Thursday, December 29, 2016

Doenças inflamatórias crônicas e miopia (o estado da arte)

Uma série de achados científicos recentes vem apontando para o fato de que existem doenças próprias às sociedades urbanas e industrializadas. As doenças inflamatórias crônicas e a miopia são um bom exemplo desse tipo de enfermidade.

A prevalência de miopia, nas sociedades urbanas e industrializadas, tem aumentado bastante nos últimos 50 anos e isso demonstra o quanto os fatores ambientais também são importantes na determinação desse tipo de distúrbio. Portanto, atualmente tem ganhado força a teoria de que a miopia é resultante de uma interação complexa entre predisposição genética e exposições ambientais.
As pesquisas mais recentes têm demonstrado que os fatores mais intensamente correlacionados à miopia são ambientes fechados e pouca luz natural, do sol.

A lista de doenças inflamatórias crônicas, por sua vez, é bastante extensa. Nela estão várias doenças das quais padecemos atualmente. Nessa lista estão incluídas as doenças de caráter alérgico e autoimune e talvez muitas outras que apresentam processos inflamatórios crônicos.

Somente para se ter uma ideia, eis uma lista das mais notórias: asma, bronquite, espondilite anquilosante, artrite, aterosclerose, doença de Crohn, retocolite ulcerativa, colite, dermatite, diverticulite, fibromialgia, síndrome do intestino irritável, lúpus eritematoso sistêmico e esclerose múltipla.

Em uma das maiores e mais recentes revisões científicas sobre o tema, a qual foi publicada em 2012, os autores escreveram assim:

“Embora os fatores genéticos tenham seu papel, a teoria imunológica atual foca na interação desses fatores com as exposições precoces e isso, em alguns indivíduos, resulta em uma desregulação do sistema imunológico.” (1)

Ou seja, há fatores genéticos, porém a interação precoce com o ambiente é também fundamental. E essa interação começa antes do nascimento, ainda em nível intrauterino, e se estende para a infância, durante a formação do sistema imunológico.

Nas sociedades urbanas e industrializadas ocorreu um processo de empobrecimento do microbioma: o ambiente urbano é microbiologicamente pobre. A diversidade de espécies de micróbios no meio urbano é menor do que nas regiões de matas e nos meios rurais que cultivam criações de animais. Então a redução da exposição a biomas mais diversificados (incluindo aí os microbiomas) seria um dos determinantes fundamentais dessa desregulação de nosso sistema imunológico e, consequentemente, do aumento da incidência de certas doenças inflamatórias.

Essas correlações começaram a ser estabelecidas a partir da investigação das doenças atópicas (provocadas por uma reação alérgica causada pela ativação da imunoglobulina E - IgE). Mas agora essas correlações tem sido observada em outras doenças tais como: “asma, a maioria dos tipos de artrite, doenças inflamatórias intestinais como colite ulcerativa e doença de Crohn, distúrbios neuroinflamatórios como a esclerose múltipla, aterosclerose, diabetes tipo 1, a depressão associada com o aumento de citocinas inflamatórias, e alguns tipos de câncer.” (1)

Portanto, de acordo esses achados científicos, se você quer tentar prevenir distúrbios como a miopia e as doenças inflamatórias crônicas em seus filhos, existem algumas medidas simples que podem ser tomadas, e que talvez eficazes.

No caso da miopia talvez seja válido estimular que crianças e adolescentes realizem mais atividades, durante o dia, ao ar livre, pois a luz do sol e ambientes abertos talvez possam ter um papel preventivo.

Por sua vez, para a prevenção de doenças inflamatórias crônicas, é importante saber que sua incidência é menor:

1. Em pessoas cujas mães, durante a gravidez, tinham verminose ou moravam na zona rural (com criação de animais). E boa parte dessas pessoas, livres desse tipo de doença, nasceram e cresceram em zonas rurais que têm criação de animais (de preferência de várias espécies).

2. Em populações que moram em zonas de mata ou bem próximas dessas zonas.

3. Em pessoas que pouco fizeram uso de antibióticos durante a vida.

4. Em pessoas com índices adequados de vitamina D, o que nos relembra novamente da importância dos banhos de sol, os quais são a melhor fonte para a síntese dessa vitamina.

5. Em pessoas com verminoses leves.

6. Em quem teve parto normal (vaginal) e teve amamentação para além dos seis meses de idade.
Abaixo uma das maiores e mais recentes revisões científicas sobre o tema, a qual foi publicada em 2012:


Portanto algumas medidas simples podem ser tomadas, com o intuito de tentar prevenir, ou diminuir os efeitos de algumas dessas doenças.

No caso da miopia, se você deseja atuar para tentar preveni-la em seus filhos, é importante a exposição precoce (na infância) ao sol e a ambientes abertos. Ou seja: é importante deixar que seu filho brinque, muito, fora de quatro paredes, fora de casa. Luz natural, do sol, e ar livre: eis os ingredientes.

Abaixo um artigo científico e uma reportagem da BBC sobre o tema:


A paz e o espírito

Desculpe-me, mas se você acredita em espiritualidade, em espírito, e que este se opõe à matéria, a esse mundo, não faz o menor sentido pedir nada, pra Deus, que não seja paz - se é que é possível se pedir alguma coisa pra Deus.

Se a espiritualidade ou o espírito transcendente existem, e em oposição à matéria, seu único porto, pilar, base ou fundamento, talvez seja mesmo a paz. Desse modo não faz sentido nem mesmo pedir pela cura de uma doença fatal, e muito menos por mais dinheiro ou bens de qualquer espécie. O exercício da espiritualidade deve almejar a superação dos determinantes materiais e corporais: a paz, nesse caso, não seria simplesmente o último refúgio do espírito, mas sim a sua única morada.

Ariano Suassuna e a esperança

"O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso." (Ariano Suassuna)

Mas, Ariano, a esperança é uma bosta:

“Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a esperança em último lugar, por considerá-la o mais terrível de todos." (Albert Camus)

“O que é a esperança? É um desejo que se refere ao que não temos (uma falta), que ignoramos se foi ou será satisfeito, enfim cuja satisfação não depende de nós” (...)

"Esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar. O sábio não espera nada. Não que ele saiba tudo (ninguém sabe tudo), nem que possa tudo (ele não é Deus), nem mesmo que ele seja só prazer (o sábio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa além do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele não deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito - já que o real, por definição, nunca falta: o real nunca está ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, é então uma alegria plena, que não carece de nada. É o que se chama felicidade." (...)


“Só esperamos o que não temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade (“Como eu seria feliz se...”), não podemos escapar da decepção... É o que Woody Allen resume numa fórmula: “Como eu seria feliz se fosse feliz!” " (Comte-Sponville).

Referência:
Comte-Sponville, A. (2001). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes

Saturday, December 24, 2016

"Japonês do Japão prova rodízio japonês do Brasil"

Está circulando um vídeo em que um japonês, do Japão, come em um rodízio de comida japonesa, no Brasil, e na maioria das vezes ele simplesmente cospe tudo, achando um horror, um nojo.

Eu é quem achei esse vídeo um nojo, e nem consegui assisti-lo até o final. Uma vez assisti a uma entrevista com um dos maiores pesquisadores acadêmicos (de universidade mesmo) do Japão na área de culinária japonesa, e esse pesquisador deixou uma coisa clara: é bom que o sushi ou a culinária japonesa se espalhe pelo mundo conforme as características de cada lugar, que cada um faça ou recrie o sushi como achar melhor.

A maneira como o brasileiro come sushi é somente a maneira como o brasileiro come sushi. Só isso. Menos etnocentrismo e mais tolerância e respeito pelas diferenças culturais, por favor.

Se um gringo tenta dançar samba é porque ficou admirado com algum aspecto de nossa cultura. Não faz o menor sentido ficarmos debochando de alguém que nos admira e respeita, assim como também não faz muito sentido você ficar se vangloriando por ter assistido a um programa, em algum restaurante japonês caríssimo, o qual caga regra de como exata e especificamente deve ser feito e comido o verdadeiro sushi.


Porque no final das contas é bem simples: o verdadeiro sushi é o sushi que cada um gosta de comer.

Qual é o sentido?

O sujeito estava passando na rua e, azar, um ladrilho, um único ladrilho, em anos, solta do reboco, cai na sua cabeça e ele morre.

Foi por acaso, sem causa? De forma alguma.

E por que isso foi ocorrer justamente com esse coitado que estava passando na rua?

Porque era ele que estava passando ali no momento.
Isso explica? Explica.


Isso nos consola? Não. Isso não nos consola e não tem sentido. É como a vida: não tem sentido. Se quiser, cada um que crie o seu...

Wednesday, December 21, 2016

"O que é Deus pra você?"

Hoje os usuários do CAPS, de meu grupo, quiseram falar de Deus. Uma das usuárias tomou a frente, e liderou essa atividade, proposta por eles mesmos.

Como ela sofreu algumas perdas muito dolorosas em sua vida, contou-nos que, após essas perdas, passou a não entender como seria possível a existência de algo como Deus (onipotente e absolutamente bom) a permitir a existência de tanta injustiça e sofrimento.
Após declarar isso, o discurso dela sofre um revés, e ela fala que já está recuperando sua fé, porém agora em outros moldes. Mas ela ainda parece ter várias questões sobre o que seria exatamente Deus pra ela, se ele seria algo muito similar a uma pessoa ou se ele seria simplesmente "energia" ou coisa parecida.

Tendo feito suas digressões sobre o tema, ela lançou uma pergunta para todos os presentes: "O que é Deus pra você?".

E ela queria muito que eu também dissesse, a todos ali, o que é Deus pra mim. Aliás, houve também uma certa pressão de todos os presentes para que eu também participasse. Estavam muito curiosos em saber o que eu pensava sobre isso.

- Se eu disser que Deus pra mim é a origem e o fim de tudo, a razão do universo e a substância primordial do amor, como vocês se sentiriam?

A maioria quase que absoluta respondeu que se sentiria muito bem ouvindo isso de mim.

- E se eu dissesse pra vocês que Deus, pra mim, não é porra nenhuma?

A maioria quase que absoluta disse que não se sentiria nada bem em ouvir isso de mim.

- E se eu dissesse a vocês que eu gostaria muito, que eu acharia maravilhoso que Deus existisse, que alguém de fato pudesse cuidar de nós, como vocês se sentiriam?

A maioria disse que seria muito tranquilo ouvir isso de mim.

Enquanto eles debatiam, rapidamente puxei algumas palavras de Clarice Lispector:

"Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o. amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar."


Senti que a situação exigia delicadeza e vínculo, com um nível um pouco maior de reciprocidade, e não simplesmente uma abstinência que instala algumas porções de deserto entre as pessoas. Senti-me mais próximo deles, e espero que também tenham se sentido mais próximos de mim. No final, após termos aprofundado a questão, segundo as possibilidades e limites de nosso contexto, um número maior de usuários, do que de costume, veio me abraçar...

Cuidado com seus desejos (texto de 2007)



 Há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando o são.

George Bernard Shaw


Boa parte de nossos dramas existenciais e da conquista de bem-estar psicológico podem ser relacionados ao modo como lidamos com nossos desejos. Há quem pregue a completa renúncia ao desejo. Afirmam que nele estaria a fonte da infelicidade. Neste caso, em tese, só desejamos aquilo que não possuímos. Logo, ao obter o que desejávamos, já não o queremos mais. O que nos incluiria em um ciclo de perpétua geração da insatisfação. Esta só existe se há desejo. Se há insatisfação, infelicidade, elas geralmente existem porque algum desejo não foi satisfeito.

A felicidade, ou a alegria, seu representante elementar, são frutos da realização de desejo. Se alguém está alegre ou feliz é porque algum desejo foi ou está sendo satisfeito. Portanto, neste contexto de argumentação, a afirmação de que renúncia ao desejo seria um caminho para a felicidade é insustentável. Na verdade, o foco deve ser mantido no modo como desejamos. Não se trata, em termos absolutos, de haver desejo ou não. Pois o desejo é o motor. É ele, de certo modo, quem nos mantém vivos. Sem desejo não há ação.

