Tive a infelicidade de conviver, na UTI, com um colega, médico, o qual não tinha muito compromisso com uma relação humanizada, tanto com pacientes quanto com seus colegas de trabalho, e isso era reconhecido pela grande maioria da equipe.
Seus colegas médicos se queixavam de seu histórico de quebra de compromissos com a própria equipe médica, na rotina de trabalho. Era visto como aquele colega que cometia diversos erros, geralmente relacionadas a negligência, os quais sempre tinham de ser acobertados pelo restante da equipe.
Não sei exatamente porque aceitavam a convivência com um colega tão difícil e comprometedor, mas o fato é que essa convivência se arrastava, apesar de tudo, estabilizada, por alguns anos. Todos sabiam que aquele colega era um pouco uma pedra no sapato, mas parece que não viam ali uma alternativa melhor.
Ele era também um daqueles colegas que frequentemente acaba descumprindo com as normas do local. Sempre que isso ocorria de modo mais exacerbado era advertido, e voltava a se comportar dentro das normas por um breve período, o qual não durava muito, porque aquele sujeito era um problema crônico, inclusive para seus próprios colegas médicos.
No início de minha interação com ele somente percebi que se tratava de alguém que tinha um imenso prazer em estabelecer uma relação de dominação com seus colegas de outras especialidades. Mesmo não sendo o chefe da UTI, em seu plantão se comportava como tal, como se fosse o chefe do plantão.
Desse modo acabava incorrendo em diversos atritos, principalmente com a equipe de enfermagem. Nesses conflitos geralmente se comportava de modo bastante ríspido e pouco empático. Porém, no final das contas, acabava agindo como se nada tivesse acontecido, e as pessoas parece que sempre o perdoavam. Agia muitas vezes de forma bastante rude, e até covarde, para dias depois estar ali, com as mesmas pessoas que havia hostilizado, contando piadas de mau-gosto e rindo, inclusive de pacientes.
Essas pessoas, contudo, apesar de aparentemente terem perdoado seus atos grosseiros e impensados, não se esqueciam do que ele fazia de errado. Em privado não deixavam de comentar e trocar histórias de quando haviam sido hostilizadas por esse médico. Havia uma espécie de um ranking das piores pessoas que trabalhavam ali, e ele sempre estava no topo.
Eu também fazia parte da equipe porém, pelo fato de ter feito doutorado, creio que isso exercia um papel de fazer com que ele me respeitasse um pouco mais do que a maioria ali naquele espaço. A minha impressão é de que ele era mais implacável com quem tinha menos formação ou autoridade. Suas presas prediletas eram os técnicos de enfermagem.
A maioria das pessoas relatavam que ele era o mais desumano e ríspido dos profissionais que existiam naquela UTI. Eu não conseguia entender isso muito bem, pois ele ainda não havia sido ríspido comigo.
Hoje penso que ele era certamente o mais desumano com os próprios colegas de trabalho, porém não era, na minha percepção, o mais desumano com os pacientes, porque havia um outro médico, ainda mais desumano do que ele com os pacientes, do qual, se for o caso, ainda falarei em outra oportunidade.
Então a convivência profissional com esse colega era bastante difícil. Somente para vocês terem uma ideia, no sábado pela manhã, quando havia treino de Fórmula 1, transmitido pela Rede Globo (e não estou falando da corrida; estou falando somente do treino) ele simplesmente não podia ser interrompido.
Se a pessoa quisesse dar uma de louca bastava bater na porta de seu repouso enquanto ele estava assistindo a esse treino de Fórmula 1. Quem assim o fizesse, mesmo que houvesse alguma intercorrência grave, de algum paciente que estivesse em parada cardíaca, ou coisa semelhante, seria maltratado por ele. Ele ficava transtornado, irritadíssimo se alguém o chamasse enquanto estivesse assistindo ao treino de Fórmula 1.
E não havia como não chamá-lo, porque depois, se algo muito grave ocorresse em função de não chamá-lo, essa pessoa que não o chamou seria responsabilizada por isso. Então as pessoas se revezavam nessa função inglória. Sempre que ele estava no repouso evitavam ao máximo bater em sua porta. Então ele era chamado somente em situações muito graves.
