Futebol é o jogo surpreendente com uma bola que rola. Com alguma avalanche de pedras que se anuncia nos declives de nossas angústias e desesperos. É um jogo difícil, jogado com os pés. Há algo meio primitivo ou selvagem nisso. A bola não pode ser manuseada. As mãos, que constroem e constituem o mundo humano, tão caracteristicamente humanas, não entram na equação. E mesmo assim é uma encenação quase perfeita da vida, cuja finitude não pode ser manipulada. Porque nessa vida, com todos seus revezes, acasos e surpresas, apesar das mãos e de todo o seu poder, a gente precisa também se jogar e jogar com os pés.
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Sunday, November 27, 2022
As surpresas do futebol
É difícil uma copa do mundo de futebol não ser divertida ou não ter algo divertido.
Acompanho copas desde de 1982, quando o Brasil era a sensação, com seu futebol-arte e goleadas em quase tudo o que é time. Mas a grande surpresa foi mesmo a Itália, que na primeira fase empatou em 0 x 0 com a Polônia, 1 x 1 com o Peru e 1 x 1 com Camarões. Mas que da segunda fase em diante foi progressivamente arrasadora, batendo a Argentina de Maradona por 2 x 1 e o favorito, o Brasil, por 3 x 2, com 3 gols de Paolo Rossi em ascensão fulminante durante a competição. Sendo que daí em diante ninguém mais segurou os italianos, até a sua vitória na final por 3 x 1 contra a Alemanha.
Em 1986 a sensação foi a Argentina, com Maradona, que nos presenteou com lances e gols incríveis, sendo um deles um dos mais bonitos de todas as copas - aquele no qual ele percorre quase o campo todo, driblando meio mundo e o goleiro. Mas também tivemos outras surpresas, como a Dinamarca, que a imprensa chamava de Dinamáquina. Porque os dinamarqueses tinham sido arrasadores nas eliminatórias, com várias goleadas memoráveis nos anos anteriores, além de, na primeira fase, vencerem o Uruguai por 6 x 1 e a Alemanha por 2 x 0 . Foram para as oitavas contra a Espanha (que naquela época era um time bem mais fraco que Alemanha e Uruguai), e levaram uma surra dos espanhóis de 5 x 1, que depois perderam para os belgas nas quartas.
A copa de 1990 foi uma das mais chatas da história, porque caracterizava o fim do futebol-arte e a hegemonia do futebol-força, tendo a menor média de gols da história. Mas também teve suas surpresas: o desempenho empolgante de Camarões, que foi o primeiro país africano a avançar até as quartas de final; e as reiteradas defesas de pênaltis do goleiro argentino; isso somente para citar duas das surpresas das quais me lembro.
Em 1998, na França, houve alguns jogos emocionantes. Na primeira fase o Irã surpreendentemente venceu seus rivais geopolíticos, os EUA. O Brasil avançava bem, com Ronaldo explodindo, fazendo com que fôssemos para a final como favoritos. Mas aí Ronaldo “amarelou” e a França venceu por 3 x 0, um placar surpreendente. Apesar da derrota, foi bonito de ver a festa em Paris, com os franceses extasiados por serem campeões do mundo pela primeira vez.
Sobre 2002 nem preciso dizer nada. Porque ganhamos o penta com alguns jogos e vitórias memoráveis.
2010 teve a delícia de vermos pela primeira vez uma copa na África e a Espanha levando seu primeiro caneco.
Em 2014 teve a memorável vitória de 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil.
Lembro-me também de Nigéria, Costa Rica, Costa do Marfim e Grécia surpreendendo em copas passadas, as quais não consigo agora especificar.
E nesta copa já tivemos algumas saborosas surpresas. O Japão venceu a Alemanha, e hoje perdeu para a Costa Rica que, por sua vez, havia perdido para a Espanha por 7 x 0. Sendo que o Japão dominou o jogo e a Costa Rica venceu com um belo gol, no final, com seu único chute a gol durante todo o jogo.
A Arábia Saudita venceu a Argentina por 2 x 1 com dois golaços, com preleção cinematográfica de seu treinador, no intervalo, nos vestiários.
O Irã, depois de perder de 6 x 2 para a Inglaterra, venceu Gales por 2 x 0, com dois gols nos dois últimos minutos dos acréscimos. Sendo que Gales empatou com os EUA, que empataram com a Inglaterra.
