Wednesday, March 07, 2018

Colega desumanizado na UTI

Tive a infelicidade de conviver, na UTI, com um colega, médico, o qual não tinha muito compromisso com uma relação humanizada, tanto com pacientes quanto com seus colegas de trabalho, e isso era reconhecido pela grande maioria da equipe.

Seus colegas médicos se queixavam de seu histórico de quebra de compromissos com a própria equipe médica, na rotina de trabalho. Era visto como aquele colega que cometia diversos erros, geralmente relacionadas a negligência, os quais sempre tinham de ser acobertados pelo restante da equipe.

Não sei exatamente porque aceitavam a convivência com um colega tão difícil e comprometedor, mas o fato é que essa convivência se arrastava, apesar de tudo, estabilizada, por alguns anos. Todos sabiam que aquele colega era um pouco uma pedra no sapato, mas parece que não viam ali uma alternativa melhor.

Ele era também um daqueles colegas que frequentemente acaba descumprindo com as normas do local. Sempre que isso ocorria de modo mais exacerbado era advertido, e voltava a se comportar dentro das normas por um breve período, o qual não durava muito, porque aquele sujeito era um problema crônico, inclusive para seus próprios colegas médicos.

No início de minha interação com ele somente percebi que se tratava de alguém que tinha um imenso prazer em estabelecer uma relação de dominação com seus colegas de outras especialidades. Mesmo não sendo o chefe da UTI, em seu plantão se comportava como tal, como se fosse o chefe do plantão.

Desse modo acabava incorrendo em diversos atritos, principalmente com a equipe de enfermagem. Nesses conflitos geralmente se comportava de modo bastante ríspido e pouco empático. Porém, no final das contas, acabava agindo como se nada tivesse acontecido, e as pessoas parece que sempre o perdoavam. Agia muitas vezes de forma bastante rude, e até covarde, para dias depois estar ali, com as mesmas pessoas que havia hostilizado, contando piadas de mau-gosto e rindo, inclusive de pacientes.

Essas pessoas, contudo, apesar de aparentemente terem perdoado seus atos grosseiros e impensados, não se esqueciam do que ele fazia de errado. Em privado não deixavam de comentar e trocar histórias de quando haviam sido hostilizadas por esse médico. Havia uma espécie de um ranking das piores pessoas que trabalhavam ali, e ele sempre estava no topo.

Eu também fazia parte da equipe porém, pelo fato de ter feito doutorado, creio que isso exercia um papel de fazer com que ele me respeitasse um pouco mais do que a maioria ali naquele espaço. A minha impressão é de que ele era mais implacável com quem tinha menos formação ou autoridade. Suas presas prediletas eram os técnicos de enfermagem.

A maioria das pessoas relatavam que ele era o mais desumano e ríspido dos profissionais que existiam naquela UTI. Eu não conseguia entender isso muito bem, pois ele ainda não havia sido ríspido comigo.

Hoje penso que ele era certamente o mais desumano com os próprios colegas de trabalho, porém não era, na minha percepção, o mais desumano com os pacientes, porque havia um outro médico, ainda mais desumano do que ele com os pacientes, do qual, se for o caso, ainda falarei em outra oportunidade.

Então a convivência profissional com esse colega era bastante difícil. Somente para vocês terem uma ideia, no sábado pela manhã, quando havia treino de Fórmula 1, transmitido pela Rede Globo (e não estou falando da corrida; estou falando somente do treino) ele simplesmente não podia ser interrompido.

Se a pessoa quisesse dar uma de louca bastava bater na porta de seu repouso enquanto ele estava assistindo a esse treino de Fórmula 1. Quem assim o fizesse, mesmo que houvesse alguma intercorrência grave, de algum paciente que estivesse em parada cardíaca, ou coisa semelhante, seria maltratado por ele. Ele ficava transtornado, irritadíssimo se alguém o chamasse enquanto estivesse assistindo ao treino de Fórmula 1.

E não havia como não chamá-lo, porque depois, se algo muito grave ocorresse em função de não chamá-lo, essa pessoa que não o chamou seria responsabilizada por isso. Então as pessoas se revezavam nessa função inglória. Sempre que ele estava no repouso evitavam ao máximo bater em sua porta. Então ele era chamado somente em situações muito graves.

O problema é que a obrigação dele não era somente a de socorrer um paciente que estava com uma parada cardiorrespiratória. Ele também tinha a obrigação de passar pelos leitos durante os horários de visita.

