É comum se pensar que havia, ou surgiram, por volta da década de 80, inúmeras coisas que, aos olhares de hoje, são vistas como muito bizarras e destrutivas.
As pessoas fumavam muito mais, bebiam muito mais refrigerante, ingeriam muito mais açúcar, andavam sem cinto de segurança ou sem capacete. Havia muito mais exposição a uma série de perigos e danos do que existe hoje, assim como também havia muito mais comportamentos que hoje são considerados crimes.
Havia também muito menos respeito aos direitos humanos e muito menos luta pela cidadania. Diversos direitos eram violados, e as pessoas simplesmente não os reivindicavam juridicamente, seja talvez por falta de legislação ou porque não havia uma cultura de luta pela cidadania.
Uma das coisas bizarras das quais me lembro, em Ribeirão Preto, é de um programa de sátira policial que era transmitido pelo rádio.
O nome do programa era "Balanga Beiço", e era transmitido por volta de 11:30, todos os dias, por alguma rádio AM.
Minha mãe todos os dias ligava o rádio, para ouvir a dois locutores, metidos a comediantes, em suas performances a trazer ao ar os boletins policiais que eles julgavam como sendo os mais engraçados dos últimos dias.
A função desses caras era ir às delegacias e coletar boletins de ocorrência para selecionar ali aqueles que tivessem o maior potencial para causar risos nos ouvintes.
Era uma espécie de vídeo- cassetada, porém com a exposição da intimidade, dos reveses, das tragédias e das tristezas que outras pessoas tinham vivenciado, ao ponto de virar caso de polícia.
As identidades dessas pessoas eram reveladas durante o programa, inclusive muitas vezes com detalhes sobre onde moravam ou trabalhavam. Elas eram expostas da forma mais crua possível, e geralmente não havia ações judiciais. Em alguns casos, as pessoas que eram expostas encontravam os locutores na rua e os agrediam fisicamente, e ficava tudo por isso mesmo. Ninguém processava ninguém.
As pessoas iam à delegacia e faziam um boletim de ocorrência. E o que geralmente ocorria era do delegado chamar as partes e entrarem em algum acordo verbal, com pedidos de desculpas e a promessa de que eventos similares não mais ocorreriam.
O problema é que pessoas de minha família e de minha vizinhança protagonizaram o programa mais de uma vez.
Meu pai e minha mãe tinham uma relação muito conflituosa. Por diversas vezes, após desentendimentos, ele ficava descontrolado e quebrava uma série de coisas dentro de casa: pratos, copos, cadeiras, portas, etc.
Segundo relatos de minha mãe, quando eu e meus irmãos ainda éramos bem pequenos, houve uma vez em que ele, bêbado, ameaçou de se matar.
Não sei exatamente o que ela fez, mas creio que tenha saído de casa, fugindo para a casa de algum vizinho ou familiar, carregando os filhos, para não lidar com situação tão extrema.
E, no limite das loucuras daquele dia, meu pai pegou uma espingarda de chumbinho e deu um tiro no próprio pé.
Teve de ir ao hospital, e eu imagino que algum profissional de saúde tenha feito alguma espécie de notificação ou comunicação para a polícia civil, ou que tudo isso tenha se difundido simplesmente pelo gosto de se falar da vida e da miséria alheia.
Os dois locutores do Balanga Beiço não perdoaram. Dias depois estavam contando essa história no ar, na hora do almoço, para que milhares de ouvintes, espalhados por toda a cidade de Ribeirão Preto, soubessem o nome e o endereço de meu pai, e o que ele tinha feito.
- É... Vocês conhecem o Antenorzim, o rapaz que mora ali no Jardim Independência, do lado do corpo de bombeiros. Ele é conhecido ali. Ele é filho do Véio Trovão. Sim, o Véio Trovão, seu Antenor, pai do Antenorzim, que também já passou aqui no Balanga Beiço. Arranjou umas confusão aí nas rua do Jardim Paulista - narrava Tiririca, o mais debochado dos dois locutores.
E boa parte das pessoas, que agrediam os locutores nas ruas, preferiam agredir o Tiririca. Porque ele tinha uma estatura bem baixa e um porte físico nada atlético. Era baixinho, barrigudo e com uns óculos, fundo de garrafa, enormes. Era um sujeito que muitas pessoas classificavam como muito engraçado, mas que outras o percebiam como repugnante, e com uma constituição física que costumava encorajar até mesmo as mulheres para a agressão.
- O Antenorzim brigou com a esposa e deu um chilique. Gritou, soltou grunhidos, arrancou as calcinhas e pisou em cima, e quebrou a casa inteira. Não sobrou um único prato inteiro naquela pobre e humilde casa da Rua José Gastão de Oliveira. Aí ele ameaçou que ia se matar. A esposa, desesperada, correu com os filhos pra fora de casa e foi se abrigar na casa da vizinha. E ele ficou lá dentro, gritando "Eu vou me matar, eu vou me matar... Olha que eu me mato, viu? Mas não é que aí ele pegou uma espingardinha de chumbim e deu um tiro no pé. Chegou no hospital e falou que tava tentando matar um rato. O ratinho corria para cá e corria para lá, e o Antenorzim corria atrás. Mas aí ele errou de mira, e acertou o pé. Nossa, tá precisando de um óculos mais fundo de garrafa que o meu... - continuava Tiririca, para que milhares de pessoas, em suas casas, dessem boas risadas do que Antenorzim havia feito.
E isso, creio eu, nem mesmo teria ocorrido na década de 80. Teria sido algo da década de 70, porque na década de 80 eu já era grande o suficiente para saber certinho o que tinha ocorrido dentro de minha casa, sem perder a memória das coisas.
Mas com um infortúnio Tiririca não contava. Uns 10 anos depois ele se mudou para o Jardim Independência, e foi morar exatamente na Rua José Gastão de Oliveira, a uns 50 metros de minha casa.
Quando ele chegou para morar ali, naquela rua na qual praticamente inexistiam adolescentes e crianças do gênero feminino, encontrou o meio hostil ideal para que muitas de suas arruaças propagadas pelo rádio fossem devidamente vingadas. A maior parte da molecada da rua já não era mais de crianças pura e simplesmente, mas de pré-adolescentes e adolescentes no auge da rebeldia.
Passamos bosta de cachorro nas maçanetas de seu portão e, minutos antes que ele chegasse, ficamos todos ali, escondidos, esperando pelo grande momento em que ele então sujaria literalmente de fato suas mãos de merda, para saber o que era ter realmente as mãos sujas e não simplesmente de modo metafórico, como o que fazia diariamente em seu programa de rádio.
- Ah!!! Pqp!!! Filho da phutta!!! Filho da phutta!!! Se eu pegar eu káppo o filho da phutta que fez isso!
E foi mais ou menos nessa época que também não medimos esforços para sair de casa com um pacote de cascas de banana e lixo, para enfiar tudo no escapamento do carro dele com um cabo de vassoura, e depois ver ele saindo, e saber que seu carro parou a dois quilômetros dali.
Nosso prazer, por um certo tempo, era deixar Tiririca na mão e com ela suja de merda.
- É, rapaz, eu não sei mais o que eu faço com aquela molecada encapetada lá da minha rua. Eles botam merda na maçaneta do meu portão, enfiam casca de banana no escapamento do meu carro, pulam dentro da minha casa para pegar bolinha...
E talvez esse tenha sido um dos últimos programas de sátira policial que Tiririca fez na rádio, tratando do próprio boletim de ocorrência, que havia aberto contra a molecada de sua rua. Já estávamos no final dos anos 80, e sua audiência vinha despencando.
Faleceu poucos anos depois, com um infarto fulminante, por volta dos 55 a 58 anos de idade. Figura como um dos maiores radialistas de Ribeirão Preto durante as décadas de 60, 70 e 80.
Talvez seja um pouco ambíguo ou paradoxal dizer que deixou saudades.
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