Segundo Luc Ferry (2007), a sabedoria antiga, por meio da escola estóica, nos ensina muito acerca da temperança e da resignação: desejar somente aquilo que dependa diretamente de nós; jamais despender energia e esforços para com o que é improvável; e, no eixo do tempo, não lamentar passado nem esperar nada do futuro. Ao invés de esperar, agir, e no agora. Há um foco na ação e no presente. Os estóicos concebem a esperança e a nostalgia como verdadeiros atrasos de vida. Devem ser expurgados de nossa existência. “Não chorar o leite derramado"; não criar expectativas demais”; “não viver em função de passado nem de futuro”: é mais ou menos nestes termos que estas questões são expressas pelo senso-comum.

Da minha leitura de autores que escreveram sobre o desejo, fica uma formulação, um valor que procuro também adotar para minha própria vida. Tento sintetizar, da forma mais simples possível (ou até simplória – talvez seja o caso), um imperativo moral no seguinte enunciado:

“Desejar mais o que já se tem e menos o que ainda não tem”.

A primeira é a classe dos desejos imediatamente possíveis. E a segunda é a classe dos desejos prováveis. Colocados na balança de nossa vida, é mais prudente que existam, em maior peso e número, os imediatamente possíveis. Esta classe diz respeito a tudo aquilo que desejamos e que pode ser imediatamente realizado. É desejar o que já se tem. É desfrutar de tudo aquilo que já possuímos. É dar valor ao que temos. Eis a gratidão, como uma virtude, e sua importância.

Os jargões populares “só dá valor quando perde” e “não dá valor ao que tem” traduzem de certa forma o erro: desejar somente o que não possuímos, deixando de lado toda uma vida possível e palpável, a qual poderia ter sido desfrutada e não foi. Sinto da seguinte maneira: não é necessário abandonar nossos sonhos. Mas é muito pouco saudável viver somente em função deles, sacrificar nossas possibilidades de fruição e prazer imediatos em prol de castelos no ar.

E o que seria desejar o que já se possui? Muito simples. É desejar o que é imediatamente possível. Por exemplo: desejo chegar hoje em casa e tomar um bom e relaxante banho; desejo comer lasanha no almoço; desejo, após o almoço, tirar uma boa soneca; desejo agora estar aqui, escrevendo este artigo, e estou. Nada disso é simplesmente provável. São eventos que estão imediatamente ao meu alcance. E não dependem predominantemente de terceiros ou sorte. Lembro de Sartre dizendo coisa parecida: se depende dos outros ou da sorte, então desista e vá dedicar sua energia em algo mais útil.
É a tristeza do torcedor, do fã, dos idólatras como um todo. É remoer-se por algo que não depende de nossos próprios esforços. É colocar todas as fichas de nossas apostas vitais em algo que está fora de nós mesmos. É abrir mão de nossas responsabilidades e de tudo o que podemos fazer por nós próprios, na esperança inútil (sempre inútil, segundo alguns autores) de que algo decisivo aconteça, de que alguma graça caia do céu.

Há, porém, distinções e sutilezas existentes entre os conceitos de desejo, vontade, e esperança, por exemplo, que ser realizadas. Segundo Comte-Sponville, em seu belo ensaio “A felicidade, desesperadamente” (2005, p. 60), pode-se desejar o que depende de nós (vontade) e o que não, de nós (esperança). Diz que toda esperança é um desejo, mas que nem todo desejo é uma esperança. Pois é possível desejar o que já possuímos, o que é imediatamente possível. E isto seria o que ele chama de “felicidade em ato”. Mais bem-estar significa mais felicidade em ato e menos felicidade em potência no balanço de nossa vida.

Seria tirar a vida do condicional, do “como eu seria feliz se isso ou se aquilo”. É fazer o que se tem vontade, o que se gosta, aqui e agora. O que se pode fazer e não o que se poderia fazer. Tirar proveito, prazer, de tudo o que já temos, por mais simples que seja. Uma sabedoria da simplicidade, dos pequenos prazeres da vida, muitas vezes.
Comte-Sponville defende que a conquista da felicidade se dá por meio de um “alegre desespero”. E o sentido palavra desespero, neste caso, remete à ausência de esperança, a qual ele, e boa parte da história da filosofia, repudiam. Neste sentido, ter esperança, esperar, (ou seja, desejar o que não depende de nós mesmos) é desejar sem gozar, sem poder e sem saber. Sem gozar, pois não que desejamos. Sem poder, pois não que desejamos e nem somos capazes para tal. E sem saber, pois nosso desejo é somente uma aposta à derivar pelo oceano do acaso, na crença de uma fortuna remota.

A esperança – ao contrário da vontade, a qual está centrada na ação e em objetivos mais concretos e imediatamente possíveis – é um desejo miserável. Não consigo deixar de ver relação com o dito “sonhar alto”, o qual não vejo com bons olhos. Logo sinto o cheiro de megalomanias, adolescência ou o mercado da venda do sucesso no ar. Não que sonhar alto seja condição para realizar o que quer que seja. E em muitos casos, como nas manias, o preço do sonhar alto é a negação da realidade mais imediata e concreta. Há desprezo pelos passos mais próximos, pela humildade de saber se colocar na realidade, e um desespero sentido de aflição em pular etapas. Como se pudéssemos viajar sem percorrer qualquer caminho.

Tive um paciente acometido por megalomanias. O que mais fazia era sonhar alto. E quanto maior o sonho, maior o tombo, se este não for realizado. Maior a frustração. E quanto maior for esta, mais sólida terá de ser a estrutura do sujeito para o fracasso, para a perda, pois maior é o luto a ser justamente elaborado, o que não costuma ocorrer com quem sonha alto demais, com os megalômanos. Eles sonham alto para se esconder, para fugir do peso da realidade. E ficam presos a um ciclo vicioso. Seus castelos no ar se desmancham e caem no fundo do poço da frustração. E voltam a sonhar alto, porque é isso, no seu modo de funcionamento, o que lhes resta.

