Pacientes suicidas são algo com o qual qualquer psicólogo, e
muitos profissionais de saúde, irão lidar com alguma frequência. Em minha
experiência, no SUS, tenho que lidar com essa questão, com bastante frequência,
no CAPS.
Quando o usuário (o paciente) chega ao CAPS pela primeira
vez, deve passar pelo acolhimento (avaliação), para se proceder uma primeira
análise do caso, com o objetivo de se saber qual é o melhor encaminhamento.
Então, nesse primeiro contato, informamos que estamos fazendo uma avaliação e
que, após esta, o paciente será encaminhado para o que será mais adequado e
benéfico para o seu caso.
Em nosso CAPS, como
guia para esse primeiro contato, temos a ficha de acolhimento. Esta ficha contém cinco eixos, cinco pontos de
peso, a serem levados em conta: histórico psiquiátrico, sintomas,
funcionalidade, risco auto e heterolesivo e redes de apoio.
Todos esses pontos devem ser levados em conta para se
decidir sobre o encaminhamento mais adequado, pois os CAPS atendem,
preferencialmente, casos graves. Então há fatores que aumentam a possibilidade
de um paciente ser avaliado como elegível para acompanhamento em CAPS. São
eles: a existência, o número e a duração de internações psiquiátricas; sintomas
relacionados à perda do juízo de realidade (geralmente psicóticos), funcionalidade
básica comprometida (atendemos pessoas até mesmo incapazes de tomar um banho ou
de comer sozinhas); alto risco de cometer suicídio ou homicídio; e isolamento
social.
Essa avaliação não é absolutamente objetiva, mas se trilha
por esses pontos. E se o paciente não for elegível para acompanhamento pelo
CAPS, deve se proceder seu encaminhamento para outro serviço da rede de saúde
mental.
Em relação ao risco autolesivo devemos avaliar, no
acolhimento do paciente, se existe ideação suicida, assim como a sua
intensidade. Devemos então perguntar se o paciente tem pensado em morrer, e não
basta que ele diga que sim, para que isso seja classificado como ideação
suicida.
Alguém que somente diz que muitas vezes tem o desejo de
“sumir”, de “desaparecer”, não é necessariamente alguém que esteja planejando
cometer suicídio. Em termos de nível de ideação suicida, querer “desaparecer” é
o que existe de mais leve na escala. Querer morrer, estar pensando em se
morrer, estar pensando em se matar, estar planejando fazer isso, ter acesso a
meios, e ter acesso a meios mais letais é uma configuração mais adequada de um
possível escala de ideação suicida, que se estende gradualmente de sintomas
leves a graves. E é assim que deve ser minimamente avaliada a ideação suicida e
seu nível de gravidade.
Em minha experiência, no SUS, não tive porém contato com
suicidas, com ideações suicidas, somente no CAPS. Na UTI também acompanhei
pacientes que haviam tentado o suicídio. E, como já devo ter mencionado, minha
atuação, durante seis anos, foi concomitante, tanto no CAPS quanto na UTI. Em metade
de minha carga horária eu atuava no CAPS e a outra metade se dava na UTI.
A maioria dos casos que acompanhei era de mulheres que
haviam tentado morrer por meio da ingestão de medicamentos. Dois casos, porém,
de tentativas cometidas por dois homens, foram os que mais me marcaram, em
função dos meios utilizados e das consequências.
O primeiro caso era de um paciente anteriormente acompanhado
pelo CAPS. Eu nunca havia atendido Arnaldo (nome fictício) no CAPS, e nem mesmo
o conhecia. Só vim a saber que fora acompanhado pelo CAPS depois que já estava
internado na UTI. Como já faz mais de 5 anos, não lembro dos detalhes, mas me
recordo que Arnaldo aparentava ter entre 55 e 60 anos de idade, e tentou morrer
cortando seu pescoço com uma faca. E seu golpe foi tão profundo, que sua
traqueia foi cortada ao meio, por completo. Lembro-me também que, à época,
pouco consegui interagir com ele. Arnaldo permaneceu durante muito tempo,
muitos dias, completamente inconsciente. E nos dias em que esteve acordado,
mostrava-se muito desorientado, fazendo com que nossa comunicação ficasse
bastante comprometida. Fora o fato de ele receber talvez poucas visitas, ou
então eu não ter tido a oportunidade de estar presente quando seus conhecidos e
familiares lá estiveram para visitá-lo.
