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Certa vez, em sala de aula, expondo os motivos pelos quais Freud havia
abandonado a técnica da hipnose, dispus-me a fazer uma demonstração. Até aquele dia
eu havia tentado inúmeras vezes, por anos a fio, mas sem sucesso. Disse aos alunos que
era uma técnica muito cansativa e que era muito difícil hipnotizar as pessoas, que a
maioria não era hipnotizável. Ou seja, eu estava não somente falando de minha
experiência, mas também do que Freud havia relatado há cerca de um século atrás e dos
dados científicos consolidados sobre suscetibilidade hipnótica.
Eu havia aprendido os fundamentos com meu irmão mais velho, o
dentista. E tentara, assim como ele, em vão, hipnotizar amigos e familiares. Não
tínhamos qualquer reflexão ou concepção teórica sobre o assunto. Como ele havia sido
uma excelente cobaia em meio aos dentistas com os quais fizera o curso de hipnose,
alimentávamos a expectativa de que poderíamos obter os mesmos resultados com
qualquer outra pessoa. Ele havia sido um excelente sujeito para a demonstração de
anestesia hipnótica. Seu professor e colegas espetaram agulhas por todo o seu corpo. E esta é geralmente uma espécie de demonstração derradeira, a mais convincente. Uma
coisa é fingir alucinações e delírios, outra, bem mais difícil, é a capacidade de continuar
fingindo, mesmo diante de estímulos dolorosos.
Havia, para nós, alguma realidade na hipnose. Porque, senão, Edu, bom
cético que era, teria sido o primeiro a rejeitá-la. E pelo contrário, lá estava Edu sendo
trespassado por agulhas em diversas partes de seu corpo. Dando seu valioso
testemunho, prático e vivo, de algo fenomenal.
Porém, saindo da dimensão de excelente sujeito para a hipnose que era
Edu, a coisa ficava bem menos convincente. Era tentar hipnotizar, a quem quer que seja,
e os resultados eram sempre bem mais modestos e frustrantes. Nesse aspecto, pelo
menos, o determinante mais evidente não é técnica de indução hipnótica, mas sim o
próprio sujeito que a ela se submete. Dispondo de sujeitos facilmente hipnotizáveis,
basta pedir que se concentrem e todo o processo assim se desenrola.
Mas, e se estes sujeitos, tidos como facilmente hipnotizáveis, não tiverem
tido qualquer espécie de treinamento hipnótico? Iogues, por exemplo? O que dizer
deles? Possuem outros métodos de concentração, os quais podem não ser exatamente os
mesmos que nós ocidentais chamamos de hipnose. Ou poderiam ser vistos como
fundamentalmente os mesmos? Se forem os mesmos, a hipnose não é a única via para
se obter determinados estados de consciência. Neste caso, ela perde sua aura de técnica
única, exclusiva, especial. Por outro lado, se os fundamentos forem os mesmos; ou seja,
se tanto hipnose quanto ioga, por exemplo, possuírem os mesmos fundamentos técnicos,
ela (a hipnose) não representa nada de novo e nem de especial também.
Se é diferente, mas obtém os mesmos resultados que outra coisa já existente,
porém mais simples e acessível, por que seria mais vantajosa? E se compartilha dos
mesmos fundamentos técnicos, por que tratá-la como absurdamente diferente? Qual é a função de se fazer a mesma coisa que os outros e, contudo, dar um nome diferente?
Sim, não podemos esquecer que existem histórias diferentes. Ioga e hipnose nascem em
contextos totalmente diferentes e suas especificidades devem ser resguardadas. Porém,
por outro lado, perceber semelhanças em seus fundamentos técnicos pode também, por
meios comparativos, ajudar a compreender melhor estas práticas.
Porém, não há como negar, tanto hipnose quanto ioga são muito mistificadas. A
ioga está tradicionalmente mais próxima de práticas religiosas. A hipnose, por outro
lado, volta e meia aparece e reaparece reproduzindo mitos dentro até mesmo do próprio
universo científico. Chega com pose de ciência e quebra as pernas de muitos
pesquisadores, expondo feridas metodológicas e confusões conceituais.
