Wednesday, July 27, 2022

Predador

O rapaz era jovem. Tinha cerca de 25 anos de idade. Estava em estado gravíssimo, por um fio de vida. 

Na UTI havia sempre muitos casos graves e alguns gravíssimos. Os casos gravíssimos geralmente eram caracterizados por instabilidade hemodinâmica, e precisavam constantemente de monitoramento com administração de noradrenalina. 

Ele havia sido esfaqueado em uma briga. Seu ferimento era na jugular externa.

Até hoje, mais de 10 anos depois, só consigo pensar nesta expressão, de que ele estava mesmo somente "por um fio de vida", justamente pelo fato de que uma de suas ligações com a vida era essa veia jugular, que havia sido seriamente lesionada,  produzindo uma hemorragia intensa e com um potencial de letalidade muito grande.

Eu olhava para seu leito, e ao mesmo tempo em que o via prostrado, com todos aqueles aparelhos, imaginava um pequeno fio de vida, de carne, a segurá-lo, a mantê-lo vivo. 

Era somente possível dizer a seus familiares que seu estado era gravíssimo, e que não era possível prever o que ocorreria dali em diante.

Diziam que tinha sido uma briga e que havia saído a notícia no jornal. Procurei e rapidamente encontrei a notícia pela internet.

Ele estava em uma festa, e se desentendeu com um rapaz. Após esse conflito verbal, ele agrediu fisicamente esse outro sujeito, que saiu da festa e foi até sua casa buscar uma faca.

A lâmina dessa faca tinha mais de 20 centímetros. Não era uma faca pequena. Era bastante pontiaguda e muito letal. 

A descrição do jornal era de que o golpe havia entrado pela boca, quebrando-lhe três dentes durante a investida. 

Ele tentou se desvencilhar do ataque, possivelmente jogando o corpo para trás. Mas o agressor mesmo assim conseguiu acertá-lo, porém na boca. A faca entrou pela boca e foi, por dentro, até a sua jugular externa. Ele simplesmente tomou uma facada, em que engoliu essa faca inteira em uma fração de segundos. 

Engoliu a faca e ainda foi capaz de tentar fugir. Porém, correu somente por cerca de 20 ou 30 metros e perdeu por completo a consciência, se desfalecendo no chão. Correu desesperado, por poucos metros, e se esborrachou no chão.

E estava então naquele momento conosco, ali, internado em uma UTI de um hospital público, pendurado somente por um fio de vida.

Lembro-me que alguns de seus familiares ou amigos que o visitavam. Diziam que ele era um rapaz forte e bom de briga. Alguns o descreviam como um valentão,  como aquela pessoa que muitos vizinhos acabavam até tendo medo, porque havia várias histórias dele se impondo e intimidando outras pessoas por meio de sua força física.

Alguns dias depois ele recuperou a estabilidade hemodinâmica. Seu quadro saiu de gravíssimo para grave, adquirindo estabilidade e fazendo com que, em poucos dias, ele inclusive fosse desintubado e retomasse a consciência.

Em nossa passagem diária pelos leitos sempre cumprimentávamos os pacientes que estavam conscientes. 

Passei por ele e lhe dei bom dia. Ele respondeu de modo muito discreto, somente com um aceno sutil com a cabeça e um olhar firme.

Havia outros pacientes que precisavam de mim, e eu não tive tempo de interagir mais detidamente com ele.

Dias depois, quando voltei à UTI, ele já havia saído de alta.

Mas me lembro muito bem de seu olhar, que não fazia a questão de ser simpático, ou não se dava conta disso. Posso estar enganado, pode ter sido somente uma impressão equivocada de minha parte. Mas ali, mesmo naquele contexto de total vulnerabilidade, ele emitia um olhar intimidador. O valentão tinha sobrevivido.

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