Desejando avidamente tudo o que não possuem, tudo o que está distante, tropeçam no passo mais próximo. Aliás, a avidez, o excesso de energia que concentramos em um único ponto de nossos desejos, é também geralmente nefasta. Jargão popular: “não ir com muita sede ao pote”. Em muitos casos uma atitude mais desprendida e desapegada do objeto de desejo é mais salutar.

Porque a avidez é irmã de uma ansiedade contraproducente, a qual atropela ou violenta o objeto de desejo, em vez de conquistá-lo. Bota o carro na frente dos bois. É mãe de uma impetuosidade viciosa. É a voracidade que não saboreia, o desejo intenso que é inimigo da espontaneidade, pois é mistificação excessiva, tornar fetiche o que não se possui. É desejar possuir antes de conhecer. O ter antes do saber. E talvez uma desesperada paixão pelo êxito.

Então, retomando o título do artigo: “Cuidado com seus desejos. Você pode realizá-los.” Este é o dito popular em sua forma completa. Porém, pode haver diferentes apropriações do mesmo. Pode-se compreendê-lo pelo viés da capacidade, do sucesso, ou mesmo da decepção. O primeiro sentido seria: você é capaz de realizá-los. Ou: a possibilidade de realização é maior do que você imagina. Acaba atuando como uma forma poética ”de estimular o desejo, o sonho, ou a aposta.“

E na verdade é isso o que o mercado do sucesso, da auto-ajuda, em boa medida, faz: cria legião de apostadores. Vive de vender apostas. De estimular o comportamento de jogo, de aposta. “É necessário desejar (pois assim o universo conspira a favor”), sonhar, acreditar, ter fé, esperança, pensar positivo”.

O segundo sentido refere-se à possibilidade de realização, mas levando-se em conta também a possibilidade da decepção. E este seria o segundo tipo de catástrofe que acomete a existência: quando nossos desejos são satisfeitos. E é para o que chama atenção a frase de Bernard Shaw.

Muitas vezes, devido a avidez ou ambição excessivas, criamos tantas expectativas em relação à realização de determinados desejos, que nos esquecemos de todo o restante da vida. Passamos a habitar as nuvens e assim deixamos de viver. E nos esquecemos também que frustrações e decepções não são somente frutos do fracasso. Elas podem surgir da simples percepção de que nossos objetos de desejos não são tão fabulosos quanto nossa sede os fazia parecer. Porque a idolatria quase sempre desemboca na decepção. O olhar faminto adultera e diviniza o objeto da fome. Assim, o desejo, o sonho, é traduzido em necessidade vital (com o perdão do pleonasmo).

É este mesmo o mecanismo: transformar o sonho em algo vital; e a probabilidade em certeza. O sonho realizado ou a morte. E assim muitos sonhadores deixam de viver, para viver sonhando.

Referências

Comte-Sponville, A. (2004). Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins Fontes.
__________________ (2005). A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes.

Ferry, L. (2007). Aprender a viver. São Paulo: Objetiva.

Wednesday, December 07, 2016

Dicas de português

Em duas frases curtas, e geniais, algumas dicas de português e um pouco de humor:
"O mau, educado, não é bom."
"Se você me desse a tarde, eu alegremente a trocaria por uma crase."

Tuesday, November 08, 2016

Olho azul

Duas crianças aqui no condomínio onde moro fizeram comentários engraçados (ou até um pouco tristes, talvez) sobre a cor dos olhos de minha filha:

- Eu tenho inveja dela - disse um menino de 8 anos de idade.
- Nossa, por quê?

- Porque ela tem o olho azul. Tomara que mude...

- Eu queria ser ela - disse o outro, de 6 anos de idade.

- Como assim? Por que você queria ser ela?

- Ah, eu queria ter o olho azul. Eu nunca tive olho azul...

Maiêutica com crianças

A maiêutica é uma técnica fecunda, poderosa para a produção de conhecimento, e também muito divertida. Isso é facilmente observável na interação com crianças.

Ontem eu estava no parquinho do condomínio, com minha filha, e três crianças dialogavam como se fossem adultas: duas com 6 anos e outra com 9 anos de idade.

- Passou agora no Jornal Nacional: o Estado Islâmico invadiu duas cidades - dizia o menino de 6 anos.

- E quais cidades o Estado Islâmico invadiu? - perguntei.

- Invadiu duas cidades dos Estados Unidos.

- O que é o Estado Islâmico?

- Eles são terroristas!

- O que é terrorista?

- É gente que mata as pessoas.

Como fiz muitas, e outras perguntas além dessas poucas que transcrevo aqui, como se eu não soubesse absolutamente nada a respeito do que eles estavam conversando, o de 9 anos me indagou:

- Poxa, tio! Você não sabe nada!

Jogou um chinelo no chão e me perguntou o que era aquilo, e eu prontamente respondi que era um chinelo:

- Pô, pelo menos isso você sabe né, tio... Pelo amor de Deus!

- E por que o nome é Estado Islâmico? Se eles são terroristas e matam pessoas, o nome teria que ser Estado Matador, não?

Ficaram um tempo meio atônitos, sem conseguir me responder. O mais velho continuava intrigado com minha aparente ignorância:

- Poxa, tio, você faz cada pergunta...

Até que o menino de 6 anos teve um brilhante insight:


- É islâminico, tio, por causa de lâmina. Eles cortam as pessoas!

Wednesday, November 02, 2016

"Tá podre" (uma história do livro "Eu vou hipnotizar você...")

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Certa vez, em sala de aula, expondo os motivos pelos quais Freud havia abandonado a técnica da hipnose, dispus-me a fazer uma demonstração. Até aquele dia eu havia tentado inúmeras vezes, por anos a fio, mas sem sucesso. Disse aos alunos que era uma técnica muito cansativa e que era muito difícil hipnotizar as pessoas, que a maioria não era hipnotizável. Ou seja, eu estava não somente falando de minha experiência, mas também do que Freud havia relatado há cerca de um século atrás e dos dados científicos consolidados sobre suscetibilidade hipnótica. 

