Por lei a prioridade de um CAPS é acompanhar casos severos, persistentes e instáveis. E como a demanda está totalmente extrapolada já há alguns anos, o que era prioridade se transformou em tudo o que nosso CAPS é capaz de atender. Ou seja: só atendemos casos severos, persistentes e instáveis. Os demais são encaminhados para outros serviços da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial).
Claudio era casado com outra paciente, de CAPS-AD. Bebiam pesado todos os sábados e domingos e faziam uso de cocaína duas vezes por semana. Entrou no consultório e, ofegante, tremia de modo intenso.
- Eu tenho transtorno de ansiedade generalizada!
Durante esse atendimento, de referência, para que fosse elaborado seu plano terapêutico singular, se recusou a responder uma série perguntas. Manifestou repetidas vezes que precisava “encostar”. Tinha a crença de que se aposentar era algo simples e rápido e, pela avaliação criteriosa que realizamos, não era caso elegível para CAPS. Não preenchia os critérios para que seu caso fosse considerado severo, persistente e instável, e exibia com clareza alguns comportamentos estereotipados e teatrais.
Eu sabia que não era caso para ser acompanhado em CAPS. Mas não tive coragem de proceder seu encaminhamento. Para mim era nítido que ele estava longe de tolerar qualquer tipo de frustração em relação ao serviço que deveria acompanhá-lo. Tinha convicção de que somente o CAPS seria capaz de ajudá-lo a “encostar”.
Avaliando seu histórico no sistema de prontuários eletrônicos percebi que ele, em passagens por outros serviços, tinha tido muitos conflitos com servidores, que eram também, na verdade, uma extensão de sua vida conflituosa com uma variedade de pessoas, dentro e fora de sua família.
- Ele não é um pessoa fácil. Nunca foi. É briguento. Mas quando cheira fica bem mais calmo... – dizia sua esposa.
- Vocês têm de entender que eu estou aqui para pedir ajuda! Eu preciso de ajuda! – repetia Claudio.
Validei, fiz reflexão de sentimentos, acolhi, parafraseei com foco em seus sentimentos, tentei ajudá-lo a respirar mais profunda e lentamente, com duas técnicas diferentes, me desdobrei e fiz o que pude para que Claudio se sentisse acolhido, aceito, compreendido, e nada. Claudio continuava a repetir:
- Vocês têm de entender que eu estou aqui para pedir ajuda! Eu preciso de ajuda!
Fiquei exausto, sentindo-me muito pressionado e com o horário totalmente esgotado para muito além do máximo possível. Era o típico atendimento bomba, que devasta tudo o que tem pela frente, criando problemas inclusive para que consigamos sair do trabalho na hora correta, para que nossa vida como um todo não se desorganize, para que eu pudesse inclusive almoçar com um mínimo de tranquilidade e que o restante de meu dia não fosse destruído. Como era assim que eu me sentia, resolvi mostrar pelo menos um pedacinho disso para ele.
- Ok, estou anotando tudo. Faremos exatamente o que você esta pedindo! Você pode ficar tranquilo, porque também tenho senso de autopreservação e tudo o que você pedir vou te obedecer e fazer. Tá bom?
E assim, de repente, de modo inusitado, sua respiração se tornou mais lenta, profunda e serena. Claudio instantaneamente parou de ofegar. Respirava tranquilamente e com facilidade. Os tremores instantaneamente desapareceram.
- Como assim? Você tá dizendo que vai me obedecer? Não tô entendendo...
- Sim, Claudio. O que você disser é uma ordem! Vou obedecê-lo porque não quero que meu dia seja destruído. Estou te ouvindo há quase duas horas. Faz quase uma hora que eu deveria ter ido almoçar e não fui ainda. Estou atrasado para ir embora e entrar em meu outro trabalho, em outro setor. Acho melhor eu combinar que vou obedecer no que você quiser. Porque é isso que você quer, não é? O que você mandar, eu cumpro. Estou aqui para te obedecer...
Disse-lhe isso com tom de voz baixo, de modo sereno e realmente transparecendo comportamento obediente, como seu eu estivesse diante de um assaltante ou sequestrador armado.
- Não, mas não é assim. Me perdoe. Me desculpa se eu fiz você se sentir assim. Não era minha intenção. Perdão...
- Tudo bem, Claudio. Acontece. Não precisa se desculpar. Você está mais calmo agora?
- Sim... Me perdoe...
E assim Claudio se acalmou. Olhava para mim de modo mais terno e compreensivo. Foi-se embora sorrindo. Agradecia repetidamente pelo atendimento.
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