Wednesday, June 24, 2020

A covardia

Algumas pessoas, diria Gandhi, de tão fracas que são, para se sentirem fortes, precisam humilhar outras.

Não é covarde quem tem medo de alguma coisa da qual ninguém tem. Não é covarde quem tem algum tipo de fobia ou medo de algo em específico. Isso está mais para as definições de sensível ou medroso.

Covarde é o sádico, o opressor, que lambe botas de quem é mais poderoso e massacra quem tem menos poder. Lambe botas dos chefes, dos superiores, e massacra subordinados. É comum que bajuladores sejam também covardes. Além de falso apreço, com comportamento interesseiro, são altamente propensos à traição, porque prestam fidelidade somente ao poder.

A crueldade é o ápice da covardia. Bater em alguém no chão, já rendido, em quem todo mundo já está batendo, é covardia. Linchadores são fundamentalmente covardes.

Até os omissos poderiam ser vistos, em boa parte das vezes, não como covardes, mas sim como medíocres, medrosos ou temerários, cúmplices da covardia de pessoas que amiúde esses omissos também obedecerão. Porque sempre se contentaram em fazer parte de um rebanho mudo e acuado.

O contrário da covardia não é simplesmente a coragem. É, antes de tudo, a justiça, a compaixão e a generosidade. O covarde padece de uma profunda mesquinhez de espírito.

Sunday, June 21, 2020

Depressão como rebelião ao capitalismo?


Alguns colegas psicólogos, engajados no que eles acreditam que seja uma crítica fundamentada ao capitalismo, defendem que a epidemia atual de depressão é um problema relativo à excessos e não em relação à falta, e que o depressivo é uma pessoa que se rebelou contra esse sistema baseado no lucro e na produtividade.

Olha, desculpem-me, mas colocar as coisas nesses termos é extremamente simplista e não tem relação alguma com as evidências científicas.

A epidemia atual de depressão pode ter relação com diversos fenômenos, que provavelmente atuam das mais variadas formas. O primeiro ponto é que houve, por parte da sociedade, nos últimos 40 anos, uma apropriação maior do trabalho da psiquiatria e da indústria farmacêutica de psicotrópicos.

Então primeiramente temos de avaliar que não existe simplesmente um sujeito se rebelando contra isso. O que existe é um sistema que pode muito bem também estar superdiagnosticando as pessoas. Então não existiriam pessoas que estão se rebelando, mas sim sendo enquadradas em categorias que antes não existiam ou, se existiam, não estavam sendo valorizadas ou tomadas oficialmente como categorias de doenças.

Não é muito difícil de entender que esta hipótese é algo a ser considerado, porque as pessoas iam menos a psiquiatras, e tinham portanto menos diagnósticos de transtornos mentais. O que antes era muitas vezes considerado tristeza, desânimo ou angústia, hoje é considerado depressão ou algum transtorno similar.

A hipótese de que antes havia uma pressão muito menor para a produtividade e para o alcance de uma série de ideais, inclusive de beleza, pode sim ser levada em conta, e faz sentido. Mas transformar isso na causa da depressão, e transformar o depressivo em alguém que está se rebelando, como se isso pudesse depois servir de combustível para uma espécie de movimento revolucionário, é deveras simplista.

Há uma variedade de situações que pode fazer com que uma pessoa passe a exibir sintomas de depressão. Uma abordagem científica possível é que essa variedade de situações pode ser classificada em alguns conjuntos.

Existe a hipótese científica relacionada à perda, de que os sintomas depressivos estariam fundamentalmente associados a alguma perda, seja ela objetiva ou subjetiva. Porque existem pessoas que estão deprimidas devido à perda de algum ente querido, perdas financeiras, ou até mesmo à perda de algum ideal ou de uma rotina, a qual estavam adaptadas, e que agora não estariam mais. Quebras de expectativas podem gerar sintomas depressivos. Porque às vezes é pior cair de um sonho, do que cair do telhado e quebrar a perna.

Enfim, quando estamos falando, por exemplo, de perdas, podemos estar falando de uma infinidade de situações possíveis, que podem gerar sintomas depressivos, e esta é uma hipótese que existe e está em debate no meio científico.

Outras hipóteses científicas referentes a genealogia de sintomas depressivos apontam para o aumento de estimulações aversivas e/ou a diminuição da quantidade e/ou da densidade de gratificações as quais alguém está sendo exposto.

Existem também as evidências relativas ao desamparo aprendido. Imagine que você esteja na seguinte situação que, na sua experiência, ou na sua percepção, tudo que você faz sempre resulta em um contexto desagradável, aversivo ou punitivo.

Seria mais ou menos como na metáfora popular de que se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come. A pessoa simplesmente se sente sem saída. Porque no contexto em que se encontra parece que tudo o que faz sempre produz o mesmo resultado, que é basicamente doloroso. Então ela simplesmente deixa de fazer as coisas. Ela simplesmente não irá fazer mais nada, porque o custo é muito menor. Faz muito mais sentido ficar parado, do que ficar correndo atrás das coisas e obtendo sempre o mesmo resultado.

