Wednesday, June 08, 2016

Cultura do estupro

Existe uma cultura do estupro no Brasil? Essa cultura é generalizada e predomina sobre outras que podem lhe fazer oposição?

Vou começar com duas definições de cultura do estupro que Pedro Sampaio propôs em um texto que ele escreveu aqui mesmo pelo Facebook * :

“1 – uma cultura que incentiva o estupro, entende o estupro como aceitável ou ao menos onde ele ocorre com grande parte das pessoas;

2 – uma cultura que, apesar de condenar severamente o estupro, não entende bem o que é estupro, relativiza algumas formas de estupro e culpabiliza a vítima.”

Acho interessante deixar aqui escritas as definições que ele propõe, pois elas nos instigam a pensar com um pouco mais de sofisticação sobre o que seria a cultura do estupro no Brasil, e como ela talvez especificamente se estabelece.

Quero também aqui contar algumas histórias esparsas, as quais espero que também despertem alguns questionamentos e reflexões acerca desse tema.

Após a notícia de um estupro muitas pessoas acabam se manifestando a favor da punição severa do estuprador, incitando que essa punição não deve se restringir somente à pena de privação de liberdade. Desejam que o estuprador sofra o que é comum, e relativamente bem aceito no Brasil, que ele seja estuprado na prisão: "Agora ele vai ver o que é bom porque agora ele vai virar mulherzinha dos presos na cadeia". Acreditar que a solução para os índices de estupros são mais estupros, como penalização, é reforçar a ideia de que existe uma cultura do estupro em nossa sociedade.

E ocorre também o que muitos têm comentado nas redes sociais. Algumas pessoas, muito bem representadas por alguns políticos tais como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, costumam manifestar repúdio extremo em relação a estupradores, ao mesmo tempo em que relativizam sua culpa, ao afirmar que muitas mulheres também facilitam seja, por exemplo, pelo uso de roupas curtas ou pelo comportamento supostamente sedutor, dentre outras afirmações que acabam por atribuir alguma ou toda a culpa à vítima. Pessoas que pensam assim, além de manifestarem franca contradição, geralmente também afirmam que o estuprador deve ser violentado na cadeia. Ou seja, reforçam intensamente uma cultura do estupro.

Não sei se existe ainda, mas era muito comum em minha época de adolescência: muitas mulheres diziam que gostavam de homens com atitude, com iniciativa, homens que tinham pegada. Afirmavam preferir homens que, durante o ato sexual, as pegassem com mais força. Algumas inclusive chegavam a dizer que gostavam de se sentir como se estivessem sendo tomadas à força.

E uma grande maioria delas (pelo menos na região em que eu morava, no contexto em que eu vivia, no interior de São Paulo, no final da década de 80 e início da década de 90) dizia que não gostava de muita conversa, de muito blá-blá-blá, mas que achava muito melhor que os rapazes fossem direto às vias de fato.

Algumas inclusive chegavam a dizer que as mulheres tinham uma coisa mais de pele, de serem seduzidas mais pelo toque, pelo contato físico, do que pela aparência, pela estimulação visual. Muitos rapazes também acabavam por reiterar esse tipo de discurso. Então existia o imaginário de que os homens eram seduzidos pela aparência e as mulheres eram seduzidas pelo toque, pelo contato físico.

E como geralmente ocorria esse contato físico, se elas ainda nem haviam sido seduzidas, se ainda nem haviam consentido em serem tocadas? Os jovens se aproximavam e, sem consentimento verbal, tocavam uns aos outros, primeiramente começando, geralmente, pelas mãos. Era necessário ter essa iniciativa de avançar sobre o corpo do outro, sem qualquer pedido verbal que se antecedesse a esse avanço, sob o risco de estranhamento ou rejeição. Esse pedido verbal, na verdade, era de certo modo substituído por uma série de manobras sofisticadas de sedução, as quais visavam fazer com que a outra pessoa se manifestasse de modo mais receptivo e afinado.