O hipnotista ordena e o hipnotizado realiza o que é ordenado. Esta talvez seja
ainda uma boa definição: pertinente, objetiva e simples. Ainda não é possível dizer
exatamente o que se passa na cabeça dos hipnotizados. Se estão somente colaborando
ou se há mesmo significativas alterações de consciência. Há teorias e evidências em
ambas as direções. Ainda não há consenso científico.
Por que Freud abandonou a hipnose? Este era o tema da aula que comecei a
relatar no início. Vamos então aos motivos de Freud:
1. A hipnose não mais servia aos seus objetivos específicos. Sua intenção era
recuperar memórias esquecidas, recalcadas. Percebeu que a hipnose deixava os
pacientes em um estado muito primário de funcionamento mental. Fantasias eram
produzidas em profusão, o que facilitava a produção de falsas memórias.
2. A hipnose tinha se transformado para Freud em uma técnica muito cansativa.
Não tinha mais paciência para ficar repetindo comandos indefinidamente, com o
objetivo de fazer com que adultos “dormissem”. Tinha dificuldade em hipnotizar todos
os pacientes, além de não concebê-la como uma ferramenta eficaz em termos etiológicos. Ou seja, além de não servir ao seu propósito principal (a recuperação de
memórias), era também enfadonha.
Sua dificuldade em hipnotizar todos os pacientes é atestada pelas pesquisas de
suscetibilidade hipnótica. Somente cerca de 15% das pessoas são facilmente
hipnotizáveis. Para o restante, a maioria, é necessário mesmo uma certa dose de
paciência.
Minhas idéias sobre a hipnose, até aquele dia, naquela aula sobre a relação de
Freud com esta técnica, era totalmente endossada pelos argumentos do pai da
Psicanálise.
“Mas, a hipnose, professor? Existe mesmo?”, perguntavam alguns alunos,
mortos de curiosidade.
“Vocês querem fazer um teste? Podemos realizar um teste. Quem se dispõe a ser
sujeito de alguns testes?”, indaguei.
Um aluno levantou a mão. Era um rapaz muito jovem. Tinha menos de 20 anos
de idade. Cursava o terceiro semestre e sempre aparecia com perguntas ora muito
suaves ora constrangedoras, muitas vezes ingênuas e até pueris.
Fiz tudo o que recomendam os mestres e manuais da área, com paciência e
perseverança. Em um determinando momento, depois de muito relaxamento, pedi para
que ele me dissesse o que estava vendo. Disse que não via nada, que estava escuro.
“Então acenda a luz”, sugeri, buscando estimular sua imaginação.
“Acendeu” e começou a descrever onde estava. Estava em casa, lendo. Pedi para
que me descrevesse tudo o que estava fazendo e onde estava.
Passado um certo tempo, resolvi fazer alguns testes, sugerir algumas imagens e
sensações. Em um determinado momento peguei um estojo de lápis, feito de borracha, e
ordenei que o comesse, pois era uma maçã. O rapaz morde o estojo e o arremessa ao chão. Pensei: falhou novamente! Ele obviamente percebeu que não é uma maçã. Eu
sabia! Eu e Freud, juntos, não poderíamos estar duplamente enganados.
“O que houve?”
“Tá podre!”, respondeu.
Sim, para meu espanto e de todos os presentes, ele se comportava tipicamente
como alguém hipnotizado.
Quem observava, como costuma ocorrer neste tipo de situação, ficou perplexo.
A partir deste momento, o entendimento do que pode ou não estar ocorrendo geralmente
fica comprometido. Os eventos podem se suceder de modo inusitado. Algumas pessoas
parecem perder o controle. Podem falar ou agir de modo bizarro. E é exatamente isso o
que acho de interessante nas induções hipnóticas.
“Quanto mais bizarra é uma experiência, mais proveitosa ela é”. Conheço esta
frase, deste modo, há muito pouco tempo. Mas manifestações bizarras sempre me
despertaram grande interesse. O diferente, o inusitado, abrem novas perspectivas. São
rupturas de padrão, fluidez. Abrir-se para o que é estranho é parte importante de um
processo de exploração que se expõe a novos horizontes, mesmo que ainda não dotados
de sentido.