E isso obviamente não pode ser reduzido ao modelo capitalista, porque existe uma infinidade de situações que podem produzir isso, inclusive dentro de casa, numa relação doentia, excessivamente punitiva, entre pais e filhos, por exemplo.

Creio que até mesmo a hipótese científica do duplo-vínculo, para tentar dar conta um pouco de fenômenos psicóticos, pode ser aqui vislumbrada como uma possibilidade, em algumas interações mais específicas, para tratar da formulação de hipóteses referentes a alguns sintomas depressivos. O duplo-vínculo diz respeito a situações nas quais são emitidas mensagens de duplo sentido, fazendo com que a pessoa que sofre as consequências disso não consiga entender qual seria o modo mais adequado de como ela deveria se comportar.

O exemplo clássico, citado pelos propositores dessa hipótese, é o da mãe que vai visitar o filho em um hospital psiquiátrico. Quando ela chega, olha para ele e pergunta porque ele está com aquele olhar diferente, frio e apático, em uma crítica ao jeito frio do filho. Ele a abraça, e logo em seguida, minutos depois, a mãe já manifesta uma mensagem contrária, de que ele seria muito dependente ou inoportuno em suas aproximações físicas.

E o duplo vínculo, veja bem, é algo que ocorre com bastante frequência em interações humanas, que irão depois, com o tempo, produzir sintomas de psicose ou até mesmo de depressão. Porque a pessoa enlouquece, ou entra mesmo em depressão, com alguém, que a controla, e que está o tempo todo lhe exigindo duas coisas contrárias.

Foro fato de que existem as mais variadas situações em que alguém é submetido constantemente a punições. E a punição, em um sentido mais técnico, não é uma situação formal em que uma pessoa simplesmente castiga a outra. O contexto punitivo é simplesmente o contexto em que a consequência de nossas ações é dolorosa.

Se tudo o que você faz resulta sempre em sofrimento, a tendência é uma espécie de desânimo generalizado, é não querer fazer mais nada. Imagine uma pessoa que tem uma doença debilitante, que produz dor crônica dia e noite. Essa pessoa, obviamente, está mais vulnerável à depressão. Podemos, e devemos, fazer inúmeras críticas ao capitalismo. Mas qual é a relação do capitalismo com isso?

Então se uma vida na qual prevalecem consequências dolorosas é mais vulnerável a sintomas de depressão, uma vida esvaziada de gratificações também não produz resultado muito diferente. Embora talvez possam ocorrer diferenças de magnitude e de oportunidades para poder se lidar com o problema.

Muitas pessoas, atualmente, não têm hábitos saudáveis, por uma série de motivos:

- Não possuem uma higiene adequada do sono, muitas inclusive em comportamentos como o que estou tendo agora, à 1 hora da manhã, de frente para um tela, com luminosidade na cara, inibindo a produção de melatonina. Não têm rotina de sono. Frequentam baladas várias vezes na semana, tendo dias em que dormem muito tarde e outros não, ou então fazendo o uso abusivo principalmente de bebidas alcoólicas e tabaco. Ou com frequência ficam jogando videogame, assistindo televisão ou na internet até 4 horas da manhã, para depois acordar uma hora da tarde. Outras simplesmente trocam o dia pela noite e, convenhamos, trocar o dia pela noite é algo que contraria completamente uma série de recomendações para uma vida saudável. E isso não é simplesmente culpa do capitalismo. Um conservador, bem capitalista, poderia dizer que é falta de disciplina e dissolução da família, tendo como consequência a ausência da figura paterna, de autoridade, e blablablá...

- Comem muita comida processada, com uma dieta pouca variada, pouca fibra, com excesso de carboidratos simples, frituras, sal e açúcar.

- Não fazem qualquer tipo de atividade física, e se expõem muito pouco à luminosidade natural e espaços ao ar livre.

- Fora as pessoas que estão muito atribuladas, estressadas, com uma série de atividades e compromissos que tomaram para si, e não estão dando conta. É óbvio que isso não acaba bem. E fique à vontade para botar isso na conta do capitalismo, ou de quem você achar melhor.

- Sem contar uma série de situações que são produtoras de sintomas de ansiedade e depressão: desemprego, assédio no ambiente de trabalho, relacionamentos abusivos, vínculos frágeis e instáveis, conflitos familiares intensos e frequentes, ou a diminuição de vínculos comunitários, devido à intensificação da urbanidade, e consequentemente da individualização, em todo o processo de desenvolvimento da modernidade na história da civilização ocidental, etc...

Da mesma forma que algumas pessoas querem colocar tudo na conta do capitalismo, dá para um conservador tranquilamente colocar tudo na conta da dissolução da família e da degeneração dos costumes.