Então, no final das contas, não conheci melhor Arnaldo, nem
no CAPS, nem na UTI. E também não sei como ele está hoje pois, do que tenho
notícias, não tenho conhecimento sobre se ele retornou ao acompanhemento pelo
CAPS ou não, e não sei nem mesmo como está atualmente. E não saber, com o
grande volume de fluxo com o qual trabalhamos, é algo comum. O volume de
pessoas que procuram nosso CAPS é muito grande, e muitas vezes somos
simplesmente atropelados pela “correria”. Minha concepção de CAPS e UTI é muita
clara: CAPS é o SUS que dá certo, que funciona. A UTI infelizmente não, porque
representa um modelo biomédico falido e centrado em hospitais. Por isso que os
relatos que faço nesse livro, sobre CAPS, são de modo geral nitidamente mais
otimistas e empolgantes.
O outro caso de tentativa de suicídio que me marcou
bastante, na UTI, foi o de Roberto (nome fictício), 35 anos de idade. Roberto
estava fora do Distrito Federal, em um estado do Nordeste, cuidando de seu pai,
que padecia de diabetes. Pegou uma quantidade grande da insulina, que aplicava
em seu pai, e aplicou em si mesmo. Mas não morreu. Ficou com sequelas graves, e
esteve internado na UTI durante meses, até seu falecimento. A minha lembrança é
a de que sofreu muito. Tinha três filhos pequenos e sua tentativa de suicídio estava
relacionada a uma vida financeiramente precária e muito sofrida, que
ultrapassou seus limites de resistência. Roberto não suportou a pobreza, as
péssimas condições de vida de seu pai, de sua esposa e filhos, além também do
sofrimento por estar longe deles. Também não foi pouco penoso para mim
acompanhar todo o seu drama, até o fim de tudo, sempre de modo brutal e
revoltante.
E, da minha experiência como psicólogo e como pessoa, uma
coisa é clara: todo o processo em direção a um suicídio é um ato muito
solitário e horrivelmente triste. E quando algo grave se deflagra é um horror
angustiante no seio de qualquer família que o experimenta. Então falar
abertamente sobre o suicídio, tentando diminuir o tabu e sua proibição
absoluta, é o que hoje faço como parte de minhas estratégias de prevenção.
O suicida precisa de vínculo, apoio, cumplicidade, carinho,
amor, companhia, e muita conversa franca e transparente sobre seus desejos e
planos para morrer. Sem desafios nem chantagens, e sabendo sempre que ele é o
dono e responsável por sua própria vida.
Contudo, quando me lembro de vários casos de pacientes
desenganados e internados por meses a fio naquela UTI, muitos dos quais
inclusive pedindo para morrer, para mim fica claro que a vida de algumas
pessoas pode adentrar um vórtice de sofrimentos extremos e incontornáveis. E aí,
mesmo assim, muitos dizem:
- Ah, mas isso aí tem cura. Isso aí tem solução.
Tem cura, tem solução, veja bem, teoricamente. Porque, em
muitos casos, no contexto em que a pessoa está vivendo, isso não foi possível e
ninguém está conseguindo aliviar seu sofrimento extremo. E pior: essa pessoa
não tem a menor condição nem mesmo de dar cabo de sua própria vida, pois em
muitas situações ela está completamente paralisada, dos pés à cabeça, presa a
uma cama, em seu próprio corpo agonizante.