Havia dois horários de visita: um das 16 às 17 horas e outro das 20 às 21 horas. E ele fazia questão de não sair de seu repouso durante a maioria das vezes nos horários de visita.

Se ele não saísse de seu repouso e nada acontecesse, estaria tudo bem, porque ninguém iria chamá-lo mesmo. O problema é que a maioria dos familiares sabia que era obrigação do médico comparecer aos leitos durante os horários de visita, para dirimir dúvidas dos familiares, e até mesmo dos próprios pacientes em relação ao tratamento, à sua estadia ali.

Havia geralmente então uma pressão muito grande por parte dos familiares para conversarem com o médico. Outro problema também é que quando ele comparecia, sempre comparecia nos últimos 15 minutos da visita. Então nosso trabalho era também pedir para que os visitantes e familiares tivessem um pouco de paciência e esperassem, porque ele geralmente iria aparecer nesses últimos 15 minutos.

Havia porém dias e períodos em que ele não demonstrava o menor interesse ou motivação para comparecer às visitas. Desse modo as pessoas ficavam esperando, e ele simplesmente não aparecia.

Houve um dia contudo em que não resisti, e mostrei para um familiar de um paciente onde era o repouso, pedindo para que essa pessoa não revelasse ao médico que havia sido eu o servidor que havia lhe indicado o local em que se situava tal aposento.

Quase uma semana depois, quando cheguei para meu plantão, esse médico veio até mim enfurecido:

- Eu sei que foi você quem disse para um visitante que eu estava no repouso! Cuide de seu trabalho que eu cuido do meu! Você está me entendendo bem? Cuide do seu trabalho que eu cuido do meu!

Ele falava e bufava de raiva. E eu, como fui pego de surpresa, também fiquei bastante transtornado, pois foi uma interação muito estressante, porque aquilo parecia que poderia se transformar muito facilmente em uma luta corporal.
E nesse dia eu pude compreender mais plenamente sobre o que as pessoas falavam acerca de sua rispidez.

Ele simplesmente esbravejou e nem permitiu que eu replicasse ou me justificasse. Entrou no repouso e bateu a porta na minha cara.

Pensei comigo: vou esperar a poeira baixar e, no final do plantão, quando tudo estiver mais calmo, quando ele estiver mais calmo, tento conversar para acertarmos os ponteiros.

Já no final do plantão, eu estava andando, no início do corredor, e percebi que ele estava vindo pelo mesmo corredor, em direção a mim. Continuei andando em sua direção, e procurando olhar para ele, para seus olhos, para que conseguíssemos retomar a conversa de modo civilizado. Assim que olhou para mim, eu acenei no sentido de que queria conversar com ele:

- Fulano...

- Não quero saber! Não quero nem olhar pra tua cara!

- Eu só queria lhe pedir desculpas, rapaz...
- Não quero saber! - e bateu novamente a porta do repouso na minha cara.

Sim, inspirado em um velho ensinamento de Emily Bronte, antes de começar a conversa eu lhe pediria desculpas pelo transtorno:

- Fulano, antes de mais nada eu gostaria de lhe pedir desculpas pelo transtorno, porque não era essa a minha intenção...

Porque eu acho que as coisas podem se encaminhar primeiramente mais ou menos assim. Acho que é possível fazer com que a outra pessoa se acalme e se desarme a partir de pedidos de desculpas em relação ao que ela veio sentir, e que aquilo que ela veio a sentir não era de fato a nossa intenção. Sim, é plenamente possível e sensato pedirmos desculpas mesmo quando temos convicção de que estamos certos. E isso não é assumir que estamos errados. Não é mesmo, e explicarei melhor para que entendam.

Essa técnica é comumente chamada de reflexão de sentimentos. Trata-se de expressar para o outro o que nos parece que está sentindo, como se colocássemos um espelho para que o outro se veja, com seus sentimentos, para que possa olhar para si mesmo. Porém, para que consigamos fazer isso, temos também de aceitar o que o outro está sentindo, temos de alguma forma de acolher o que o outro está sentindo.

É importante então acolher, traduzindo o que o outro faz em termos de sentimentos, refletir e também comunicar o que se passa em nós por meio de sentimentos. Trata-se de uma comunicação não-violenta, focada na expressão verbal do que se sente, e do que sentimos que o outro sente.