O problema é que a obrigação dele não era somente a de socorrer um paciente que estava com uma parada cardiorrespiratória. Ele também tinha a obrigação de passar pelos leitos durante os horários de visita.
Havia dois horários de visita: um das 16 às 17 horas e outro das 20 às 21 horas. E ele fazia questão de não sair de seu repouso durante a maioria das vezes nos horários de visita.
Se ele não saísse de seu repouso e nada acontecesse, estaria tudo bem, porque ninguém iria chamá-lo mesmo. O problema é que a maioria dos familiares sabia que era obrigação do médico comparecer aos leitos durante os horários de visita, para dirimir dúvidas dos familiares, e até mesmo dos próprios pacientes em relação ao tratamento, à sua estadia ali.
Havia geralmente então uma pressão muito grande por parte dos familiares para conversarem com o médico. Outro problema também é que quando ele comparecia, sempre comparecia nos últimos 15 minutos da visita. Então nosso trabalho era também pedir para que os visitantes e familiares tivessem um pouco de paciência e esperassem, porque ele geralmente iria aparecer nesses últimos 15 minutos.
Havia porém dias e períodos em que ele não demonstrava o menor interesse ou motivação para comparecer às visitas. Desse modo as pessoas ficavam esperando, e ele simplesmente não aparecia.
Houve um dia contudo em que não resisti, e mostrei para um familiar de um paciente onde era o repouso, pedindo para que essa pessoa não revelasse ao médico que havia sido eu o servidor que havia lhe indicado o local em que se situava tal aposento.
Quase uma semana depois, quando cheguei para meu plantão, esse médico veio até mim enfurecido:
- Eu sei que foi você quem disse para um visitante que eu estava no repouso! Cuide de seu trabalho que eu cuido do meu! Você está me entendendo bem? Cuide do seu trabalho que eu cuido do meu!
Ele falava e bufava de raiva. E eu, como fui pego de surpresa, também fiquei bastante transtornado, pois foi uma interação muito estressante, porque aquilo parecia que poderia se transformar muito facilmente em uma luta corporal.
E nesse dia eu pude compreender mais plenamente sobre o que as pessoas falavam acerca de sua rispidez.
Ele simplesmente esbravejou e nem permitiu que eu replicasse ou me justificasse. Entrou no repouso e bateu a porta na minha cara.
Pensei comigo: vou esperar a poeira baixar e, no final do plantão, quando tudo estiver mais calmo, quando ele estiver mais calmo, tento conversar para acertarmos os ponteiros.
Já no final do plantão, eu estava andando, no início do corredor, e percebi que ele estava vindo pelo mesmo corredor, em direção a mim. Continuei andando em sua direção, e procurando olhar para ele, para seus olhos, para que conseguíssemos retomar a conversa de modo civilizado. Assim que olhou para mim, eu acenei no sentido de que queria conversar com ele:
- Fulano...
- Não quero saber! Não quero nem olhar pra tua cara!
- Eu só queria lhe pedir desculpas, rapaz...
- Não quero saber! - e bateu novamente a porta do repouso na minha cara.
Sim, inspirado em um velho ensinamento de Emily Bronte, antes de começar a conversa eu lhe pediria desculpas pelo transtorno:
- Fulano, antes de mais nada eu gostaria de lhe pedir desculpas pelo transtorno, porque não era essa a minha intenção...
Porque eu acho que as coisas podem se encaminhar primeiramente mais ou menos assim. Acho que é possível fazer com que a outra pessoa se acalme e se desarme a partir de pedidos de desculpas em relação ao que ela veio sentir, e que aquilo que ela veio a sentir não era de fato a nossa intenção. Sim, é plenamente possível e sensato pedirmos desculpas mesmo quando temos convicção de que estamos certos. E isso não é assumir que estamos errados. Não é mesmo, e explicarei melhor para que entendam.
Essa técnica é comumente chamada de reflexão de sentimentos. Trata-se de expressar para o outro o que nos parece que está sentindo, como se colocássemos um espelho para que o outro se veja, com seus sentimentos, para que possa olhar para si mesmo. Porém, para que consigamos fazer isso, temos também de aceitar o que o outro está sentindo, temos de alguma forma de acolher o que o outro está sentindo.