E aí a minha questão é a seguinte: se ela comunica por
meses, ou até anos a fio, que o sofrimento dela é absolutamente insuportável e
nós, a família e a sociedade como um todo, que estamos cuidando dela, não damos
conta de aliviar esse sofrimento, ela precisa então de ajuda para morrer.
Porque seria exatamente isso o que ela faria se tivesse condições para tal, se
pudesse se locomover, se movimentar, em um contexto tão extremo e penoso.
E há também o caso de algumas pessoas que talvez tivessem
condições de dar cabo de sua própria vida com suas próprias mãos, as quais contudo
preferem não fazê-lo dessa forma. Preferem mostrar ao mundo e à sua família que
não estão simplesmente cometendo suicídio. Que estão simplesmente lutando para
deixar de sofrer de modo tão intenso e irremediável. Que precisam do
consentimento da família para tal. Que precisam de um ritual de despedida.
É o que, em parte, retrata um documentário de 2013 (Neighbour, 2013), da rede de televisão ABC, na Austrália, assim
como vários outros textos presentes na internet. Narram como Jay Franklin, nascido
em 1976, vinha lutando contra sua doença crônica incapacitante, que lhe causava
sofrimento extremo e irremediável. Jay sofria da Doença de Hirschsprung
(megacólon congênito), uma enfermidade congênita, caracterizada pela ausência de
alguns grupos de neurônios em partes do intestino grosso. Os principais
sintomas são: obstrução e distensão intestinal, infecções, vômitos, dores
intensas, comprometimento do crescimento normal, e em cerca de 30% dos casos
está associada a outras anomalias congênitas.
Então, para que não seja fatal, desde o nascimento são
necessárias cirurgias para a retirada de partes do intestino, sendo que Jay foi
submetido a mais de 100 cirurgias, tendo todo o seu intestino grosso e a maior
parte de seu intestino delgado removidos. Sua condição era marcada por internações
hospitalares frequentes, constantes dores crônicas severas e infecções
repetidas, associadas à alimentação intravenosa e supressão imunológica. E em
2015 foi informado de que não era candidato a um transplante de intestino (“Euthanasia
Pioneer Dies”, 2017).
Sua vida chegou a um ponto de sofrimento intenso, constante
e irremediável. E isso fez com que começasse, em 2012, lutar pelo direito de
morrer com dignidade. Entrou com um pedido para que fosse aceito pela Clínica
Dignitas, na Suíça, a qual ajuda pessoas do mundo todo, que estão sofrendo como
Jay, a morrerem. Seu pedido foi aceito. Porém Jay decidiu que iria lutar para
alterar a legislação em seu país, para que a eutanásia voluntária e o suicídio
assistido fossem legalizados.
Nesse documentário para a ABC, a fala de Jay Franklin é
muito clara e até didática, ao tentar demonstrar que o suicídio assistido não é
como um suicídio comum:
"Eu não quero fazer algo irracional. Você sabe, eu não quero
me enforcar. Eu não quero me matar. Eu não quero pular de uma ponte. Eu não
quero me jogar na frente de um trem, porque isso é suicídio. Não é suicídio, o
que eu pretendo fazer.
(...)
Eles não tiveram de estar na minha pele nos últimos 36 anos e
eles não estão passando pelo que passo todos os dias, você sabe, e não é sobre
eles de qualquer maneira no final do dia. É sobre mim e eu sendo capaz de fazer
minha própria escolha." (Neighbour, 2013)
Jay e todos os que o amavam já tinham aceitado que não havia
mais outra alternativa a não ser morrer, pois todos já haviam feito tudo o que
podiam, e o que não podiam, para acabar com a tortura que estava massacrando
com todo e qualquer possível sentido para a vida moribunda, absurda e
inaceitável que ele levava. Todos de sua família, apesar de toda a dor que isso
implica, aceitavam a decisão dele de não mais continuar vivendo.
Jay, porém, lutou pela legalização do direito de morrer com
dignidade, em seu país, Austrália, durante 5 anos, e veio a falecer entre
outubro e novembro de 2017 devido a complicações resultantes das doenças
crônicas que sofria.