Depois que a outra pessoa já se encontra desarmada, mais calma, cabe falar do que sentimos na interação:

- Quando você esbravejou me senti também bastante transtornado, incomodado, irritado. Tive de respirar fundo e me controlar, para que não perdêssemos o controle, com o risco inclusive de agressões físicas. Acho muito lamentável que tenhamos chegado a esse ponto...

Porque a linguagem que expressa literalmente o que sentimos é a mais objetiva possível, a mais próxima possível dos fatos. Não há muito o que se discutir diante do que as pessoas estão sentindo. Elas simplesmente sentem. Isso é quase que um fato bruto, se podemos assim dizer.

Contudo, esse pequeno arsenal de técnicas e minha experiência em comunicação não-violenta, nessa interação com esse médico, foi praticamente inútil. Funcionou somente como o narcótico comunicacional de minha capacidade de desarmamento do outro a me intoxicar.

Naquele dia eu fragorosamente perdi a batalha. Fui embora para casa caminhando e já anoitecia. Eu estava vivendo um ano muito, muito difícil, e o sabor amargo das agressões que eu havia sofrido naquele plantão culminavam em um turbilhão de sentimentos de impotência e angústia. Andar, meditar sobre a falta de sentido da vida, sobre a minha fraqueza em conseguir dar continuidade à minha própria existência, e chorar, era o curso natural que o peso da escuridão e do silêncio da noite fazia em mim.

Entretanto, nas quatro semanas seguintes, diferentemente dos últimos seis meses, esse médico não estava presente nos mesmos plantões que eu. Disseram que não estava de férias nem de licença, que somente agora, durante aquele mês, estava fazendo seus plantões em outros horários.

Cheguei a pensar que ele pudesse estar na verdade fugindo de mim, fugindo da possibilidade de sentarmos frente a frente, olho no olho, e resolvermos aquela situação sem gritaria ou agressividade.

Porém, um mês depois ele estava de volta aos plantões em alguns horários que coincidiam com os meus, da mesma forma que nos seis meses anteriores.

Como naquele dia infeliz eu havia tentado me comunicar civilizadamente com ele por duas vezes, e por duas vezes ele havia corrido para dentro de sua toca, batendo a porta na minha cara, pensei que agora não faria o menor sentido tentar qualquer tipo de conversa, e que eu deveria simplesmente desprezá-lo, restringindo-me a um mínimo de comunicação possível.

Anexo ao ambiente principal da UTI, onde estavam os pacientes, havia uma pequena copa, na qual os funcionários lanchavam ou até mesmo faziam alguma refeição. Cerca de dois meses após o dia infeliz, estávamos eu e mais umas duas pessoas nessa copa, conversando, como de costume faziam muitos dos servidores enquanto lanchavam, e de repente a porta fechou-se muito bruscamente, provocando um estrondo e susto em nós que ali estávamos.

A porta não tinha batido sozinha. Alguém havia feito aquilo, e uma delas disse-nos que havia sido esse médico. Em posse dessa informação, comecei ali a tentar entender, junto desses colegas, os motivos pelos quais esse médico se comportava dessa maneira:

- Ah, Adriano, eu já desisti desse cara! Isso aí não tem solução não... – disse-me uma dessas pessoas.

Como eu era ali o desafeto mais recente dele, não tinha dúvidas de que aquela batida de porta tinha sido pra mim. Pensei: vou continuar tentando me comunicar com esse sujeito de modo civilizado. Só que agora vou tentar de uma outra maneira: vou tentar por escrito!

Escrevi um bilhete, sucinto, e joguei-o por debaixo da porta de seu repouso:

"Fulano, sinto que estamos tendo muitas dificuldades de interação. Precisamos conversar. Assim que você tiver um tempinho, por favor me comunique, para que possamos sentar e conversar de forma franca e civilizada."

Minha rotina e meus horários se mantiveram inalterados, mas esse médico simplesmente desapareceu, por cerca de uns 3 ou 4 meses. Ficou, durante todo esse tempo, "coincidentemente" fazendo seus plantões em horários totalmente diferentes dos meus.

Autoengano e falsas memórias

O autoengano, o mentir para si mesmo, é uma impossibilidade lógica. Porque para mentir é preciso que uma das partes não saiba o que está acontecendo. 

