Eu tô com o coração doendo aqui, viu...

- Quando foi isso? Aonde? 

- Foi agorinha. Foi ali no banheiro. Ele ainda tá lá. Ele tá lá. Tá lá cagando.

Como o banheiro era bem de frente, caminhei até lá e já encontrei Ítalo lavando as mãos.

- Rapaz, o que que aconteceu? Farofa falou que você deu um soco nele.

- Não, eu não dei soco nenhum. Eu somente tentei afastar ele, que ele ficou aqui se esfregando em mim, passando a rola em mim. Assim não dá.

- Farofa, vem cá! Já entendi sua situação e percebo que você tem uma grave acusação contra o Ítalo. Vamos agora na chefe!

A supervisora do CAPS estava uns 15 ou 20 metros à nossa frente, caminhando em direção à sua sala. Andamos mais rápido e chegamos até ela.

- Daniela, o Farofa tem uma acusação grave para fazer contra o Ítalo.

- O que foi que aconteceu?

- Ele falou que o Ítalo tava cagando.

Ela entendeu a piada e começou a rir. Farofa também ria, mas não sabia se ria ou se continuava fazendo a acusação de que havia sido agredido.

- Não foi isso não. Ele tava cagando sim. Mas antes dele ir lá fazer cocô, ele me deu um soco no peito e machucou meu coração.

- E você ficou de coração partido Farofa? É isso? - completou ela, sorrindo para ele, carinhosamente...

- Tentou agarrar o Ítalo, não foi correspondido, e ficou de coração partido. Não é, Farofinha? - emendei.

Seu olhar agora era mais tranquilo e terno. Mas a dor, no coração, persistia. 

Minutos depois, quando eu já me arrumava para bater meu ponto e ir embora, de vez, estava lá ele, novamente, agora em cima de mim, invadindo também meu espaço vital, me segurando pelos braços e xeretando nos bolsos de minha mochila.

- Vem cá, Farofa. Vem cá. Toma aqui meu crachá. Ele agora é teu. Vai lá. Vai lá bater o ponto de saída pra mim! 

Botou o crachá no pescoço e foi até o relógio de ponto. Apareceu o sinal para a digital, mas não funcionava. Seu dedo enorme não era o meu. Tentou novamente. Apareceu o sinal para a digital e eu assim coloquei a minha digital e, com sua ajuda, bati o meu ponto de saída.

Alguém o fotografou, batendo o ponto de saída para mim, e compartilhou no grupo virtual de mensagens instantâneas. E assim vão se eternizando algumas imagens e memórias de uma instituição projetada, plantada para floresecer das mais variadas dores e sofrimentos humanos, com amor para todos os lados.

Friday, July 19, 2024

Amor forjado na dor

Para onde foram nossos recantos mais íntimos quando a eternidade se engasgava com nosso amor?

Percorri as vias e as vilas de nossa paz e sofrimento e lá pude contemplar o abismo que a todos espreita e espera.

Eis nosso projeto de dor e resistência, a batalha de insistir em continuar a viver. É carregar a bandeira esfarrapada da vida para fazer brilhar os olhos de quem ainda engatinha por entre seus rincões mais belos e traiçoeiros.

Me servi da ternura de seu olhar e de suas mãos cansadas, para rastejar pelos campos dos dias que nos restam, das chuvas que se prometem no final do deserto e da dor.

Chefe despótico

Uma vez tive um chefe despótico, ignorante, ríspido, insensível e burro. Ninguém mais aguentava seus desmandos e abusos. Em reunião, na presença de uns 50 subordinados, ele foi enfático:

- Não sou apegado ao cargo. Quem quiser que se candidate e concorra!

Eu estava tão cansado daquela pessoa, que fui um pouco suicida. Levantei a mão. Ele olhou pra mim e me concedeu a palavra:

- Eu quero!

- Quer o quê? - perguntou ele.

- Você não acabou de dizer que não é apegado ao cargo e que quem quisesse devia se candidatar e concorrer? Pois é: eu quero. Quero ser chefe.

- Então você que se vire e vá atrás. Não estou aqui para ensinar o caminho das pedras pra ninguém – respondeu, constrangido, sem graça, talvez porque não estivesse esperando que algum biruta levantasse a mão para dizer aquilo.

