Há 5 anos o que me fez decidir que eu tinha de voltar para a terapia foi um sonho. Já vinha enfrentando um perrengue de mais de um ano, em um momento difícil de minha vida, como não ocorria havia uns dez anos.
E o pior é que tenho, na memória (que sei de seu potencial de ilusão), tudo esquadrinhado. Lembro de quase tudo, em praticamente cada mês de minha vida, desde meus 7 anos de idade. De antes disso também tenho lembranças, as mais diversas, mas não são tão organizadas em mês, ano e dia. Sim, lembro-me até mesmo de alguns dias marcantes como, por exemplo, do dia em que tive uma crise de angústia, minha primeira crise de angústia da adolescência, há 35 anos, no dia 28 de junho de 1985.
E há poucos dias tive novamente um sonho intenso, porém aparentemente mais desligado de meus atuais dramas cotidianos. Sonhei que havia uma casa, enorme, com vários andares, que eu tinha como minha morada, minha proteção. Aquela casa de certo modo representa a minha sobrevivência. Ali viviam e dormiam todas as pessoas que eu amava. Ali estava a família que eu tinha ou tinha tido por muito tempo, e essa coisa de deixar uma casa na qual eu havia vivido por muito tempo, com várias pessoas que eu amava, nunca ocorreu em minha vida.
Apesar de não haver referência direta a nada, sinto que aquela casa, do sonho, representa minha sobrevivência material e afetiva, pois já estive em algumas “casas” assim em diversos momentos de minha vida. Já senti que eu dependia profundamente de algumas pessoas. Quem ama sente isso. Então sinto que dependo profundamente de algumas pessoas.
Não é somente o sentimento de que tem o pão que gostamos na padaria da esquina e, se ela falir, logo encontramos outra. É bem mais profundo que isso, porque não se trata somente de pão. Assim como para um bebê uma mãe não é somente provisão de leite. O apego ao peito da mãe, de querer ficar ali grudado o dia todo tem, amiúde, no leite, pouca relevância, depois que essa criança já não é mais um recém-nascido, porque existe uma coisa chamada apego, amor, que pode se transmutar em algo mais valioso do que a mera sobrevivência, que precisa de comida.
Porque há situações, em nossas vidas, em que deixaremos de comer, para podermos recuperar, resgatar, quem amamos. O alimento, matar a fome, continuar vivo, se torna pequeno diante da sensação de que estamos perdendo quem amamos, ou também da necessidade de permanecermos do lado de quem nos encantou, por quem nos apaixonamos. Poderá haver situações em que estaremos dispostos a deixar de viver se não nos for possível continuar vivendo nosso amor ou nossa ilusão do que ele poderia ser.
Freud se espantava diante disso, diante desse tipo de cenário. Poetas e artistas, desde que existe humanidade, se espantam. Os dois sonhos, o que tive há poucos dias e há 5 anos, me espantaram, me mobilizaram. Porque sonhos são espantosos. Têm, amiúde, o gosto de algo completamente novo.
Porque o espanto é isso, ou é também isso, ter a sensação de que estamos lidando com algo absolutamente inédito e impactante, e que pode também nos acometer se esse algo contiver ambiguidade, contradição, conflito, o enigma de uma aparente coexistência de contrários.
Neste sonho mais recente, da casa que eu não queria deixar, havia uma figura de autoridade, um homem que me autorizaria continuar ali ou não, uma espécie de guardião da senhora que eu amava e que, do que consigo me lembrar, era secundária nesse sonho especificamente. Não consigo me lembrar de seu rosto, nem de qualquer outra característica física. Só sei que era uma senhora, não uma jovem. E seu guardião se comportava como um irmão mais velho, um pai ou até mesmo um marido ou ex-marido que iria dividir o amor dela comigo.
Para os freudianos (e me refiro a eles em sentido lato) está aí configurada uma tríade fundamental: o eu, a figura primordial e a secundária do amor. A primordial é o objeto primeiro de nosso amor. A secundária é o interdito, é originalmente um opressor, que bloqueia o amor louco e sanguinário, a impedir que devoremos quem amamos.
No sonho eu olhava para esse homem, para seus olhos claros, sua compleição física menor do que a minha, para sua pseudoprofundidade afetada, sua falta de erudição, sua ignorância, para sua desimportância social, para seu tamanho diminuto no mundo dos homens, e o temia, o respeitava, como a um pai, como a uma pessoa que o mundo encheu de autoridade, para estar ali, na minha frente, me dizendo seu poderia ou não ter acesso a quem eu amava. Esse homem somente se sustentava com base em um único pilar: sua autoridade. Era grande somente por isso: porque estava num posto de autoridade.
Esse homem, contudo, era honesto e suficientemente justo e coerente. Isso bastava para aceitá-lo como a autoridade que lhe fora conferida. E pior, eu também tinha afeto por esse homem. Era alguém da minha família. Não, não estou dizendo que ele representa meu pai, ou alguém em específico. Seria bastante precipitado afirmar isso. Seria equivocado rotular essa autoridade como sendo simbolicamente meu pai.