Isso então não seria possível, porque uma parte de si mesmo teria de saber exatamente o que está acontecendo, e calculadamente criar uma outra versão, a versão mentirosa; enquanto outra parte de si mesmo teria de ser a parte enganada, e essa parte enganada no final das contas teria de ser a totalidade de si mesmo a repousar no engano, na ignorância.

Contudo penso que é bastante plausível a existência de mentirosos que durante todo o processo de construção de suas mentiras vão aos poucos forjando falsas memórias, e se esquecendo das versões originais, verdadeiras.

Assim, em todo o processo histórico de construção de suas mentiras, penso que um mentiroso pode aos poucos ir construindo uma espécie de autoengano.

Espantalho sobre o veganismo

Estão compartilhando a notícia de que uma divulgadora do veganismo havia declarado que teria curado seu câncer por meio de uma dieta vegana, e que agora ela veio a falecer do próprio câncer do qual havia declarado que tinha sido curada.

Concordo que é um pouco irônico que as coisas tenham ocorrido dessa maneira, e que as divulgações de cura do câncer por meio de métodos alternativos geralmente são fraudulentas, não importando se isso diz ou não respeito ao veganismo. 

Na verdade não é isso que resume o essencial do veganismo, que é fundamentalmente uma postura ética de respeito pelo sofrimento de animais sencientes não-humanos e toda a questão de uma melhor preservação dos ecossistemas.

Então achar bonito essa notícia, como se ela fosse um tapa na cara do veganismo, é tão ou mais idiota do que ficar divulgando curas milagrosas para o câncer.

Vamos falar um pouco de sintomas e transtornos de ansiedade?

Da minha observação e experiência clínica, concebo que os transtornos de ansiedade possuem geralmente duas fontes de determinação.

A primeira se relaciona a um processo de sensibilização em relação a determinados estímulos, o qual se instala após alguma experiência traumatizante. A segunda fonte se relaciona a uma diminuição da qualidade de vida como um todo.

É geralmente essa segunda fonte de determinação de sintomas de ansiedade a que com frequência é menos percebida por quem está padecendo dessa condição. 

Nesse caso a pessoa de repente, no correr da vida, em seu cotidiano, se percebe muito tensa, preocupada, ou com medo de uma série de coisas das quais antes não tinha medo, e não consegue perceber porque está se sentindo assim.

E sentir medo sem saber por que está sentindo medo em muitos casos tende a acentuar os sintomas de ansiedade. Gera mais sensações de falta de orientação, da falta de um terreno sólido sobre o qual se está pisando, e isso somente piora a situação, o quadro de sintomas ansiosos.

E nesses casos não faz muito sentido somente um trabalho de exposição gradual às coisas das quais a pessoa está relatando que vem sentindo medo. Ou seja, nesse caso, com uma certa frequência, não faz muito sentido somente a utilização de dessensibilização sistemática, a qual é mais facilmente compreendida pelo jargão de que é preciso simplesmente enfrentar aquilo do qual se tem medo.

Em casos assim é mais eficaz um trabalho intenso de investigação de como a vida se tornou pior, pois uma vida que de repente perde sua qualidade de fruição, de ser uma boa vida, ou de ser uma vida na qual as coisas tinham uma estabilidade suficiente para que ela caminhasse de modo saudável, é um terreno fértil para ansiedade.

E esse terreno fértil para a ansiedade, em muitos casos, se estabelece após decepções, frustrações ou perdas significativas. Um coração partido é uma terra fértil para sintomas ansiosos. 

Em boa parte dos casos há primeiro uma precipitação de sintomas de ansiedade, os quais depois vão se transformando ou progredindo para sintomas de depressão: primeiro existe a agitação, a tensão, o medo, os quais costumam gerar ações na tentativa de autoproteção ou isolamento o que, por sua vez, retroalimenta os sintomas de ansiedade. Ou seja: quanto mais o sujeito se protege mais medo sente. Depois da tempestade vem a tristeza.

Mas por que escrevi que depois da tempestade vem a tristeza? Escrevi isso porque infelizmente, com a progressão dos sintomas, depois da tempestade não vem a bonança. Depois dos sintomas de ansiedade, da tentativa desesperada de se proteger, a pessoa acaba se deparando com o isolamento, com a solidão. Porque as tentativas de proteção geralmente mais contribuem para o enfraquecimento dos repertórios do sujeito do que para a multiplicação de suas opções de enfrentamento e resolução de seu drama. Quanto mais a pessoa se protege mais medo passa a ter. 