Minutos depois começou a falar mal de mim, de que eu tinha sido agressivo, com o microfoninho na mão. E achou que eu ia ficar quieto, tomando o sermãozinho que ele passava em muitas pessoas, humilhando-as em público.

Levantei a mão e ele ignorava. Auditório cheio. Levantei-me e fui até o palquinho no qual ele vinha dando seus showzinhos havia anos.

- Não vou te dar a palavra! – e não deixava eu pegar o microfone.
Quase virou briga pelo microfone. Eu tentava pegar e ele esticava o braço. Por fim, ele acabou me passando o microfone. E eu falei o que tinha de falar, defendendo-me.

Voltei para meu lugar. E ele continuou com seu discurso raso, contraditório e sem qualquer relação com a realidade. Por sorte não tocou mais em meu nome. Agora tentava mostrar que existia diferenças cruciais entre o discurso de um líder e de um chefe, pois o primeiro seria democrático e conciliador. 

Todos se olhavam, constrangidos, porque aquilo era tudo o que aquela pessoa mal formada não era. Todos sabiam que aquele imbecil, segundo seus próprios critérios, era o que ele mesmo chamava de chefe, de liderança autocrática. Mas ninguém mais teve paciência ou coragem para qualquer tipo de confronto, nem eu. Estávamos todos exaustos.

Coincidência ou não, depois de anos de mão de ferro, 20 dias depois dessa reunião esse chefe adoeceu ou pediu um arrego, um atestado. Ficou uns dois meses afastado, e depois ainda continuou na chefia por cerca de mais um ano. Mas aquelas reuniões torturantes, toda maldita semana, nunca mais ocorreram. Compensou ter quase trocado tapas com ele na disputa por aquele microfone!

Tuesday, June 04, 2024

Finitude e narcose

 Às vezes, quando me bate a angústia da finitude, apelo para a lembrança de que antes de nascer ou de ser concebido, eu simplesmente não existia. Ou seja, o “lugar” “para onde vamos quando morremos” é o mesmo de antes de nascer. Já fomos “mortos” antes de nascermos e voltaremos a sê-lo em breve. A regra é não existir. Existir é exceção.

Porém, mesmo assim, ainda bate às vezes aquela angústia e o apego a continuar aqui, como se sempre estivéssemos aqui e que assim deveria suceder o que, na verdade, mais traduz uma ilusão do que a realidade de existir.

Mas sei bem qual é meu antídoto para essa angústia, por vezes, na verdade, até muito tola: a narcose. Quando sinto muito sono ou torpor, quero mais é dormir e desaparecer na imensidão. Desejo imenso de desvanecer, de deixar de existir, de partir para o nada.

Sei bem quando faço as pazes com a finitude. E se um dia chegar a hora, e eu puder me despedir, será uma partida prazerosa, triunfante, que brinda a própria existência e o universo.

Sunday, May 26, 2024

Ninguém merece sofrer

Muito tem se falado sobre merecimento. Eu também, por vezes, digo que alguém merece isso ou aquilo. Dou os parabéns, e digo “você merece”, para o campeão que percebo como tendo se esforçado e treinado muito ou para aquele que consegue fazer o que outros não foram capazes, por exemplo.

Mas aí, para esta segunda condição, muitas vezes me pergunto: se o sujeito já teve a sorte de nascer mais capaz ou mais inteligente, por que teria de ter também mais dinheiro? 

Mas não costumo dizer que alguém merece sofrer. Porque não concebo o sofrimento como útil, mas somente como evitável ou inevitável. Assim como concebo o sofrimento como sendo o próprio mal. Então penso que ninguém merece sofrer, e que todos merecemos mudar para melhor, para sermos pessoas melhores, para nós mesmos e para os outros, ajudando assim a diminuir o sofrimento no mundo.

Sinto que ninguém merece ser tratado como rei, rainha ou deus. Ninguém merece ser deusificado. Porque ninguém é perfeito. Merecemos ser amados e lembrados. Mas não merecemos mais do que diz respeito ao que é humano. 

E também não vejo sentido em alguém merecer luxos que custam o sangue e a vida de gente pobre e miserável. E, no mundo em que vivemos, ainda é geralmente, ou mesmo inevitavelmente, esse o custo de uma vida luxuosa.