Eu havia aprendido os fundamentos com meu irmão mais velho, o dentista. E tentara, assim como ele, em vão, hipnotizar amigos e familiares. Não tínhamos qualquer reflexão ou concepção teórica sobre o assunto. Como ele havia sido uma excelente cobaia em meio aos dentistas com os quais fizera o curso de hipnose, alimentávamos a expectativa de que poderíamos obter os mesmos resultados com qualquer outra pessoa. Ele havia sido um excelente sujeito para a demonstração de anestesia hipnótica. Seu professor e colegas espetaram agulhas por todo o seu corpo. E esta é geralmente uma espécie de demonstração derradeira, a mais convincente. Uma coisa é fingir alucinações e delírios, outra, bem mais difícil, é a capacidade de continuar fingindo, mesmo diante de estímulos dolorosos. 

Havia, para nós, alguma realidade na hipnose. Porque, senão, Edu, bom cético que era, teria sido o primeiro a rejeitá-la. E pelo contrário, lá estava Edu sendo trespassado por agulhas em diversas partes de seu corpo. Dando seu valioso testemunho, prático e vivo, de algo fenomenal. 

Porém, saindo da dimensão de excelente sujeito para a hipnose que era Edu, a coisa ficava bem menos convincente. Era tentar hipnotizar, a quem quer que seja, e os resultados eram sempre bem mais modestos e frustrantes. Nesse aspecto, pelo menos, o determinante mais evidente não é técnica de indução hipnótica, mas sim o próprio sujeito que a ela se submete. Dispondo de sujeitos facilmente hipnotizáveis, basta pedir que se concentrem e todo o processo assim se desenrola. 

Mas, e se estes sujeitos, tidos como facilmente hipnotizáveis, não tiverem tido qualquer espécie de treinamento hipnótico? Iogues, por exemplo? O que dizer deles? Possuem outros métodos de concentração, os quais podem não ser exatamente os mesmos que nós ocidentais chamamos de hipnose. Ou poderiam ser vistos como fundamentalmente os mesmos? Se forem os mesmos, a hipnose não é a única via para se obter determinados estados de consciência. Neste caso, ela perde sua aura de técnica única, exclusiva, especial. Por outro lado, se os fundamentos forem os mesmos; ou seja, se tanto hipnose quanto ioga, por exemplo, possuírem os mesmos fundamentos técnicos, ela (a hipnose) não representa nada de novo e nem de especial também. 

Se é diferente, mas obtém os mesmos resultados que outra coisa já existente, porém mais simples e acessível, por que seria mais vantajosa? E se compartilha dos mesmos fundamentos técnicos, por que tratá-la como absurdamente diferente? Qual é a função de se fazer a mesma coisa que os outros e, contudo, dar um nome diferente? Sim, não podemos esquecer que existem histórias diferentes. Ioga e hipnose nascem em contextos totalmente diferentes e suas especificidades devem ser resguardadas. Porém, por outro lado, perceber semelhanças em seus fundamentos técnicos pode também, por meios comparativos, ajudar a compreender melhor estas práticas. 

Porém, não há como negar, tanto hipnose quanto ioga são muito mistificadas. A ioga está tradicionalmente mais próxima de práticas religiosas. A hipnose, por outro lado, volta e meia aparece e reaparece reproduzindo mitos dentro até mesmo do próprio universo científico. Chega com pose de ciência e quebra as pernas de muitos pesquisadores, expondo feridas metodológicas e confusões conceituais. 

O hipnotista ordena e o hipnotizado realiza o que é ordenado. Esta talvez seja ainda uma boa definição: pertinente, objetiva e simples. Ainda não é possível dizer exatamente o que se passa na cabeça dos hipnotizados. Se estão somente colaborando ou se há mesmo significativas alterações de consciência. Há teorias e evidências em ambas as direções. Ainda não há consenso científico. 

Por que Freud abandonou a hipnose? Este era o tema da aula que comecei a relatar no início. Vamos então aos motivos de Freud: 

1. A hipnose não mais servia aos seus objetivos específicos. Sua intenção era recuperar memórias esquecidas, recalcadas. Percebeu que a hipnose deixava os pacientes em um estado muito primário de funcionamento mental. Fantasias eram produzidas em profusão, o que facilitava a produção de falsas memórias. 

2. A hipnose tinha se transformado para Freud em uma técnica muito cansativa. Não tinha mais paciência para ficar repetindo comandos indefinidamente, com o objetivo de fazer com que adultos “dormissem”. Tinha dificuldade em hipnotizar todos os pacientes, além de não concebê-la como uma ferramenta eficaz em termos etiológicos. Ou seja, além de não servir ao seu propósito principal (a recuperação de memórias), era também enfadonha. 

Sua dificuldade em hipnotizar todos os pacientes é atestada pelas pesquisas de suscetibilidade hipnótica. Somente cerca de 15% das pessoas são facilmente hipnotizáveis. Para o restante, a maioria, é necessário mesmo uma certa dose de paciência. 

Minhas idéias sobre a hipnose, até aquele dia, naquela aula sobre a relação de Freud com esta técnica, era totalmente endossada pelos argumentos do pai da Psicanálise. 

“Mas, a hipnose, professor? Existe mesmo?”, perguntavam alguns alunos, mortos de curiosidade. 

“Vocês querem fazer um teste? Podemos realizar um teste. Quem se dispõe a ser sujeito de alguns testes?”, indaguei. 

Um aluno levantou a mão. Era um rapaz muito jovem. Tinha menos de 20 anos de idade. Cursava o terceiro semestre e sempre aparecia com perguntas ora muito suaves ora constrangedoras, muitas vezes ingênuas e até pueris. 

Fiz tudo o que recomendam os mestres e manuais da área, com paciência e perseverança. Em um determinando momento, depois de muito relaxamento, pedi para que ele me dissesse o que estava vendo. Disse que não via nada, que estava escuro. 