E ontem, na vitória de 2 x 0 da Argentina sobre o México, Messi marcou o primeiro gol, na primeira oportunidade que teve, de fora da área, depois de ter passado o jogo todo apagado.
Futebol é o jogo surpreendente com uma bola que rola. Com alguma avalanche de pedras que se anuncia nos declives de nossas angústias e desesperos. É um jogo difícil, jogado com os pés. Há algo meio primitivo ou selvagem nisso. A bola não pode ser manuseada. As mãos, que constroem e constituem o mundo humano, tão caracteristicamente humanas, não entram na equação. E mesmo assim é uma encenação quase perfeita da vida, cuja finitude não pode ser manipulada. Porque nessa vida, com todos seus revezes, acasos e surpresas, apesar das mãos e de todo o seu poder, a gente precisa também se jogar e jogar com os pés.
Sunday, November 06, 2022
Orações e religião em meus grupos no CAPS
Sou agnóstico. Ou seja, simplificando: não acredito em nada, e não me comprometo com qualquer tipo de crença religiosa. Não acredito na existência de Deus nem na sua inexistência.
E hoje, no CAPS (em um grupo de terapia pela fala que coordeno), houve muita oração. Sim, oração: ficou parecendo um templo, uma igreja.
O paciente que assim quisesse se sentava numa cadeira, no centro da sala, e os outros, que também assim quisessem, se aproximavam e tocavam esse paciente com as mãos, sendo que cada um ficava à vontade para proferir suas orações, sua fala, da forma como achasse melhor.
Não entrarei em maiores detalhes sobre como o grupo chegou a esse estágio para não expor nenhum de meus pacientes. Mas posso lhes dizer que hoje os efeitos dessa prática, dessa vivência, em especial, foram muito interessantes.
Um dos pacientes estava muito resistente, tanto ao grupo quanto à minha pessoa. Simplesmente se negava à comunicação verbal, com expressões faciais de profundo desprezo em relação a todos os presentes. Dei a oportunidade para que todos se expressassem sobre como se sentiam em relação a esse tipo de interação.
A sensação que de certo modo imperava era a de que essa pessoa estava com uma raiva muito grande de tudo e de todos nesse mundo. Havia um abismo imenso, e muitíssimo incômodo e constrangedor, entre o grupo e esse paciente, o qual já faz parte desse grupo há mais ou menos dois anos.
Senti que não seríamos capazes de avançar, e de quebrar um pouco o gelo, se continuássemos somente nesse tipo de interação verbal, mais convencional. Tenho percurso, experiência, com outras formas de intervenção e resolvi então propor essa vivência, a qual já tínhamos realizado várias vezes em outros grupos, tais como o grupo de teatro ou o grupo de expressão total, ambos atualmente não mais ativos, mas que foram também coordenados por mim.
No início todos tocavam a paciente, que estava no centro, e oravam em completo silêncio. Observando as expressões de cada um, percebi que um deles estava muito compenetrado. De modo bastante sutil fui até ele e sussurrei que ficasse completamente à vontade, e que inclusive soltasse a voz, se assim o desejasse.
Ele se empolgou e passou a orar em voz alta e com bastante vigor. Indaguei se mais alguém gostaria de fazer sua oração em voz alta, e ninguém se manifestou. Então, feito isso, houve o momento em que cada um, individualmente, abraçou o paciente em questão.
Nessa hora me emocionei e não contive minhas lágrimas. Aliás, não fiz esforço algum para contê-las. Quando todos já tinham lhe dado um abraço, fui na direção desse paciente e também o abracei, pedindo-lhe desculpas por qualquer coisa que eu pudesse ter feito, ou falado, que o tivesse machucado. Nos abraçamos e choramos, juntos, abraçados.
Portanto fiz questão de mostrar ao grupo que eu estava emocionado. Também verbalizei sobre o que estava sentindo naquele momento e por quê.
Foi uma intervenção muito difícil. O paciente estava muito resistente e por vários momentos pensei que o caldo fosse entornar, que esse paciente fosse me hostilizar. Isso causaria danos ao nosso precioso vínculo.
Quando isso ocorre não há como não nos entristecermos. Quebra de vínculo com quem a gente cuida, com quem a gente ajuda, com quem a gente ama, é sempre doloroso. E psicólogo que não cuida, que não interage com seus pacientes com carinho, com muito carinho, com amor, está fazendo tudo errado. Então a quebra de vínculo é sempre dolorosa, porque é uma quebra muito similar a qualquer quebra de vínculo que existe entre duas pessoas que se amam.