Thursday, June 18, 2020

Aniversários


Por ser uma criança muito sensível, meu pai imaginava que eu não resistiria às durezas da vida, mas eu de vez em quando levantava, dava uma renascida. Aos 13 e 14 anos de idade me vi no abismo de me perceber como um completo estranho nesse mundo. Esperei, quietinho, e contava os dias, durante meses, a fio, como um condenado: "mais um dia de resistência, mais um dia...". Até que de repente parei de contar, porque não estava mais somente resistindo, sobrevivendo.

Agora eu vivia novamente, como a gente sabe, como a gente ouve, de muita gente...

Os anos se passaram e consegui me embrutecer, e ver meu irmão mais velho, que sempre fora tido como durão, começando a abrir o olho para um mundo mais vasto, injusto e barulhento.

Mas ninguém que não seja um psicopata, cego para os outros, e incapaz de amar e cuidar, é tão durão. Ele se sensibilizava, começava a ver o mundo como eu já tinha visto e sentido, e me pedia desculpas pelo passado. Eu, já embrutecido, em paz com ele e com o passado, tentava mostrar-lhe que estava tudo bem, que tinha passado.

E ele, o predileto de meu pai, mas massacrado pelas vias tortas de um mundo embrutecido, depois de mais de 10 anos se dando conta do volume de dores que compõe a vida da maioria dos seres que sofrem, não resistiu ao peso de também se sentir um estranho nisso tudo.

Hoje, no meio dessa pandemia, em que contamos os dias de resistência, acordo novamente com uma impressão, já um pouco envelhecida, de que comemorar um aniversário é muitas vezes um brinde, envergonhado e discreto, no meio da lama de um campo de batalhas, onde muitos já caíram.

Então brindo, ou me curvo, à memória dos que caíram, em respeito e reverência à dor de todos os seres que sofrem, e aos meus 48 anos de idade, completos hoje, 18 de junho de 2020.

Monday, June 01, 2020

Relacionamentos desgastados 2

Um psicoterapeuta pode ajudar, e muito, facilitando o aprendizado de novas formas de comunicação e interação com os outros. Pode ajudar um pai a conviver melhor com seus filhos, ajudar cônjuges a se comunicarem melhor. Mas as relações se desgastam e pouco aprendemos se continuamos a conviver com as mesmas pessoas, ou mantendo nossos círculos de amizade e influências. Por isso que muitas vezes é importante mudar: de endereço, de local de trabalho, renovar círculos de amigos, etc. Porque é muito mais difícil de alterar o que as pessoas esperam da gente, o que nossa família, por exemplo, sempre esperou e exigiu de nós. Relacionamentos desgastados e viciados muitas vezes só se recuperam com novos relacionamentos, que nos ensinam novas formas de se lidar com a vida.

Relacionamentos desgastados

Penso que uma grande dificuldade nas relações amorosas é muitas vezes o desgaste. Se após as devidas ponderações e reflexões, junto ao paciente, ele decidir que irá tentar permanecer no relacionamento em que já está, a mudança será incentivada através da proposição e obediência a novas regras, as quais muitas vezes também contemplam por uma certa renovação no círculo de influências.

Porque é muito difícil, por exemplo, uma mudança no sentido de um homem começar a ter comportamentos menos machistas, em um relacionamento conjugal, se seu círculo de amigos, de influência, é bastante machista.

Sobre essa questão do machismo inclusive pude atender um paciente que tinha um problema sério com sua ex-esposa. Ela não era mais sua esposa há alguns anos, e mesmo assim ainda era fonte de muitos problemas.

Haviam se separado devido a infidelidade por parte dela. E a vida dele havia simplesmente despencado depois da descoberta de sua infidelidade. Percebi, juntamente com ele, que o que mais o fazia sofrer era a pressão de sua família para que ela fosse agredida ou morta, coisa que ele não fez. Quando o adultério dela se tornou público, o status social dele despencou.

Os grupos sociais com os quais ele convivia eram extremamente machistas. Nesse contexto, ele não ter matado a mulher ou o amante dela gerava-lhe bastante sofrimento. Acreditar que ele iria resolver o problema dele continuando a conviver com as mesmas pessoas seria insensato. A renovação de seu círculo de influências era algo urgente, e essa oportunidade logo se insinuou com a possibilidade da mudança de endereço. Foi essa a meta que estabelecemos na última vez em que nos vimos. Contudo não mais o vi, e não sei se veio de fato a se mudar, para ficar longe daquelas pessoas que o influenciavam de modo bastante nefasto.

Conseguir dizer adeus, e ir embora, é muitas vezes o primeiro passo para um processo de construção de uma nova identidade. E isso não encerra com o trabalho de prevenção de generalizações e reconstrução das interações em novas bases, para se forjar novas estruturas. Certamente que a pessoa muitas vezes troca de endereço, de casamento, ou de amigos, e continua a se comportar do mesmo modo que se comportava antes. Porém parece-me que, apesar da tendência à repetição, essa fica muito menos facilitada se a pessoa consegue escapar de relacionamentos nos quais seu papel estava estereotipado, ou então passa a conviver com pessoas cujos valores são completamente diferentes daqueles dos círculos dos quais fazia parte anteriormente.