Mas essa figura opressiva, de autoridade, estava ali, e era alguém que eu havia aprendido a amar. Para os freudianos uma espécie de Síndrome de Estocolmo é algo constitutivo para a formação de uma personalidade sadia. Porque o mundo não é feito somente de acessos livres ao amor. Porque o amor também tem regras. Porque eros, sozinho, devora e destrói tudo à sua volta. O equilíbrio entre eros e philia é todo entrelaçado por uma série de regras. Isso também faz com que nos apeguemos a regras e a quem as enuncia.
Porém eu quis escrever sobre sonhos e seu impacto, o espanto que nos desperta, e pode nos fazer querer adormecer novamente, para ver se ali encontramos respostas e diretrizes. E também o espanto de acordar, logo após um sonho, e não entender nosso amor ou desejo por personagens, objetos e lugares aparentemente sem qualquer tipo de relação com nossas vidas.
Os mais esotéricos, geralmente reencarnacionistas, vão logo associar isso tudo com objetos de suas crenças em outros corpos que viveram outras vidas, em outros tempos e lugares. Os freudianos vão sempre chamar a atenção para o que existe aqui e agora, em sua realidade de desejo, de pulsão. E se alguém, num sonho, se afigura como um completo estranho que é, ao mesmo tempo, familiar, isso se deve em parte aos mecanismos de condensação e deslocamento. O homem de meu sonho, nesse caso, seria esse completo estranho-familiar porque é uma percepção resultante da sobreposição, da junção de algumas ou várias características em uma só. Seu rosto, de olhar firme e olhos claros, seria um compósito resultante da junção de pedaços de memórias.
Os freudianos são apegados a isso. A esse espanto que pode lhes apontar direções. Seguir essas impressões, e cultivá-las, iluminaria parte relevante do caminho a ser trilhado, do que deve ser feito.
Este sonho me fez pensar sobre meu percurso, desde minha primeira terapia, de orientação psicanalítica, há quase 30 anos. Eu estava prestes a completar 20 anos de idade. Comparecia disciplinadamente a todas as sessões. Sentia-me completamente acolhido e confiante na ética e responsabilidade da psicóloga comigo.
Lembro-me que a terapia ia caminhando, e aos poucos se aprofundando. Das 3 terapias de orientação psicanalítica que fiz, àquela época, duas delas foram assim. Iam aos poucos se aprofundando e o terapeuta sempre a me convidar para mergulhar em um abismo profundo e perigoso. Era um movimento constante de tocar na ferida, remexê-la, revirá-la, cultivá-la. Havia o incentivo constante para se borbulhar sentimentos. Era o incentivo à catarse, a vivenciar emoções, à purgação de afetos. Botar para fora, chorar, receber colo, sentir-se em casa, protegido, amado, e depois analisar cada pedacinho do que fora regurgitado.
A primeira vez, inclusive, na qual chorei em sessão, fui gratificado:
- Agora você entrou em terapia! Hoje senti você aqui, inteiro... - dizia a terapeuta.
Saí de seu consultório e, cerca de uma hora depois, eu confraternizava com alguns colegas, com pessoas que tinham a possibilidade de serem minhas amigas, e eu surpreendente e espontaneamente as abraçava. Isso era inédito em minha vida, e eu nem mesmo entendia como estava ali espontaneamente abraçando aquelas pessoas, e como aquilo estava a ocorrer de modo tão simples e relevante.
Meu sentimento era de que eu era agora alguém também capaz de fazer amigos em ambientes totalmente separados de minha família. Eu não precisava mais da autorização de meus irmãos para isso. E eu também sentia que o amor poderia aparecer. E o amor aparecer dizia respeito a um nível de envolvimento que eu jamais havia vivenciado fora da consanguinidade. Toda a complexidade do amor poderia agora acontecer com estranhos.
As três primeiras terapias que fiz eram de orientação psicanalítica. E dois desses terapeutas cutucaram muito minha vida e minhas feridas. Tiveram muita autoridade sobre mim. Comportaram-se, amiúde, como o homem de olhos claros. Lancei-me no abismo, um pouco empurrado por um desses terapeutas, tentando lhe provar que eu era capaz de me envolver, de amar alguém fora da minha consanguinidade.
Esse sonho, sua aparente pujança, o debate que tenho acompanhado sobre a cientificidade da Psicanálise, os sentimentos e angústias dos quais padecemos, e que por vezes ficam à flor da pele, como nosso mundo lida com isso, como muitos terapeutas lidam com isso, a sensação de profundidade, de espanto, surpresa, o gozo de se cultivar isso, e o tanto que podemos adoecer, ou nos tornarmos mais fortes e saudáveis, a depender de como lidamos com essas coisas, fez com eu divagasse nesse texto. E talvez eu tenha até me perdido um pouco em memórias, que entretêm a muitos que leem. Teria espaço para continuar, e vigorar em páginas, que depois se transmutam em livro.
Mas não sou autor de livros, apesar de já ter publicado 8 deles. Sou mesmo autor de pequenos textos de Facebook, que depois se esconde em alguns livros.