Enfim, é isso o que eu queria dizer aqui pra vocês: que hoje de manhã, esse momento, essa ocasião de minha interação com esses pacientes, foi emocionante. E continuo tranquilamente sendo agnóstico.
Texto de 22/09/2016
Saturday, November 05, 2022
Louco do 4º ano
Já me comportei muitas vezes nessa vida de um modo mais próximo a algo parecido com a psicose, a loucura clássica. Porque já fui fascinado pela estética psicótica. Já agi de modo alegremente enlouquecido por inúmeras vezes.
Isso tudo começou por volta de meus 21 anos de idade, quando eu cursava o terceiro ano de psicologia. Em minha adolescência assisti a alguns filmes de comédia nonsense, os quais inclusive talvez tenham sido uma das primeiras sementes de alguns de meus comportamentos psicóticos, ou dissociados, ou dissimulados mesmo, talvez simplesmente calculados para que eu conseguisse, naquele contexto, ter a interação que fosse a mais saudável possível para a minha sobrevivência social.
Em diversas situações eu me via encurralado com uma série de demandas e questionamentos, para os quais eu não encontrava a resposta que eu julgasse como
satisfatória para dar para as outras pessoas. E assim acontecia o comportamento divergente, marcado pela bizarrice e o nonsense.
Dos 13 aos 14 anos de idade eu tive os piores anos de minha vida, com sintomas de ansiedade e depressão, marcados por sentimentos de intensa angústia e solidão. 1985 e 1986 foram dois anos torturantes, aos quais sobrevivi mediante um apaziguamento e uma estabilização lentos, na quietude de uma vida regrada em ser a pessoa mais boazinha que eu podia, aquele sujeito adolescente que nem mesmo sabia reconhecer em si sentimentos de raiva e de agressividade.
Os dois primeiros anos no curso de psicologia fizeram com que eu me abrisse para algumas influências do Romantismo, relacionadas a permitir que as emoções e até mesmo a agressividade fluíssem com mais facilidade, e assim eu pudesse melhor me adaptar a uma complexidade das interações humanas da qual eu não tinha a menor ideia que era possível.
Passei então a me utilizar com cada vez mais frequência de instrumentos contracomunicativos e de uma interação mais esquisita, mais estranha com as pessoas. Assim deixava muitos desconcertados ou sem saber como me classificar.
Para muitas situações, principalmente as situações de encontro informal com outras pessoas, em ambiente festivo ou recreativo, esses comportamentos eram muito adaptativos e muito gratificados. As pessoas de modo geral gostavam muito e me tinham em alta conta nesses meios, inclusive também nos meios artísticos e culturais, porque tinha uma marca estilística muito forte. Essa estética da estranheza, juntamente com uma certa comicidade, despertava a admiração de muitos de meus pares.
E eu, por sorte, não era assim o tempo todo. Eu ficava mais agudamente pirado, como já mencionei, em ambientes recreativos ou festivos e culturais.
Então, classicamente falando, eu nunca fui louco e nunca enlouqueci.
Porém, para quem me conhecia muito superficialmente, talvez coubesse esse tipo de classificação abusiva.
Lembro-me claramente de uma determinada vez, quando eu saía do restaurante universitário, quando uma estudante do quinto ano de psicologia apontou para mim e disse para outra, da mesma turma:
- Aquele ali é o louco do quarto ano.
Lembro-me que achei o comportamento dela um pouco ridículo e risível. Então comentei com alguns colegas, e ficamos dando risada sobre o ocorrido. Nossa sensação era a de que aquela moça era bastante ingênua, para dizer o mínimo.
Sua vida era o que, por volta de 1968, muitos na França chamavam de metrô boulot dodô, para se referir à vidinha besta de alguém que só faz todos os dias a mesma coisa e sem qualquer tipo de abertura para atividades diferentes ou um pouco mais aventureiras.
Hoje não mais, mas sei que durante muitos anos, fui visto por muitas pessoas, que não me conheciam direito, como um sujeito meio doido. E eu continuava daquele jeito porque era muito divertido e gratificado. Meus amigos adoravam minhas doidices. E eu carrego comigo muito boas lembranças e saudades daqueles tempos.