Os rapazes mais habilidosos, atraentes e experientes geralmente conseguiam agradar mais, seduzir mais, percebendo a abertura, que as moças estavam gostando de sua conversa, de seus gracejos, e assim eles já iam, sem qualquer tipo de autorização verbal, pegando nas mãos delas.

Algumas meninas também faziam isso com os meninos. Elas tomavam a iniciativa de pegar nas mãos, de tocar o outro. E confesso que quando isso ocorria eu sentia um alívio enorme, pois era sempre um peso muito grande a responsabilidade de sempre tomar a iniciativa. O risco de rejeição e de hostilização estava sempre presente e era sempre desconfortável ter que lidar com essa possibilidade.

A distinção abissal entre papéis masculinos e femininos nunca me agradou. Sempre achei ruim o fato de mulheres se esconderem o tempo todo, de esconderem constantemente seus desejos, pois isso na verdade mais dificultava do que facilitava qualquer coisa nessa vida. Isso tornava muito mais difícil o conhecimento do universo feminino, por exemplo, com todos os seus anseios, temores e desejos. Muitos meninos sentiam que as mulheres eram como portas trancadas, como flores que não haviam desabrochado, para as quais eram necessários muita habilidade e poder de enganação para fazer com que se abrissem.
Era comum se pensar que as mulheres nunca diziam “sim”. Isso porque não podiam demonstrar, não podiam expor seus desejos sexuais. Então se elas nunca diziam “sim”, o “talvez” era considerado como sendo um “sim”, e o “não” era considerado como sendo um “talvez”. E minha adolescência cansei de ver alguns rapazes tendo sucesso e sendo muito admirados entre as mulheres porque tinham iniciativa, atitude, pegada.

Há pouco mais de 10 anos, bem mais velho, já bem distante da adolescência, tive uma experiência horrível em relação a isso. Tive a infelicidade de viajar com grupo de pessoas que me hostilizaram porque eu não havia tido atitude, porque eu não havia tomado uma mulher à força. Nesse grupo de pessoas havia uma mulher para a qual estavam me empurrando. Eu havia manifestado interesse por ela para essas pessoas, e eles acreditavam que poderia de fato acontecer alguma coisa, que poderíamos ter algum envolvimento. Contudo, o tempo foi passando e nada ocorria. Eu simplesmente não sentia que não havia receptividade por parte dela. Então eles vieram me dizer de que ela gostava de homem com pegada:

- Adriano, ela gosta de homem com atitude, com iniciativa. Você tem que pegar ela à força. 

É disso que ela gosta. Se você não fizer isso, ela vai achar que você é um frouxo. Aliás, todos nós vamos sair achando isso. Seja homem, rapaz!

Eu não ouvi isso somente de homens não. Ouvi isso tanto de homens quanto de mulheres. E tentei me explicar, porém em vão:

- Ah, vocês me desculpem, mas se depender disso, nada vai ocorrer. Acho horrível esse tipo de comportamento. Acho tosco, machista, ridículo. Convivi com isso somente em minha adolescência. Por favor, não somos mais adolescentes. Me recuso a entrar nesse tipo de jogo, nesse tipo de interação.

Comunicaram isso a ela, e ela se manifestou:

- Não, não quero saber desse sujeito não... É muito nerd pro meu gosto!
Depois vieram me contar, com a clara intenção de me diminuir, que ela havia dito isso. A intenção de quem veio me contar isso era nitidamente fazer com eu meu sentisse menor, rejeitado, fora do padrão, sem valor, sem graça. O contexto todo indicava isso. Eu estava destoando daquele grupo, e minha recusa em tomar aquela mulher à força foi interpretada como burrice, frescura, covardia.

Aquele contexto todo foi muito aversivo pra mim. A partir disso foi gerado um estresse grande e totalmente desnecessário. Eu estava me sentindo um completo alienígena em meio àquelas pessoas. Os dias subsequentes foram marcados por uma série de desentendimentos, de reações em cascata, as quais culminaram em meu completo corte de relações com todos eles. Eu nunca mais quis saber daquelas pessoas. E isso, é cultura do quê?

Isso sem que eu descreva aqui, em detalhes, várias outras histórias de jogos, ou brincadeiras, que visavam submeter ou humilhar o outro por meio de toques e manipulações não consentidas, por meio de invasões do espaço corporal. Era muito comum, por exemplo, em minha infância e pré-adolescência, moleques hostilizarem uns aos outros com passadas de mão na bunda. Um passava e o outro tinha que revidar. Uma vez um sujeito desconhecido, maior e mais forte, de surpresa, veio e passou a mão em minha bunda, no meio de uma rua movimentada do centro da cidade, enquanto eu estava abaixado, retirando o cadeado de minha bicicleta. Como eu estava curvado, ele se aproveitou da posição vulnerável para fazer isso. E o que tornava a humilhação maior, e ainda mais notória, era um amigo, que estava junto comigo, rachando de rir.

E também há grupos, nas redes sociais, afirmando que todos os homens são estupradores em potencial. Se voltarmos à definição mais antiga de estupro, a qual pressupõe a penetração genital, o homens, por terem pênis, estão de fato mais próximos dessa condição, desse conceito, e não as mulheres. Porém eis, talvez, uma contradição: a definição de estupro não mudou? Se atualmente é considerado estupro todo e qualquer ato de tocar ou manipular o corpo do outro de modo não-consentido, todos nós, homens e mulheres, somos então estupradores em potencial, não?

Em minha adolescência, quando eu ainda era virgem, passei uns dias na casa da família de um amigo. Eles, todos, bebiam demais, e naqueles dias resolveram mostrar pra mim o quanto eram experientes em tudo nessa vida. Dois de seus tios, um homem e uma mulher, estavam alarmados com minha virgindade, com o desperdício de tempo e de beleza. O que não faltava era a conversa mole de que eu precisava logo comer alguém.

Uma de suas tias, inclusive, não perdeu tempo. Tendo percebido que estava a sós comigo, foi logo passando as mãos em minhas pernas, em direção ao pênis, tentando pegá-lo. Defendi-me como pude e fiquei muito constrangido. E esse também foi outro passeio no qual me senti um ET e com vontade de ir embora, pois o fato de nunca ter comido ninguém fazia de mim uma pessoa menor. Um outro amigo, aquele mesmo que riu da passada de mão na minha bunda alguns anos antes, sabendo disso, e sabendo que eu não soube o que fazer, tentou me iluminar:

- Se você tivesse reagido de outra forma teria deixado ela constrangida. Tinha que ter pegado a mão dela e colocado logo em cima do seu pau. Tinha que ter partido pro pau, se mostrando mais agressivo do que ela. Assim, em algum momento, ela iria se assustar e recuar.

Na época até eu achei a sugestão dele genial, pois eu via que ele, com sua agressividade, iniciativa e atitude, sempre conseguia sair por cima. Mas agora, nesse exato momento, cai a minha ficha: isso é novamente a tática de se combater um estupro com outro estupro.

Enfim, todos esses episódios narrados por mim são violentos. Se desejamos construir uma sociedade menos violenta, e com menos estupros, os eventos e as concepções, dos quais falei acima, devem ser combatidos. Se sabemos que essas atitudes e visões de mundo devem ser combatidas, qual é o sentido de ficarmos brigando para demonstrar se existe ou não uma cultura, predominante, do estupro, em nossa sociedade? O combate pode ser mais pragmático, com a avaliação de cada ato, de cada comportamento. Talvez não seja necessário haver um juízo final disso tudo, o qual resume e julga definitivamente a sociedade e a cultura brasileira.

* Texto de Pedro Sampaio:
https://www.facebook.com/pedsampaio/posts/1207332242619199?pnref=story

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