“Então acenda a luz”, sugeri, buscando estimular sua imaginação. 

“Acendeu” e começou a descrever onde estava. Estava em casa, lendo. Pedi para que me descrevesse tudo o que estava fazendo e onde estava. 

Passado um certo tempo, resolvi fazer alguns testes, sugerir algumas imagens e sensações. Em um determinado momento peguei um estojo de lápis, feito de borracha, e ordenei que o comesse, pois era uma maçã. O rapaz morde o estojo e o arremessa ao chão. Pensei: falhou novamente! Ele obviamente percebeu que não é uma maçã. Eu sabia! Eu e Freud, juntos, não poderíamos estar duplamente enganados. 

“O que houve?” 

“Tá podre!”, respondeu. 

Sim, para meu espanto e de todos os presentes, ele se comportava tipicamente como alguém hipnotizado. 

Quem observava, como costuma ocorrer neste tipo de situação, ficou perplexo. A partir deste momento, o entendimento do que pode ou não estar ocorrendo geralmente fica comprometido. Os eventos podem se suceder de modo inusitado. Algumas pessoas parecem perder o controle. Podem falar ou agir de modo bizarro. E é exatamente isso o que acho de interessante nas induções hipnóticas. 

“Quanto mais bizarra é uma experiência, mais proveitosa ela é”. Conheço esta frase, deste modo, há muito pouco tempo. Mas manifestações bizarras sempre me despertaram grande interesse. O diferente, o inusitado, abrem novas perspectivas. São rupturas de padrão, fluidez. Abrir-se para o que é estranho é parte importante de um processo de exploração que se expõe a novos horizontes, mesmo que ainda não dotados de sentido. 

Um colega meu dizia assim: “o ridículo move o mundo”. E sempre compreendi da seguinte maneira: agir sem medo de errar, de ser diferente. Assumir nossos próprios defeitos e deles tirar algum proveito. Daí meu apreço pelas formas inusitadas, pelo nonsense, pelo bizarro. Novas formas de expressão e, portanto, de compreensão também. Novas alternativas, brotadas da loucura. 

Dou valor ao insólito, ao bizarro, na proporção de uma crença que carrego há um certo tempo: a crença no poder da expressividade. As psicoterapias, de modo geral, e as artes, como um todo, possuem esta crença: expressar e, brincar, curam. A expressão é curativa. E o que seria expressar bem? Não seria esta a principal tarefa das artes, expressar melhor? Ou de formas alternativas, que possam abrir novos horizontes de compreensão e, portanto, de solução para uma infinidade de dilemas humanos? 

Vejo a hipnose como um tremendo recurso expressivo. Acerca disto, para mim, não há qualquer questão. Muito freqüentemente expressões inusitadas ou mais intensas são despertadas. Possui um significativo valor catártico. E a catarse, a purgação dos afetos, a qual é popularmente conhecida como desabafo, desempenha um papel muito importante na psicoterapia. Sem desabafo não há terapia. E as artes estão todas aí para nos ensinar a expressar melhor o que sentimos e ainda não sabemos colocar em palavras. E esta expressão pode se dar das mais variadas formas. 

Acredito nisto. Tenho um percurso em Psicanálise. A influência que ela absorveu do Romantismo diz o seguinte: a loucura, enquanto método, enquanto caminho, pode ser de grande valia. E o que é sua regra principal, a da associação-livre? Dizer tudo o que ocorre à mente, sem restrições, nem ponderações, do modo mais imediato e espontâneo possível. Isto tem nome: loucura, como método, como meio. Jamais pode ser feito fora de seu ambiente propício, onde o inusitado e o censurável não sejam acolhidos. A associação-livre é um legado romântico que Freud aproveita a favor de seus objetivos psicanalíticos. A loucura como meio (associação-livre), a razão e a saúde como fim. 

A paranóia freudiana de que nada é por acaso ou de que tudo, em termos inconscientes, tem um sentido, exige a loucura como um meio: deixar o inconsciente fluir. Permitir um pouco de loucura. Ela é o caminho para uma razão libertadora. Para saber melhor o que sentimos, ou o que nos move, é preciso soltar um pouco os bichos. É preciso viver, envolver-se, atuar, relacionar-se. Ou permitir, em sessão, que isto de alguma forma se manifeste. 

Naquele dia havia um funcionário da universidade a observar pelo vidro da porta tudo o que ali se passava. Comentava com algumas alunas que não acreditava em nada do que estava acontecendo, que tudo não passava de encenação. Terminei a sessão com o aluno e este funcionário adentrou a sala, dizendo que também queria ser submetido à hipnose. “Temos pouco tempo, somente cerca de quinze minutos. Mas podemos tentar...”, respondi. Ele topou. Pensei: vou pedir para que se recline na cadeira, para que fique na posição mais confortável possível, que procure dormir. Afinal estávamos praticamente no horário de almoço, um horário muito propício ao sono. 

Em um mesmo dia, duas situações novas e diferentes. Primeiro um diz que “tá podre” ao morder um estojo de borracha. E logo em seguida adentra a sala alguém que duvidava daquilo tudo, em tom desafiador. O que eu, por sorte, nem havia percebido. Senão nem tentaria nada, pois eu não tinha objetivo nenhum de provar nada, nem de defender a hipnose como uma técnica eficaz ou legítima. 

A sessão prosseguiu. E lembro, com ele, de ter feito algo parecido: pedi para que comesse um estojo ou coisa semelhante, dizendo que era um barra de chocolate. Ele fez tudo o que pedi. Mas não tive muita confirmação se somente obedecia ou se estava em um estado alterado de consciência. 

Quando terminamos, ele disse que havia sido uma experiência fascinante. Não tivemos tempo para conversar mais nada. Era o fim da aula. Fomos todos embora. Dias depois, uma aluna veio me contar que ao perguntar a ele, nos corredores, como fora a experiência, ele descreveu a ela que havia comido, durante a sessão, uma barra de chocolate. 