Um colega meu dizia assim: “o ridículo move o mundo”. E sempre compreendi
da seguinte maneira: agir sem medo de errar, de ser diferente. Assumir nossos próprios
defeitos e deles tirar algum proveito. Daí meu apreço pelas formas inusitadas, pelo nonsense,
pelo bizarro. Novas formas de expressão e, portanto, de compreensão também.
Novas alternativas, brotadas da loucura.
Dou valor ao insólito, ao bizarro, na proporção de uma crença que carrego há um
certo tempo: a crença no poder da expressividade. As psicoterapias, de modo geral, e as
artes, como um todo, possuem esta crença: expressar e, brincar, curam. A expressão é curativa. E o que seria expressar bem? Não seria esta a principal tarefa das artes,
expressar melhor? Ou de formas alternativas, que possam abrir novos horizontes de
compreensão e, portanto, de solução para uma infinidade de dilemas humanos?
Vejo a hipnose como um tremendo recurso expressivo. Acerca disto, para mim,
não há qualquer questão. Muito freqüentemente expressões inusitadas ou mais intensas
são despertadas. Possui um significativo valor catártico. E a catarse, a purgação dos
afetos, a qual é popularmente conhecida como desabafo, desempenha um papel muito
importante na psicoterapia. Sem desabafo não há terapia. E as artes estão todas aí para
nos ensinar a expressar melhor o que sentimos e ainda não sabemos colocar em
palavras. E esta expressão pode se dar das mais variadas formas.
Acredito nisto. Tenho um percurso em Psicanálise. A influência que ela
absorveu do Romantismo diz o seguinte: a loucura, enquanto método, enquanto
caminho, pode ser de grande valia. E o que é sua regra principal, a da associação-livre?
Dizer tudo o que ocorre à mente, sem restrições, nem ponderações, do modo mais
imediato e espontâneo possível. Isto tem nome: loucura, como método, como meio.
Jamais pode ser feito fora de seu ambiente propício, onde o inusitado e o censurável não
sejam acolhidos. A associação-livre é um legado romântico que Freud aproveita a favor
de seus objetivos psicanalíticos. A loucura como meio (associação-livre), a razão e a
saúde como fim.
A paranóia freudiana de que nada é por acaso ou de que tudo, em termos
inconscientes, tem um sentido, exige a loucura como um meio: deixar o inconsciente
fluir. Permitir um pouco de loucura. Ela é o caminho para uma razão libertadora. Para
saber melhor o que sentimos, ou o que nos move, é preciso soltar um pouco os bichos. É
preciso viver, envolver-se, atuar, relacionar-se. Ou permitir, em sessão, que isto de
alguma forma se manifeste.
Naquele dia havia um funcionário da universidade a observar pelo vidro da porta
tudo o que ali se passava. Comentava com algumas alunas que não acreditava em nada
do que estava acontecendo, que tudo não passava de encenação. Terminei a sessão com
o aluno e este funcionário adentrou a sala, dizendo que também queria ser submetido à
hipnose. “Temos pouco tempo, somente cerca de quinze minutos. Mas podemos
tentar...”, respondi. Ele topou. Pensei: vou pedir para que se recline na cadeira, para que
fique na posição mais confortável possível, que procure dormir. Afinal estávamos
praticamente no horário de almoço, um horário muito propício ao sono.
Em um mesmo dia, duas situações novas e diferentes. Primeiro um diz que “tá
podre” ao morder um estojo de borracha. E logo em seguida adentra a sala alguém que
duvidava daquilo tudo, em tom desafiador. O que eu, por sorte, nem havia percebido.
Senão nem tentaria nada, pois eu não tinha objetivo nenhum de provar nada, nem de
defender a hipnose como uma técnica eficaz ou legítima.
A sessão prosseguiu. E lembro, com ele, de ter feito algo parecido: pedi para que
comesse um estojo ou coisa semelhante, dizendo que era um barra de chocolate. Ele fez
tudo o que pedi. Mas não tive muita confirmação se somente obedecia ou se estava em
um estado alterado de consciência.