Saturday, May 18, 2024

Andarilhos

Percebo muitas vezes os andarilhos como um mistério, que fascina pelas proezas de sobrevivência e de um nomadismo solitário, corajoso e forte. Tenho interagido com alguns pacientes que saíram andando pelo mundo. Um deles caminhou quase 100 km em um único dia, durante praticamente 20 horas seguidas. Saiu de casa às 6 horas da manhã e só parou à 1 da madrugada.

Narrava feliz sua proeza, aos 53 anos de idade, que se iniciou sem avisar nem se despedir de ninguém. Simplesmente saiu e sabendo onde queria chegar. Partiu de Abadiânia, rumo à Brasília. Tinha dinheiro para comer alguns pães de queijo. Mas nem precisou gastar esse dinheiro. Quem o viu pelas estradas se compadeceu e lhe deu de comer. 

Outro, a partir dos 68 anos começou a fazer a mesma coisa, ficando da última vez, já com quase 70 anos de idade, desaparecido durante mais de 2 meses. Há a suspeita de que esteja padecendo de um processo degenerativo. Não reconhece nem mesmo seus próprios filhos. Pouco fala. E só quer saber de sair andando, aparentemente rumo a uma cidade do Nordeste, onde nasceu. Em suas andanças não pede nada para ninguém. Somente se senta em algum canto onde possam vê-lo e ajudá-lo. E assim, pelo caminho, acaba sendo alimentado e recebendo ajuda. É esse o depoimento das últimas pessoas com quem interagiu pelas ruas e estradas do Brasil.

Quem observa, logo pensa que essas pessoas têm uma estrutura corporal forte. Mas também me pergunto sobre o passado evolutivo de nossa espécie, nômade, que caminhava em média 20 km por dia, e no quanto esse comportamento errante, em eterno movimento de caminhar, talvez tenha alguma relação com algum tipo de fortalecimento corporal.

Wednesday, May 08, 2024

Nove dias para o sarau

João (nome fictício) aceitou por fim cantar no sarau do CAPS sem cachê. Mas tem outras exigências.

- Adriano, precisa ter mídia. Convoque a imprensa. Tem que ter Globo, tem que ter divulgação. Meu objetivo é a carreira internacional.

- Ok. Farei o que puder. Mas vamos ensaiar um pouco?

E assim ele entoa sua primeira canção, Suspicious Minds, de Elvis Presley:

“We're caught in a trap
I can't walk out
Because I love you too much, baby..."

- Mas não, para, para... Assim não dá. Fomos pegos numa armadilha (We're caught in a trap)? Não, isso não soa bem. É ruim. Não gosto disso. Vou trocar para I still love you baby...

- Tudo bem, João... 

Aí passamos para Tears in Heaven, de Eric Clapton.

“(...) I must be strong
And carry on
Cause I know I don't belong
Here in heaven..."

- Não, assim não dá!

- O que foi, João?

- Esse Eric Clapton é um bosta mesmo. Como é que ele me fala uma coisa dessas, de não pertencer ao paraíso? Quer ir pro inferno? Que sujeito sem noção... Vou trocar por “Cause I know I will belong here in heaven...”

E assim prossegue João, alterando todas as letras. Faltam 9 dias para o sarau. Até lá boa parte das canções serão modificadas.

Monday, May 06, 2024

Insônia

Pelo pesadelo da ferida aberta de uma noite mal dormida, sou jogado ao relento sonolento do eterno e massacrante dia seguinte dessa vida.

Os juristas e o conceito de livre-arbítrio

Existe livre-arbítrio? Do modo como talvez a maioria das pessoas compreende essa questão, realmente não existe isso. É um conceito que é geralmente adotado no senso comum com tons de autoajuda, ou de um elogio cego de uma liberdade absoluta, que simplesmente não se sustenta na realidade. Porque trata a vida humana como totalmente capaz de liberdade, como se cada ser humano fosse uma constante escolha de si mesmo. 