“Não. Ele te deu um estojo. Você ficou mordendo um estojo”, respondeu ela. 

“Que isso? Você tá louca. Não paguei esse mico não. Lembro bem, era uma barra de chocolate.” 

Ele tinha a firme convicção de que havia comido chocolate e não estojo. A aluna relatou isso em sala. Os alunos ficaram muito impressionados. E eu continuei sem entender nada. 

Que mecanismo é este? Duvidar, desafiar e em seguida dobrar-se ao espetáculo, à influência de outra pessoa? O que fez com que perdesse sua capacidade de oposição, de ver com os próprios olhos? De sentir por si próprio? Sentiu o que lhe foi ordenado (ou sugerido) sentir. Isto é de fato possível? Foi “hipnotizado” por mim. 

Ser hipnotizado, segundo algumas teorias que já li a respeito, pode tanto ser fruto de uma sedução quanto de uma opressão, de um medo. Tanto sedução quanto medo são hipnotizantes. Faz o sujeito agir e perceber como queremos. E no caso deste funcionário, o que aconteceu? O que foi determinante para que ele fosse dominado do modo como foi? A pressão do grupo? : “Colabore conosco. Veja e sinta o que estamos todos ordenando. Senão você será linchado”. Seria esta a mensagem implícita, inconsciente? Ou seria a imagem que ele tinha de mim, o efeito da pré-sugestão, da expectativa de que o hipnotista é infalível? 

A pré-sugestão, não podemos nos esquecer de seu poder, ela sim é infalível. Penso que muitos hipnotistas se iludem, ao pensar que possuem uma técnica infalível. Pré-sugestão é fundamental. Ela pode ser definida como todo o conjunto de sugestões que bombardeam o sujeito antes de qualquer procedimento. Está mais do que evidenciada, seja por pesquisa sistemática, seja de modo informal. Quanto maior a expectativa depositada no hipnotista de que ele possui uma técnica eficaz, fulminante e especial, maior a pré-sugestão. Assim, mais da metade do trabalho já está realizado. Muitos hipnotistas já fizeram este teste.

Anunciam ao público a apresentação de um “grande” mestre da arte da hipnose. E basta o sujeito a ser hipnotizado depositar bastante autoridade na figura do hipnotista, que este se transforma num grande mestre, independente de quem seja. Se o público acreditar não importa nem mesmo se há experiência na área ou não. Pensam, e dizem: é um grande hipnotista que veio da Europa, dos Estados Unidos, professor e um dos maiores conhecedores do assunto, e com certeza isto já desempenha um papel absurdo na indução. 

Basta pegar alguém que possua pelo menos a aparência de ser um grande hipnotista. Pode ser simplesmente um leigo. É muito interessante. Isto com certeza demonstra que a técnica não é o mais importante. É mais relevante o valor que as pessoas depositam no sujeito. Acreditar e confiar constitui a maior parte do processo. Autoridade vale mais do que técnica, habilidade ou conhecimento. E esta autoridade, mesmo que falsa, pode funcionar muito bem. 

Daí o fato de ser geralmente tão difícil desvincular a hipnose do ilusionismo, da enganação. Há profissionais que se apoiam totalmente nesse aspecto. Vivem praticamente da imagem de competência que nutrem diante de seu público ou clientes. Universo, muito geralmente, em que o parecer vale bem mais do que o ser competente. É o efeito placebo alçado à sua dimensão talvez mais elevada. 

Dias depois, eu uma outra professora, reparamos que aquele funcionário, tido por muitos como arrogante, era agora bem simpático e receptivo para com minha pessoa. 

“Ué, Adriano? Esse funcionário não é simpático assim com ninguém...”, indagou ela, um pouco espantada. 

“É verdade. Acho que foi a hipnose. É assim mesmo, depois que a gente hipnotiza, a pessoa fica apaixonada.”

Abaixo o link para quem quiser ler o livro todo. Com menos de R$ 5 você pode adquirir seu exemplar no formato Kindle:


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Sunday, October 23, 2016

Sonho com Edu, no Alasca

É incrível o nível de elaboração de muitos sonhos, seus detalhes e combinações inusitadas, e por vezes belíssimas. Os surrealistas muitas vezes buscavam alcançar esse estado de consciência para poderem produzir com mais fertilidade e criatividade, e isso faz todo sentido.
Há poucos dias, durante a madrugada, fui surpreendido com personagens inusitados e um cenário lindíssimo. Meio cômico, risível, ridículo ou brega, mas o fato é que estávamos filmando uma série americana no Alasca. Eu fazia parte da equipe de produção, não sei com qual função. Estávamos no verão, em uma casa no meio do nada, no meio da vida selvagem do Alasca, a qual dava os fundos para um lago estupendamente belo.
O personagem principal da série era muito sensível e tinha uma relação conturbada e profunda com o mundo, mas eu ainda não sabia exatamente quem ou como ele era.
- Olha lá ele, Adriano!, disse-me alguém da equipe, apontando para uma pessoa que estava há dezenas de metros, às margens do lago, contemplando sozinho a imensidão.
Fui me aproximando, e quando já estava a dois metros do grande e aclamado protagonista, ele olhou para mim, com o semblante sereno, e me fez um aceno silencioso de cabeça, com um sorriso bem discreto, suave, e voltou a contemplar a beleza da paisagem.
Era Edu, meu finado irmão...

Hipnose: a pobreza das evidências

Talvez um dos maiores problemas da hipnose seja a pobreza das evidências científicas. Ainda não sabemos o que é exatamente a hipnose. É um estado alterado de consciência, obtido por meio de uma técnica especial? Ou é somente um estado de maior concentração da atenção, o qual pode ser obtido pelos mais variados meios, tais como: ouvir e obedecer reiteradamente a sugestões simples; ouvir ou acompanhar uma narrativa, uma estória ou uma apresentação envolvente, a qual pode ser um filme, um livro, uma peça de teatro ou mesmo a pregação de um pastor fervoroso? Ou então esse estado de concentração poderia ser obtido também quando cantamos, dançamos, quando nos envolvemos um pouco mais profundamente com qualquer atividade que possa nos fazer esquecer um pouco do mundo à nossa volta...