Em um outro caso, também em uma entrevista, um rapaz, o qual
já tinha tido o seu pedido para o suicídio assistido aceito para ser realizado
na Suíça, foi perguntado assim pelo entrevistador:
- Mas você tem opióides de sobra em sua casa. Por que não
utilizá-los?
E ele respondeu mais ou menos assim:
- Acho horrível e abominável a perspectiva de um suicídio
comum, a perspectiva de minha mãe chegar em casa e encontrar repentinamente meu
corpo morto. Desejo o consentimento e o ritual de despedida de minha família. A
minha decisão vem sendo debatida com todos os membros da família há muito
tempo. Tivemos conversas intermináveis. Fizemos absolutamente tudo o que
podíamos ter feito, envolvendo sacrifícios de várias pessoas de nossa família,
sem contar o maior deles, que é o meu próprio sacrifício nessa história toda.
Ele deixava claro o fato de que o pedido dele para ter
direito ao suicídio assistido tinha sido aprovado segundo critérios
específicos, rigorosos e muito claros, organizados segundo uma fundamentação
consistente da legislação de seu país. Ou seja, o direito de morrer não se
estende para toda e qualquer pessoa.
Em lugares como Suíça, Bélgica, Holanda e alguns estados
americanos, existe sim o direito de morrer. Mas não são todas as pessoas que
têm esse direito. São pouquíssimas as pessoas que podem fazer uso dele. E quem
tem esse direito? Ele se aplica, de modo geral, para o caso de pessoas que se
encontram em estado terminal ou padecendo de sofrimentos intensos e
incontornáveis.
É inclusive também, atualmente, o que reconhece uma das
instituições mais respeitadas mundialmente na área de prevenção ao suicídio, a
Associação Americana de Suicidologia (American Association of Suicidology,
2018):
"Em geral, suicídio e assistência médica para se morrer são
fenômenos conceituais, médica e legalmente diferentes, com uma quantidade
indeterminada de sobreposições entre essas duas categorias. A Associação Americana
de Suicidologia se dedica a prevenir o suicídio, mas isso não tem relação com a
morte refletida e antecipada que um médico pode legalmente ajudar um paciente
moribundo a facilitar, seja isso chamado de suicídio assistido, morte com
dignidade, morte assistida por médico ou ajuda médica no morrer. De fato,
acreditamos que o termo “suicídio assistido por médico” em si constitui uma
razão crítica pela qual essas categorias de morte distintas são tão
frequentemente confundidas [suicídio e suicídio assistido], e devem ser
excluídas do uso. Essas mortes não devem ser consideradas casos de suicídio e,
portanto, são um assunto fora do foco central do AAS."
Para finalizar acho importante reiterar a consideração de
Paul-Henri Thiry, o Barão D'Holbach, em um livro escrito juntamente com Denis
Diderot, em 1770:
"Se a aliança que une
o homem à sociedade for considerada, será óbvio que cada contrato é
condicional, deve ser recíproco, isto é, supõe vantagens mútuas entre as partes
contratantes. O cidadão não pode ser ligado ao seu país, aos seus associados,
mas pelos laços de felicidade. Se estes laços são cortados em pedaços, a este
homem deve ser restabelecida a liberdade. A sociedade, ou aqueles que
representá-lo, ao usá-lo com severidade, ao tratá-lo com injustiça, não tornam
assim a sua existência dolorosa? A melancolia e o desespero lhe roubam o
espetáculo do universo? Em suma, por qualquer razão que seja, se ele não é
capaz de suportar seus males, deixe-o sair de um mundo que para ele é somente
um deserto terrível." (D'Holbach, 1770/1970, 136-137)
Este relato foi retirado do livro "Agonia e sonho: memórias e reflexões de um psicólogo nos meandros do SUS" (2021), de minha autoria.
Todas as referências estão no final da obra, que pode ser encontrada facilmente na internet.