É importante então acolher, traduzindo o que o outro faz em termos de sentimentos, refletir e também comunicar o que se passa em nós por meio de sentimentos. Trata-se de uma comunicação não-violenta, focada na expressão verbal do que se sente, e do que sentimos que o outro sente.
Depois que a outra pessoa já se encontra desarmada, mais calma, cabe falar do que sentimos na interação:
- Quando você esbravejou me senti também bastante transtornado, incomodado, irritado. Tive de respirar fundo e me controlar, para que não perdêssemos o controle, com o risco inclusive de agressões físicas. Acho muito lamentável que tenhamos chegado a esse ponto...
Porque a linguagem que expressa literalmente o que sentimos é a mais objetiva possível, a mais próxima possível dos fatos. Não há muito o que se discutir diante do que as pessoas estão sentindo. Elas simplesmente sentem. Isso é quase que um fato bruto, se podemos assim dizer.
Contudo, esse pequeno arsenal de técnicas e minha experiência em comunicação não-violenta, nessa interação com esse médico, foi praticamente inútil. Funcionou somente como o narcótico comunicacional de minha capacidade de desarmamento do outro a me intoxicar.
Naquele dia eu fragorosamente perdi a batalha. Fui embora para casa caminhando e já anoitecia. Eu estava vivendo um ano muito, muito difícil, e o sabor amargo das agressões que eu havia sofrido naquele plantão culminavam em um turbilhão de sentimentos de impotência e angústia. Andar, meditar sobre a falta de sentido da vida, sobre a minha fraqueza em conseguir dar continuidade à minha própria existência, e chorar, era o curso natural que o peso da escuridão e do silêncio da noite fazia em mim.
Entretanto, nas quatro semanas seguintes, diferentemente dos últimos seis meses, esse médico não estava presente nos mesmos plantões que eu. Disseram que não estava de férias nem de licença, que somente agora, durante aquele mês, estava fazendo seus plantões em outros horários.
Cheguei a pensar que ele pudesse estar na verdade fugindo de mim, fugindo da possibilidade de sentarmos frente a frente, olho no olho, e resolvermos aquela situação sem gritaria ou agressividade.
Porém, um mês depois ele estava de volta aos plantões em alguns horários que coincidiam com os meus, da mesma forma que nos seis meses anteriores.
Como naquele dia infeliz eu havia tentado me comunicar civilizadamente com ele por duas vezes, e por duas vezes ele havia corrido para dentro de sua toca, batendo a porta na minha cara, pensei que agora não faria o menor sentido tentar qualquer tipo de conversa, e que eu deveria simplesmente desprezá-lo, restringindo-me a um mínimo de comunicação possível.
Anexo ao ambiente principal da UTI, onde estavam os pacientes, havia uma pequena copa, na qual os funcionários lanchavam ou até mesmo faziam alguma refeição. Cerca de dois meses após o dia infeliz, estávamos eu e mais umas duas pessoas nessa copa, conversando, como de costume faziam muitos dos servidores enquanto lanchavam, e de repente a porta fechou-se muito bruscamente, provocando um estrondo e susto em nós que ali estávamos.
A porta não tinha batido sozinha. Alguém havia feito aquilo, e uma delas disse-nos que havia sido esse médico. Em posse dessa informação, comecei ali a tentar entender, junto desses colegas, os motivos pelos quais esse médico se comportava dessa maneira:
- Ah, Adriano, eu já desisti desse cara! Isso aí não tem solução não... – disse-me uma dessas pessoas.
Como eu era ali o desafeto mais recente dele, não tinha dúvidas de que aquela batida de porta tinha sido pra mim. Pensei: vou continuar tentando me comunicar com esse sujeito de modo civilizado. Só que agora vou tentar de uma outra maneira: vou tentar por escrito!
Escrevi um bilhete, sucinto, e joguei-o por debaixo da porta de seu repouso:
"Fulano, sinto que estamos tendo muitas dificuldades de interação. Precisamos conversar. Assim que você tiver um tempinho, por favor me comunique, para que possamos sentar e conversar de forma franca e civilizada."
Minha rotina e meus horários se mantiveram inalterados, mas esse médico simplesmente desapareceu, por cerca de uns 3 ou 4 meses. Ficou, durante todo esse tempo, "coincidentemente" fazendo seus plantões em horários totalmente diferentes dos meus.