Então um trabalho de dessensibilização sistemática, de exposição gradual às coisas das quais se tem medo, geralmente terá somente um papel de prevenção da acentuação de sintomas de ansiedade. É somente um trabalho de quebra de um ciclo vicioso, no qual as tentativas de autoproteção somente incorrem no agravamento dos sintomas.

Em direção a uma recuperação mais ampla é necessário um trabalho de investigação das decepções, perdas e frustrações que levaram a uma diminuição geral da qualidade de vida. E obviamente todo esse trabalho deve sempre ser realizado sem nunca nos esquecermos de uma série de outros componentes de nossa interação com o mundo, os quais dizem respeito, por exemplo, grosso modo, à alimentação, prática de exercícios físicos, exposição à luz solar, comorbidades e vários outros para os quais existem evidências científicas de sua repercussão na saúde mental.

Esse trabalho de investigação dos determinantes da piora na qualidade de vida visa primeiramente a construção de hipóteses que possam posteriormente ser testadas. Desse trabalho surgem hipóteses. Após o surgimento dessas hipóteses é necessária a construção, juntamente com o paciente, de um planejamento de intervenção na realidade, de testagem dessas hipóteses.

É comum, após a produção de algumas hipóteses, o surgimento de algumas tarefas que terão de ser realizadas fora das sessões de psicoterapia. E essas tarefas devem surgir de um trabalho conjunto entre terapeuta e paciente. Essas tarefas jamais devem ser produzidas ou direcionadas de modo unilateral. O terapeuta não deve simplesmente pedir para que o paciente realize algumas tarefas em casa. O terapeuta deve sempre negociar com o paciente o que este sente que tem condições para realizar.

O terapeuta pode sugerir esta ou aquela atividade, mas não pode nunca se esquecer de verificar com o paciente quais são os seus limites, inclinações e desejos, porque não faz o menor sentido sugerir alguma coisa para a qual não haverá motivação de realização.

E mesmo que o paciente tenha garantido que tinha motivação para a realização de uma simples tarefa, e se comprometido a realizá-la, quando não cumpre o que foi combinado também não faz o menor sentido produzir consequências aversivas para isso. Ou seja: não faz o menor sentido punir. Se não realizou a tarefa, temos sempre de abrir novamente a investigação para descobrirmos o que aconteceu para que não realizasse a tarefa. O trabalho de um terapeuta é um trabalho constante, em conjunto com o paciente, de investigação e teste de hipóteses.

Confusão conceitual no debate sobre a questão do relativismo moral

A minha impressão é existe uma certa confusão conceitual no debate sobre a questão do relativismo moral. Penso que existem dois níveis conceituais envolvidos. O primeiro diz respeito aos códigos morais, os quais variam em termos temporais, geográficos, culturais e sociais. O segundo nível diz respeito à questão da existência do bem e do mal. E aí talvez seja necessária a restrição ao que é fundamental. Na minha concepção é fundamental se pensar sobre a essência do mal. Penso que o mal existe sim e, claro, a experiência do mal irá variar de sujeito para sujeito, mas isso não quer dizer que não exista. Varia, mas não deixa de existir. Objetivamente existe. O mal é o sofrimento.

Desde a formulação do paradoxo de Epicuro, séculos antes de Cristo, isso é bem sabido. O mal objetivamente existe porque o sofrimento objetivamente existe. Os seres sencientes sofrem. Os seres humanos sofrem. E boa parte do empreendimento humano visa a construção de dispositivos, estruturas ou realidades para que esse sofrimento seja diminuído. E o bem se refere a toda ação que diminui ou extingue sofrimentos evitáveis, ou toda ação que vise à compreensão de como transformar sofrimentos inevitáveis em evitáveis.

O mal existe, e isso é uma realidade objetiva. Em si o sofrimento é o mal. Analise do modo mais objetivo possível, e observe que, em si, é algo ruim. O sofrimento, em essência, é o mal. Por menor que seja, é um representante do mal, representa o mal. Pode até ser inevitável ou desprezível, mas não faz sentido dizer que é útil. Acho que somente é útil pra quem subjuga o outro por meio dele. Para o opressor é bastante útil. Mas para quem sofre, o sofrimento, em si, é sempre uma carga, um desconforto, e isso já não faz sentido quando já se habituou, quando já se dessensibilizou.