Se o que chamam de hipnose pode ser obtido por meio dos mais variados procedimentos, e não depende de uma técnica específica, especial, por que continuar chamando isso de hipnose? Por que continuar acreditando que alguns poucos, os ditos iniciados, seriam os grandes condutores das alterações extraordinárias que prometem a preços exorbitantes?

E se desejamos provar que alguns comandos e sugestões reiterados ao pé do ouvido produzem alterações intensas no comportamento e nas sensações das pessoas, teremos de submeter esse procedimento a um teste chamado de teste placebo. Para se provar que uma técnica ou um medicamento é efetivo, eficaz, eles devem passar no teste placebo. Deve-se provar que são mais eficazes do que mero placebo, do que a mera crença na eficácia de uma substância inócua. Mas como provar que a hipnose é efetiva, eficaz, se ela é, por definição, uma espécie de placebo?

Em seu livro Snake Oil Science, Barker Bausell salienta que:

"A hipnose e o efeito placebo são tão intensamente dependentes dos efeitos da sugestão e da crença que é difícil imaginar como um controle placebo, com credibilidade, poderia ser concebido para um estudo sobre a hipnose."


Há dois grandes ramos de teorias e achados que divergem sobre o que seria a hipnose. Há as teorias de estado e as teorias de não-estado. Para as teorias de estado o estado hipnótico é um estado alterado de consciência, e a indução hipnótica é uma técnica especial que conduz a esse estado, o qual é capaz de produzir efeitos inusitados, e com grande potencial para a cura de diversos problemas de saúde. Para as teorias de não-estado o estado hipnótico não é um estado alterado de consciência, e portanto não é diferente de vários outros fenômenos de nossa vida cotidiana tais como: um alto de nível de concentração de nossa atenção ou um alto nível de envolvimento com nossos papéis e funções sociais.

Não há nem mesmo consenso científico quanto à definição do que seja a hipnose. Se o fenômeno não está nem mesmo definido, como é que podemos afirmar que existem comprovações de sua existência ou de sua eficácia para os mais diversos males humanos, como muitos hipnólogos gostam de afirmar? Nem sabemos se ela existe, ou se existe do que jeito que dizem que existe. O que dizer então da eficácia de algo que ninguém nem sabe definir?

Muitos praticantes ou apreciadores da área costumam citar um aspecto da hipnose, para o qual já haveria evidências científicas conclusivas: a questão da anestesia e analgesia hipnóticas.


A própria Psicologia, como ciência, tem muitos problemas de replicação. Imaginem então como é esse campo da hipnose. A pesquisa sobre hipnose padece de um volume muito maior de problemas em relação a replicação.
Theodore X. Barber (1927 - 2005) foi, com suas pesquisas, um dos grandes responsáveis por trazer a hipnose mais para perto do campo científico, conduzindo uma série de importantes experimentos nas décadas de 60 e 70, principalmente.


Em um de seus experimentos estabeleceu três condições para o procedimento de anestesia: nenhum tipo de intervenção, “anestesia” por meio de indução hipnótica e sugestões simples.

A sugestão simples era bem boba, bem básica: "Se você tentar imaginar que a água está agradável e tentar pensar que não está desconfortável, tenho certeza de que você será capaz de continuar imaginando assim e que não fracassará no teste".

A estimulação dolorosa, por sua vez, era feita por meio da imersão do antebraço em uma água salinizada, por volta de ser 0º C ou menos.

Os resultados são muito interessantes. Não houve diferença entre a indução hipnótica e a sugestão simples. Houve diferença entre esses dois procedimentos e a ausência de qualquer tipo de intervenção.

Um experimento como esse nos diz basicamente que, para se obter anestesia, não há a necessidade de indução hipnótica, de uma técnica especial que muitos chamam de hipnose, e isso portanto tira o foco da hipnose para esse tipo de procedimento.
Pelo que já pude ler dos textos de Barber, percebo esse achado como uma constante em vários de seus experimentos: a hipnose não é uma técnica especial, diferenciada, muito diferente de simples sugestões.

Agora, porém, o outro lado das evidências:

Em 1971, Martin Orne e Frederick Evans fizeram um experimento, intitulado "O hipnotizador desaparecido”, utilizando-se de dois grupos de sujeitos: altamente hipnotizáveis e simuladores. Realizaram, primeiramente, o procedimento de indução hipnótica padrão e os próprios experimentadores simularam então uma interrupção de energia. Retiraram-se, como se fossem à busca da solução de falta de energia elétrica, abandonando os sujeitos na sala.

O resultado é que, após um certo tempo, os simuladores abriram os olhos, pararam de representar e também deixaram a sala, ao contrário dos sujeitos altamente hipnotizáveis, os quais permaneceram prostrados em seus lugares e, somente muito mais tarde, e aos poucos, vieram a abrir os olhos, levantar-se e também sair.

Esse tipo de evidência pesa para o lado das teorias de estado, ou seja, para o lado de quem acredita que a hipnose é um estado especial, um estado alterado de consciência, pois esse tipo de resultado é uma evidência de que o sujeito hipnotizados não estão simulando e de fato, aparentemente, adentraram um estado de consciência muito diferenciado.

Então um dos grandes problemas é a pobreza das fontes independentes. São poucas as replicações existentes. Onde estão as replicações de experimentos como esses que foram citados, por meio de fontes independentes, realizadas por outros pesquisadores, em outros contextos? Se não existem estudos de replicação, não há a possibilidade de consenso científico, não há evidências conclusivas sobre o que é a hipnose. Portanto a hipnose continua sendo um fenômeno ainda muito mal definido, controverso, e que promete efeitos extraordinários. Isso funciona como um grande imã para charlatães e aproveitadores de toda espécie.

Para finalizar, não nos esqueçamos de uma frase que se tornou popular por meio do trabalho de divulgação científica de Carl Sagan: "alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias."

Duas leituras que recomendo: