Primeiramente, um recado pra quem é contra a legalização do aborto:
Você vai ajudar a criar e educar essa criança que não está sendo desejada? Coloque-se no lugar da mulher que não está desejando ter um filho, que não se sente em condições de ter essa criança, sendo obrigada a gestar por 9 meses e a parir.
É um processo muito longo e delicado para alguém que não está se sentindo em condições de mergulhar nessa jornada. É um ser da espécie humana que está para chegar e ele precisa ser muito bem recebido. Tudo isso precisa ser preparado com muito amor e dedicação. É por caso você quem vai passar por todas as dificuldades de uma gravidez? Você vai estar lá na hora do parto dessa mulher? Vai ser você quem vai sofrer todas as dores e percalços envolvidos numa gravidez e num parto, e com todas as obrigações de se criar um filho, para o resto da vida?
Agora multiplique essas dificuldades. Transforme-as em algo muito maior. Imagine se há uma possibilidade significativa de que essa criança tenha microcefalia ou se no ventre materno ela já tenha o diagnóstico de microcefalia. Se uma mãe não está se sentindo em condições de ter essa criança por que você acha que ela obrigatoriamente deve tê-la? Você acha que vai ser bom para o futuro dessa criança e dessa família o fato de que ela simplesmente não está sendo desejada?
E também, por favor, tome cuidado antes de ir logo rotulando esse tipo de reivindicação em relação aos direitos humanos como eugenia, como se um rótulo como esse fosse simplesmente suficiente para se encerrar a discussão. Eugenia diz respeito à eliminação de pessoas com algum tipo de deficiência, com o objetivo de melhoria genética da espécie. Tem, portanto, objetivos relacionados a um plano coletivo, os quais geralmente são colocados em prática por meio de coerção, de imposição. A moral eugenista ordena que os deficientes ou os mais fracos sejam eliminados, mesmo contra a vontade das mães dessas pessoas.
Quem é a favor da legalização do aborto está somente reivindicando um direito individual. Não está dizendo que obrigatoriamente os fetos com microcefalia devem ser abortados para o bem da humanidade. Isso seria eugenia, do modo como as pessoas logo entendem e se horrorizam. E não é isso o que está sendo reivindicado. Rotular de eugenista, acreditando que isso basta para refutar os argumentos de quem é a favor da legalização do aborto, é falacioso.
Mas você pode responder que uma das soluções seria facilitar a adoção nesses casos. Mas quem disse que essa mulher quer passar por tudo isso e depois entregar seu filho para terceiros que ela nem conhece? Você passaria por tudo isso para depois entregar seu filho para terceiros que você nem conhece?
Encerro com um texto de Heloisa Salgado, psicóloga, pesquisadora em saúde materno-infantil e direitos sexuais e reprodutivos, colega de 20 anos atrás, da época em que fiz em psicologia na USP:
“Sinto muitíssimo se alguém vai ficar chocado ou indisposto - é que eu sou completamente a favor de uma mulher que, ao descobrir que está gestando um bebê com microcefalia, independente de sua idade gestacional, tenha o direito de interromper esta gravidez.
Nenhuma mulher deveria ter negado o seu direito de decidir privar um filho de sofrimento.
Nenhuma mulher deveria ter negado seu direito de decidir privar a si e a todos em seu entorno do sofrimento por ter um bebê/criança/adulto portador de microcefalia.
Nenhuma mulher deveria ser obrigada a ter um bebê com uma má-formação tão grave e que, me desculpe, tem muitas explicações e nenhuma delas passa por questões religiosas ou espirituais. Pelo contrário. A saúde pública está aí para explicar.
Escolher interromper uma gestação de um bebê acometido por síndrome tão severa não é crime, ainda que a arcaica legislação brasileira insista em colocar nesses termos. E também não é egoísmo. É simplesmente empatia e respeito para com os limites e possibilidades individuais de cada um de nós.
Caso ainda tenha dúvidas de que a microcefalia leva a sofrimento, favor pesquisar os danos que a microcefalia causada pelo Zika vírus causa no cérebro e, consequentemente, no desenvolvimento global de uma pessoa.
Agora, se você tem relatos de casos de sucesso e de “não-sofrimento” de famílias e crianças acometidas pela microcefalia, por favor, comemore! Que bom que esse bebê/criança/adulto que possui a síndrome tenha nascido e ido para os braços dessa família que conseguiu acolhê-lo e dar todo o amor e o suporte necessários para conviver com suas dificuldades e limitações. No entanto, lembre-se de que somos todos diferentes e que não dá para usar a mesma régua para medir o sentimento, as possibilidades e os recursos (físicos e emocionais) de pessoas diferentes.
Ressalto que a única coisa que nunca, jamais, em hipótese alguma deveria acontecer é que pessoas que tenham decidido interromper a gestação de um bebê acometido por microcefalia - após ter sido devidamente informadas da situação e das consequências de sua decisão - sejam julgadas.
Lembrem-se: alguém que fez escolhas a partir de sua própria realidade, de sua história de vida e de seus limites e possibilidades, considerando uma tragédia tão grande como essa que estamos vivendo, merece nosso carinho, nosso respeito, nossa solidariedade e nossa compreensão."
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