A minha compreensão é a de que não podemos classificar o sofrimento em útil ou inútil, mas de que existem sofrimentos evitáveis e inevitáveis. Se são evitáveis, é um imperativo ético agir para que deixem de existir. Obviamente um dos pontos centrais nessa reflexão diz respeito à distinção entre sofrimentos evitáveis e inevitáveis. E muitos sofrimentos que eram inevitáveis no passado, hoje, com os mais variados desenvolvimentos técnicos e sociais, podem ser evitados. E o que é um sofrimento evitável? É todo sofrimento cuja extinção não tem como consequência a produção de sofrimentos ainda maiores.

Classificar o sofrimento como útil somente facilita a justificação de opressões e atrocidades.

Eutanásia para casos irremediáveis de transtornos mentais

Alguém certa vez, no Facebook, publicou isso aqui:

"Muitos falam sobre a eutanásia abordando apenas doenças orgânico-funcionais, como câncer, miopatias, alterações genéticas, etc.. Por que não se fala de doenças psiquiátricas? Pode-se dizer que é porque a pessoa terá alterações psicológicas o suficiente para não tomar uma decisão correta, é claro, mas e alguém de idade avançada que tenha sofrido todos os anos da vida com depressão profunda para a qual não há tratamentos?"

Minha resposta para essa questão é essa aqui:

Na Bélgica, por exemplo, uma pessoa nessa condição, em uma condição irremediável, seja qual for, depois de um certo tempo passa a ter o direito de morrer.

Ou seja: ela passa a ter o direito de ser ajudada pelo Estado para conseguir morrer em paz. Na Bélgica é assim porque existe a concepção de que a sociedade é responsável pelos seus membros.

Estar em sociedade é completamente diferente de estar sozinho. Se você está sozinho, você constantemente responde por si mesmo. Porém, se você está em sociedade, a sociedade em boa medida é também responsável por você e por seu bem-estar. Porque ninguém em sociedade está vivendo completamente sozinho. Sociedade implica nisso: em ter sócios. Se você tem um sócio, ele também é responsável por aquilo que você é responsável.

Existe uma sociedade no empreendimento da vida. Há uma vida em grupo,  há uma vida em sociedade: então a sociedade deve ajudar o sujeito tanto a viver bem quanto a morrer, se for um caso irremediável.

Angústia sobre a finitude

Minha angústia sobre a finitude da vida, de tudo, vai embora rapidinho quando começo a pensar que eu não existia também antes de nascer. É engraçado porque quase ninguém fica angustiado em pensar que simplesmente não existia antes de nascer, que o mundo já estava aí há bilhões de anos e a pessoa nunca havia existido, e a maioria fica muito angustiada em pensar que deixará de existir depois que morrer. Mas o que mais aconteceu na existência de tudo é você simplesmente não ter existido, criatura.

Quer ajudar um pouco as pessoas, com seus problemas e dilemas na vida?

A primeira coisa é começar a tentar mudar um pouco a postura quando estiver ouvindo as pessoas relatando seus problemas. Culpá-las pelo que elas estão passando é geralmente muito ineficaz. Evite duas frases prontas que comumente saem da boca dos ouvintes nessas horas: "Você não se ajuda" e "Você precisa ser forte" ("Seja forte!").

Essas duas frases, ou qualquer coisa parecida,  fazem com que você fique mais distante dessa pessoa. Vai fazer com que ela até comece talvez a evitar você. Porque essas duas frases são aversivas. Estão colocando todo o problema nas costas delas mesmas, e não estão oferecendo praticamente solução alguma. Acrescentam problemas. Fazem com que elas se sintam culpadas e desamparadas. Procuraram ajuda e encontram alguém que lhes aponta o dedo na cara, dizendo que a culpa é delas. Isso não é ajuda, não é solução pra nada.

Tente ouvir a pessoa tentando descobrir mais profundamente o que está acontecendo. Tente buscar por determinantes do que está ocorrendo. Quanto mais você perguntar e tentar entender os detalhes, mais facilmente vocês dois encontrarão, talvez, algumas alternativas.

Quem está com dificuldades precisa se sentir à vontade para relatar o que está acontecendo, e essa pessoa somente irá se sentir à vontade se você demonstrar que aceita o que está acontecendo e o que ela sente. Se você for capaz de demonstrar que compreende por que essa pessoa está se sentindo assim (porque ela de fato tem os motivos dela para estar se sentindo assim) já é alguma coisa.

Então boa parte dos procedimentos relacionados a ajudar efetivamente alguém tem relação com a postura que você terá nessa interação com essa pessoa que está precisando de ajuda. É importante ter uma postura receptiva e não-punitiva. Quanto mais a pessoa se sentir à vontade mais profunda e verdadeiramente vocês dois (duas) mergulharão nas questões e nos problemas que ela está relatando.

Então não tem jeito: tem que escutar com amor, com aceitação, com paciência, com o espírito aberto para o que está vindo de quem fala de suas dificuldades e sofrimentos. No final das contas quem governa uma boa relação de ajuda é o amor, o amor bem feito, o amor no lugar certo, o amor com técnica, ou então é um conjunto de técnicas que no final das contas a gente até pode chamar isso de amor.

Sofrimento: não é útil nem enobrece

Se o sofrimento tem alguma função, função boa, é somente uma: facilitar a empatia, pois a tendência de quem não sofre, ou sofre pouco, é se dessensibilizar com o sofrimento alheio. Essa, pra mim, é a única utilidade do sofrimento. Para o restante dos sofrimentos prefiro pensar que são evitáveis ou inevitáveis.

Afirmar que o sofrimento enobrece faz um pouco de sentido para quem está no luxo, e vem sofrendo muito pouco nessa vida, e assim até se embruteceu. Não deve servir pra justificar sofrimentos dilacerantes, injustos e indecentes. Mas infelizmente  é mais para isso que esse tipo de afirmação acaba servindo mesmo, para naturalizar a opressão.


Bolsa Família

Quem é contra o Bolsa Família, além da falta de empatia ou desinformação, prefere a mendicância forrando as ruas de nosso país.


O pobre oprimindo o miserável

De vez em quando vou ao hipermercado mais perto de minha casa, e sempre é a mesma coisa. Quase que para cada fila dos caixas há uma pessoa (geralmente crianças) mendigando, pedindo para que paguem por algumas coisas que compraram.

- Isso aí é assim o dia inteiro. Esse pessoal não quer saber de trabalhar – disse categoricamente a operadora do caixa.

E é quase sempre também a mesma coisa: o pobre hostilizando o miserável, o pobre culpando o miserável por sua miséria. 

Para estragar meu domingo, retruquei:

- Mas a miséria e a mendicância vão aumentar muito. Enquanto a gente achar que é o pobre que tem de pagar a conta nesse país, a coisa ainda vai piorar muito...

E fui vomitando: 70% dos juízes ganhando acima do teto constitucional, quem ganha R$ 5 mil pagando a mesma alíquota de imposto de renda que alguém que ganha R$ 100 mil, Brasil campeão mundial de impostos indiretos (fazendo os pobres e miseráveis pagarem mais do que os ricos), reiterados perdões de bilhões em dívidas para grandes empresários, um dos maiores índices de desigualdade social do mundo gerando boa parte da violência urbana que enfrentamos, R$ 500 bilhões de sonegação de impostos por ano (que mais, que mais? tem muito mais)...

Resultado: minha verborragia ecoou no vazio, e conquistei a antipatia de quem estava por perto, dando uma estragada no pouquinho do final de semana que me restava...

Chorar faz bem?

“Chore que faz bem...”

É muito comum esse tipo de afirmação ou recomendação. Chorar, contudo, pode ter as mais diversas funções. Porém quando alguém assim se expressa geralmente está recomendando que a pessoa chore para desabafar, para diminuir a tensão e assim tenha um pouco de alívio em relação a seu sofrimento.

Entretanto existem também, para esse aspecto, contextos diversos. Há pessoas que relatam que geralmente se sentem piores após chorarem. Pois a expressão de uma emoção pode intensificar a emoção em questão. Ou seja: chorar pode, em alguns casos, intensificar a tristeza. Aí me lembro de muitos relatos de pacientes a me dizer que quanto mais choravam mais tinham vontade de chorar, e mais tristes ficavam.

Fora os contextos mais específicos: se a pessoa, por exemplo, chorar em público e isso implicar para ela em sentimentos de vergonha ou humilhação, chorar poderá então criar mais problemas e aumentar o sofrimento.

Portanto, chorar nem sempre faz bem...