Pensar dessa maneira é acreditar que temos a capacidade de produzir escolhas totalmente acima das circunstâncias. E as circunstâncias não são simplesmente o que nos determinam. Nós somos o somatório ou a interação orgânica, multiplicativa e complexa, de nossas circunstâncias. Nossas circunstâncias definem o que somos. Nós somos isso. A crença de que se pode pairar acima das circunstâncias é no mínimo algo da ordem de uma ingenuidade narcisista. É ilusão, é narcose.

E eu também percebo uma preocupação muito grande, na área do Direito, em relação à necessidade de que exista o conceito de liberdade ou de livre-arbítrio, calcado inclusive na capacidade de se escolher constantemente o que somos. Juristas, de modo geral, são sequestrados pela necessidade da existência do livre-arbítrio, porque se não houver esse tipo de conceito como é que poderíamos atribuir responsabilidade ou mérito a quem quer que seja? 

Contudo não tem nada a ver uma coisa com a outra. Podemos muito bem abrir mão desse tipo de conceito metafísico e continuar compreendendo muito bem as devidas responsabilidades relacionadas ao que as pessoas fazem. Compreender que todos somos determinados pelas circunstâncias ou que cada um tem seus motivos ajuda a entender, mas não transforma delitos e crimes em algo razoável ou justo Porque entender explica, mas não justifica. Quando explicamos estamos encontrando as causas, os motivos, mas não estamos tornando algo justo ou razoável.

A ordem da justiça e das justificações é completamente diferente da ordem das explicações. Não se misturam. Alguém que tenha sido abusado e depois passa também a cometer abusos não transforma assim seus crimes em algo justificável. Crimes não se justificam. Podem até ter alguns atenuantes, mas continuam sendo crimes, independentemente dos motivos de cada um.

Como hoje mesmo pude ler, e recomendo, em um texto de Carlos Orsi, sobre um dos principais livros de Daniel Dennett, ele cita uma frase muito emblemática a respeito dessa discussão, atribuída a John Austin: 

“Entendimento pode apenas acrescentar desprezo ao ódio”.

Friday, May 03, 2024

Rotina, no CAPS

Chego logo cedo e encontro com João, paciente que frequenta o CAPS há uns 7 anos. Ele canta bem. É afinado. Está vindo ao CAPS praticamente todos os dias nos últimos 10 ou 12 meses. É corredor de longa distância. Gosta de correr. Geralmente vem correndo de sua casa, que se situa a uns 5 km do CAPS ou mais. Não tem mochila. Vem correndo com um saco plástico numa mão, com seus pertences, e uma bíblia na outra.

- João, teremos sarau em 16/05. Você não quer cantar, não?

- De graça não dá, Adriano. Força as cordas vocais. Você sabe como é…

Horas depois cruzo com Dona Júlia, uma paciente muito divertida, com mais de 65 anos de idade, também assídua ao CAPS há uns 10 anos. Ela caminha com dificuldade e quase nunca perde seu bom humor e ironia refinada.

Sei os nomes e as datas de nascimentos de dezenas de pacientes. De modo geral qualquer pessoa, seja colega ou paciente, fica impressionada com isso. E saber o nome e a data pode agilizar bastante uma série de processos, porque não preciso ir até o paciente e lhe perguntar. Basta, a qualquer momento, lançar esses dois dados no sistema que instantaneamente tenho as informações de que preciso. 

- Júlia, agora consegui gravar sua data de nascimento: é 27/05/1958!

- Até que enfim, seu burro! Haja paciência! Não memoriza nunca! - com ironia precisa, certeira e dirigida a alguém que compreende o gracejo.

E assim juntos soltamos uma deliciosa gargalhada, geralmente acompanhada pelos demais presentes.

Wednesday, April 03, 2024

Do amor forjado na dor

Para onde foram nossos recantos mais íntimos quando a eternidade se engasgava com nosso amor?

Percorri as vias e as vilas de nossa paz e sofrimento e lá pude contemplar o abismo que a todos espreita e espera.

Eis nosso projeto de dor e resistência, a batalha de insistir em continuar a viver. É carregar a bandeira esfarrapada da vida para fazer brilhar os olhos de quem ainda engatinha por entre seus rincões mais belos e traiçoeiros.

Me servi da ternura de seu olhar e de suas mãos cansadas, para rastejar pelos campos dos dias que nos restam, das chuvas que se prometem no final do deserto e da dor.