Saturday, September 02, 2017

Acho que conheci uma santa...

Não são poucas as sessões que tenho com pacientes, no CAPS, das quais saio completamente impressionado, inebriado.

Atendi uma senhora de 61 anos de idade, a qual estava morando na rua por meses a fio, talvez anos. Essa senhora, dos 34 aos 47 anos, residiu com uma amiga e seus três filhos. Ela ajudou essa mulher, nesse período, a criar seus filhos.

Elas se conheceram no final da década de 80, na igreja evangélica que frequentavam. Nessa época a senhora da qual estou falando morava na própria igreja ou na casa do pastor e sua família. As duas se tornaram amigas e, não sei exatamente o motivo, passaram a morar juntas.

Ela nunca se casou ou teve filhos. Nunca sequer teve um namorado. Relata que sua vida sempre foi ela e Deus. Apresenta diversos sintomas de demência (não sabe nem mesmo o primeiro nome da própria amiga, sempre esquece), com um histórico característico de esquizofrenia, cujos delírios e comportamentos basicamente estão relacionados a religião e espiritualidade.

Até mais ou menos 2003 morou com essa amiga e depois disso passou a andar pelo mundo. A amiga relata que ela teve carro por um bom tempo, mesmo sem ter carteira, e que saia com esse carro praticamente sem rumo, estrada afora.

Tinha uma caixa de som em cima do carro e, pelo interior do Centro-oeste ou da região Sudeste, anunciava cultos, fazia propagandas e favores os mais diversos. Praticamente qualquer pessoa que pedisse para que ela o anunciasse com essa caixa de som, ela assim o fazia.

Se apresentou para a sessão de atendimento com uma mochila nas costas, da qual ela não se separa nem quando vai dormir. Ela se cobre com a mochila junto de seu corpo. Dorme todos os dias abraçada a essa mochila, e resiste um pouco a mostrar o que carrega dentro.

Quando estava nas ruas carregava várias mochilas, e dentro de uma delas inclusive havia um notebook, no qual carrega suas memórias: fotografias e vídeos com suas pregações e andanças, e uma série de outras lembranças que para ela são um passatempo. Diz que não gosta nem precisa de internet. Basta abrir seu notebook que ali ela passa o tempo que for necessário ouvindo suas músicas, revendo suas memórias.

Mostrou-me algumas coisas dentro dessa mochila: um livro onde estão inseridos os nomes de centenas de pessoas que ali deixaram sua própria caligrafia e seu nome completo, para que ela pudesse orar por elas; e alimento (alguns biscoitos).

Logo que essa amiga a retirou das ruas, fez questão de levá-la a um centro de saúde e ali providenciaram uma bateria de exames, a qual essa amiga me mostrou. Para a minha total surpresa não havia nenhum exame fora da normalidade. Uma mulher de 61 anos, que estava morando nas ruas por meses ou até mesmo anos a fio, não tinha qualquer alteração fisiológica que indicasse alguma patologia ou até mesmo qualquer tendência a alguma patologia.

Somente havia uma pequena variação, para baixo, dos níveis de ácido úrico, o qual suponho que esteja relacionado à sua baixa ingestão de carne. Segundo a amiga, se fosse deixada completamente livre, ela somente ficaria se alimentando de leite puro e biscoito de água e sal, o que também supostamente está relacionado ao longo período em que morou nas ruas: "Tem que ficar em cima e forçar um pouquinho pra ela comer outras coisas, mas já tá começando a comer uma alimentação mais variada. Gosta muito de feijão e come qualquer tipo de verdura ou fruta."

O relato da amiga era o de que, em cerca de 15 anos de convivência, nunca havia testemunhado qualquer tipo de enfermidade nessa senhora: "Nunca vi ela com gripe ou qualquer tipo de doença. Nunca vi ela se queixando de qualquer tipo de desconforto. Não se queixa nem nunca se queixou de nada. Nunca a vi nervosa, discutindo, batendo boca com ninguém. É sempre assim: sorrindo, cantando, falando de Deus e agradecendo..."

Segundo essa mesma amiga ela é muito bem quista por onde quer que passe: "As pessoas gostam demais dela. Todos lá na vizinhança a amam de paixão e na igreja também. Meus filhos tem adoração por ela. O problema é que ela, uma vez ou outra, resolveu fugir, sumir no mundo..."

Seus familiares moram em algumas cidades do interior de Minas Gerais. Relatam que desistiram dela devido a esse comportamento de andarilho, à imprevisibilidade do que ela pode fazer quando resolve sair pregando e andando pelo mundo: "Sinto que os parentes dela dão muitas demonstrações de desamor por ela." E aí não tem como não nos lembrarmos instantaneamente do dito popular de que santo de casa não faz milagre rs...

E, confesso, também senti uma simpatia enorme por essa mulher. Perguntou-me se eu gostaria de deixar meu nome escrito no caderno dela, para que depois ela pudesse orar por mim, e eu fiz questão de, com carinho e apreço, escrever meu nome completo, com uma letra bem bonitinha, em seu caderno. Não consegui esconder dela a simpatia que despertou também em mim. Fiz questão também de comunicar isso a ela, de que senti coisas muito boas estando em interação com sua pessoa, de que conhecê-la me fez muito bem.

Como já mencionei, ela apresenta vários sintomas de demência. Pelos relatos da amiga, e do que pude observar em seus olhos e na forma como se comunicou comigo, percebi que seu cérebro está se encolhendo, mas a sua luz, essa continua do mesmo tamanho que parece sempre ter tido: uma extensão que contagia a todos que interagem com ela.

Segundo a amiga ela chegou inclusive a ter casa própria, mas vendeu essa casa e distribuiu o dinheiro para diversas pessoas para as quais ela achava que poderia assim beneficiar ou ajudar de alguma maneira. Quando tinha casa para morar inclusive um fato característico era essa casa nunca ficar vazia. Sempre residiu com muitas pessoas em sua própria casa, muitas das quais, segundo ela, estavam precisando de um teto, de comida, ou qualquer tipo de ajuda.

A amiga diz que ela sempre foi assim, "muito mão aberta", muito de distribuir o que tem para quem ela acha que está precisando. Sua casa nunca ficava vazia e sempre havia muitas pessoas ali morando com ela, apesar da falta de espaço ou de recursos.

Durante o atendimento, fiquei me perguntando sobre o que é um santo e se de fato existem santos, ou se essa classificação poderia se aplicar a essa mulher. Simplesmente não tenho resposta para nada disso, e nem mesmo sei se essas questões são pertinentes, mas uma coisa é certa: a presença dela, a interação com ela, me fez muito bem.

Saí do CAPS com mais uma abertura de horizontes, com mais uma perspectiva de mundo. Apesar de todas as dificuldades, de todos os dramas, do viés dos relatos e de todas as contradições presentes em histórias como essa, saí dali me sentindo mais feliz, não pelo contraste com qualquer dificuldade que tenha sido relatada pra mim, mas sim por perceber que a vida pode florescer com alegria e paz em meio a tantas adversidades...
------------------------------------------------------------------------------
PS: Pra quem ficou com a pulga atrás da orelha, sugiro a leitura do texto no link a seguir, o qual serve como complemento ou contraste: https://goo.gl/Ei3643

1 comment:

Unknown said...
This comment has been removed by the author.