A mãe do paciente chegou ao CAPS esgotada e bastante aflita, relatando diversas dificuldades com o filho em casa. Ele já era nosso paciente, mas havia ficado um tempo afastado, e nisso acabou se perdendo um pouco, se distanciando de algumas práticas que o mantinham estável. Estava em casa, em crise, sem tomar sua medicação de rotina, agitado, quase sem dormir, falando alto o tempo todo, dia e noite, e se recusando a ir ao CAPS ou a qualquer outro lugar que fosse sugerido pela família.
- Minha rotina agora é somente essa aqui: da casa pra igreja e da igreja pra casa. Os médicos que ficaram comigo a vida inteira morreram e de nada adiantou. Não tenho mais toxina em meu corpo. Meu médico agora é Jesus! Sou representante da Herbalife. Minha cura vem de Deus e da natureza!
Debruçado sobre a janela, nos avistou de longe, conforme fomos nos aproximando de sua casa, com o carro da secretaria de saúde.
- Puta que pariu! O que esse povo veio fazer aqui? Não quero mais saber de CAPS!
Continuou esbravejando, e ralhava bastante com sua mãe, que seria a grande culpada por estarmos ali. Falava alto, com raiva, quase gritando, praticamente sozinho, e gesticulando muito, com quase resposta alguma das pessoas em volta.
- Agora eu tô só na fé e no sangue de Cristo. É somente disso que um ser humano precisa! Minha pastora tá de prova que eu sou a prova viva da cura divina. Os homens falham. Deus não!
Parecia que essa pastora tinha bastante influência sobre ele. Ela tinha um quiosque, a poucas quadras dali, no qual servia algumas refeições, bebidas e petiscos em geral. Fomos até lá.
Recebeu-nos com panelas no fogo, rádio em volume alto, tocando sermões de pastores e uma bíblia velha, desbotada, aberta no balcão, em meio a copos, pratos e outras tralhas que compõem um bar.
A pastora gritava, todos gritavam. Ninguém se agredia fisicamente. Mas imperava a poluição sonora de sermões no rádio misturados com pessoas tentando conversar, praticamente todas gritando, porque era somente assim que se faziam ouvir. O paciente gritava mais alto. As pessoas na rua paravam para observar, tentando entender o que estava acontecendo.
Um casal - o homem com a aparência de alguém quase sexagenário e a mulher desdentada, com um corpo magro, bem magro - queria comer. Pediram pastel. A pastora serviu. A mulher puxou-lhe o pastel da mão e parecia querer engoli-lo inteiro. Voracidade bêbada. Casal pra lá de Bagdá, etilicamente tentando participar da contenda, concordando com a mãe da paciente, de que ele deveria trabalhar e se bancar.
- Isso! Tem que trabalhar e se sustentar! – dizia a mulher, claramente bêbada, e possivelmente alguém que estava em condição social muito próxima a do paciente.
Pessoas perdidas, e condenando umas às outras. Engole o pastel, toma o café e come o pão de queijo, quase tudo de uma vez só, com unhas compridas, quebradas e preenchidas de sujeira. O paciente me abraçou e me beijou no pescoço, tentando demonstrar alguma gratidão de dentro do olho do caos. Depois me abraçou novamente, me beijou no queixo, quase na boca, e anunciou:
- Eu gosto muito de você, Adriano. Mas pro CAPS eu não volto não!
A pastora acusa a mãe do paciente de negligência.
- Mas você nunca foi lá na nossa casa ver a situação dele. E olha que é pertinho. Dá pra ir de pé... – retruca a mãe.
E ninguém ali foi capaz de convencer o paciente a ir conosco até o CAPS, para podermos ouvi-lo com mais calma, e entender melhor sua situação. Porque agora, segundo ele, é só com Deus e com a Herbalife.
Daqui a alguns dias tentaremos novamente...