Tudo é fisiológico. Não existe essa divisão entre o físico e o mental. Somos um organismo em interação com o mundo e com outros organismos.
A tentativa de dividir transtornos mentais em transtornos orgânicos e não-orgânicos não se refere a uma dualidade perfeita. Transtornos mentais não-orgânicos também tem sua base fisiológica, embora ainda não tenhamos sido capazes de delimitá-la. Assim como os transtornos mentais orgânicos também podem, em boa medida, sofrer influências significativas de nossas interações com o mundo.
A discussão mais importante, na verdade, se dá no nível da fronteira entre o que seria saudável ou patológico. Esse é o ponto mais importante, o qual já contemplei em outros textos. Contudo, neste texto aqui pretendo somente tocar na questão das influências e determinações do que costumamos classificar como sendo transtornos mentais.
Certa vez recebi para atendimento um paciente com sintomas psicóticos, nos quais predominava persecutoriedade e comportamento religioso extremado. Ele vinha sofrendo, sentindo que pessoas, ou entidades sobrenaturais, estavam perseguindo-o, de carro, nas ruas, dentro de sua casa, atrás da porta, debaixo da cama, etc. Havia várias formas de perseguição, muitas e as mais variadas pessoas e entidades, segundo ele, queriam o seu mal.
Ele deixara de praticar atividade física, de jogar futebol, de interagir com alguns amigos que estariam pecando ao estarem namorando, passeando, ou as mais variadas manifestações que de alguma forma eram classificadas por ele como sendo pecado.
Nasceu em uma família de pessoas que majoritariamente seguiam uma religião pentecostal. Porém durante sua adolescência se afastou um pouco da igreja. Contudo, com cerca de 22 anos de idade, passou a apresentar uma série de sintomas que aproximavam seu quadro de um quadro psicótico: delírios persecutórios, alucinações auditivas e visuais, relacionadas principalmente a entidades persecutórias sobrenaturais e comportamento religioso excessivo e extremado.
Parou de trabalhar e começou a se isolar dentro de sua casa, passando muitas horas orando e muitos dias, muitas vezes, jejuando e pregando o evangelho, sempre de modo bastante exaltado, para a família ou para as paredes.
Logo que a família me relatou algumas desses comportamentos que ele vinha tendo, pontuei que algumas dessas práticas talvez pudessem ter um papel relevante na intensificação de seus sintomas psicóticos, tais como o jejum ou a referência a entidades sobrenaturais persecutórias.
Mesmo que seu histórico contenha vários elementos ratificados epidemiologicamente como sendo característicos do desenvolvimento de um transtorno psicótico, em tese, orgânico, não faz o menor sentido desistirmos de considerar também alguns possíveis influenciadores ou determinantes no nível das interações sociais ou com o mundo físico, não imediatamente social.
Ficar de jejum prolongadamente ou sem dormir por muitos dias são reconhecidamente práticas que tendem a produzir ou intensificar alterações sensoperceptivas e do juízo de realidade.
Ou seja, para uma pessoa, com os sintomas dos quais ele vinha padecendo, penso que não é recomendável que faça jejuns prolongados ou que fique por dias sem dormir direito. Na minha compreensão também não é recomendável que participe ativamente de cultos muito exaltados, os quais constantemente se referem a entidades sobrenaturais persecutórias.
Muito possivelmente esse paciente não precisava mudar de religião. Ele precisava somente participar de cultos menos exaltados e menos votados à persecutoriedade. Precisava na verdade ter seu ciclos de sono completos, e as horas adequadas de repouso todos os dias, assim como fazer as suas alimentações de forma regular durante o dia, sem a prática de jejuns prolongados.
Muito possivelmente poderia continuar participando das práticas culturais que vinham sendo cultivadas por sua família há muitos anos. Ir aos cultos de sua igreja, e se sentir integrado à sua comunidade de origem, era inclusive algo importante para a sua reabilitação psicossocial. Contudo talvez fosse necessário que participasse mais de cultos que fossem realizados de uma outra forma, de uma forma menos exaltada, de um modo mais sereno, suave.
O presente texto foi numerado. Voltarei a este tema. Esta série continua...
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