Quando terminamos, ele disse que havia sido uma experiência fascinante. Não
tivemos tempo para conversar mais nada. Era o fim da aula. Fomos todos embora. Dias
depois, uma aluna veio me contar que ao perguntar a ele, nos corredores, como fora a
experiência, ele descreveu a ela que havia comido, durante a sessão, uma barra de
chocolate.
“Não. Ele te deu um estojo. Você ficou mordendo um estojo”, respondeu ela.
“Que isso? Você tá louca. Não paguei esse mico não. Lembro bem, era uma
barra de chocolate.”
Ele tinha a firme convicção de que havia comido chocolate e não estojo. A aluna
relatou isso em sala. Os alunos ficaram muito impressionados. E eu continuei sem
entender nada.
Que mecanismo é este? Duvidar, desafiar e em seguida dobrar-se ao espetáculo,
à influência de outra pessoa? O que fez com que perdesse sua capacidade de oposição,
de ver com os próprios olhos? De sentir por si próprio? Sentiu o que lhe foi ordenado
(ou sugerido) sentir. Isto é de fato possível? Foi “hipnotizado” por mim.
Ser hipnotizado, segundo algumas teorias que já li a respeito, pode tanto ser
fruto de uma sedução quanto de uma opressão, de um medo. Tanto sedução quanto
medo são hipnotizantes. Faz o sujeito agir e perceber como queremos. E no caso deste
funcionário, o que aconteceu? O que foi determinante para que ele fosse dominado do
modo como foi? A pressão do grupo? : “Colabore conosco. Veja e sinta o que estamos
todos ordenando. Senão você será linchado”. Seria esta a mensagem implícita,
inconsciente? Ou seria a imagem que ele tinha de mim, o efeito da pré-sugestão, da
expectativa de que o hipnotista é infalível?
A pré-sugestão, não podemos nos esquecer de seu poder, ela sim é infalível.
Penso que muitos hipnotistas se iludem, ao pensar que possuem uma técnica infalível.
Pré-sugestão é fundamental. Ela pode ser definida como todo o conjunto de sugestões
que bombardeam o sujeito antes de qualquer procedimento. Está mais do que
evidenciada, seja por pesquisa sistemática, seja de modo informal. Quanto maior a
expectativa depositada no hipnotista de que ele possui uma técnica eficaz, fulminante e
especial, maior a pré-sugestão. Assim, mais da metade do trabalho já está realizado.
Muitos hipnotistas já fizeram este teste.
Anunciam ao público a apresentação de um “grande” mestre da arte da hipnose.
E basta o sujeito a ser hipnotizado depositar bastante autoridade na figura do hipnotista, que este se transforma num grande mestre, independente de quem seja. Se o público
acreditar não importa nem mesmo se há experiência na área ou não. Pensam, e dizem: é
um grande hipnotista que veio da Europa, dos Estados Unidos, professor e um dos
maiores conhecedores do assunto, e com certeza isto já desempenha um papel absurdo
na indução.
Basta pegar alguém que possua pelo menos a aparência de ser um grande
hipnotista. Pode ser simplesmente um leigo. É muito interessante. Isto com certeza
demonstra que a técnica não é o mais importante. É mais relevante o valor que as
pessoas depositam no sujeito. Acreditar e confiar constitui a maior parte do processo.
Autoridade vale mais do que técnica, habilidade ou conhecimento. E esta autoridade,
mesmo que falsa, pode funcionar muito bem.
Daí o fato de ser geralmente tão difícil desvincular a hipnose do ilusionismo, da
enganação. Há profissionais que se apoiam totalmente nesse aspecto. Vivem
praticamente da imagem de competência que nutrem diante de seu público ou clientes.
Universo, muito geralmente, em que o parecer vale bem mais do que o ser competente.
É o efeito placebo alçado à sua dimensão talvez mais elevada.
Dias depois, eu uma outra professora, reparamos que aquele funcionário, tido
por muitos como arrogante, era agora bem simpático e receptivo para com minha
pessoa.
“Ué, Adriano? Esse funcionário não é simpático assim com ninguém...”, indagou
ela, um pouco espantada.