Há um ramo de atuação em psicoterapias denominado terapia estratégica. Teci algumas reflexões sobre esse tipo de modalidade em minha tese de doutorado, a qual depois se transformou em livro. Como é uma tese sobre ironia, achei que abordar a questão da terapia estratégica seria interessante, porque é, em alguns aspectos, surpreendente e contraditória. E como se sabe, surpresa e contradição são elementos que compõem a ironia, seja ela instrumental ou observável.
Então estratégia, desse modo, pode ser compreendida como um artifício que aparentemente entra em contradição com um propósito inicial, e acaba por gerar alguns efeitos de sentido.
Um caso (não sei se real ou fictício) citado com frequência na literatura é o de uma paciente, com frequentes e incontornáveis dores de cabeça, que chega até o terapeuta depois de ter passado por vários profissionais, principalmente médicos, com uma pilha de exames, poliqueixosa, exigente, um pouco ríspida, a dizer que tudo havia sido tentado, sem qualquer tipo de avanço ou sucesso.
Caso difícil, de um tipo de paciente que não se satisfaz com nada, em que todos os profissionais, em tese, fracassaram.
Foi aí então que esse terapeuta resolveu fazer uma intervenção estratégica:
- Com esse histórico o que fica claro é que suas dores de cabeça não têm cura. O acompanhamento comigo será somente para você se acostumar e ir lidando melhor com esse problema que não tem solução.
- Eu vim aqui para ver se encontro uma solução. Se for para eu me acostumar, eu me acostumo na minha casa...
Saiu da sessão contrariada, sem remarcar retorno. Disse que iria pensar se valia a pena entrar em um processo psicoterápico com aquele profissional.
Dias depois telefonou para remarcar um retorno para duas semanas depois. Chegando na sessão seguinte comunicou que já estava sem as dores de cabeça havia mais ou menos uma semana.
- Mas não se iluda. Suas dores de cabeça irão voltar - asseverou o terapeuta.
Ela retorna na semana seguinte, e bate o pé, tentando demonstrar que as dores de cabeça foram definitivamente embora, e o terapeuta insiste de que as dores irão voltar. E esse embate perdura por algumas semanas, sem o retorno das torturantes dores de cabeça, até que de repente essa paciente começa a se abrir para outros temas, talvez mais importantes e intimamente relacionados com uma queixa que ela vinha carregando durante tanto tempo.
Alguns exemplos de intervenções estratégicas também podem ser encontrados na literatura claramente de ficção.
Na obra "O analista de Bagé", de Luis Fernando Veríssimo, era comum que esse terapeuta, o analista de Bagé, fizesse algumas intervenções bem violentas com seus pacientes, e uma delas era o famoso e temido joelhaço, que ele utilizava com frequência. Vamos a um trecho:
"― É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
― Tô te ouvindo ― diz.
― É uma coisa existencial, entende?
― Continua, no más.
― Começo a pensar, assim, na fìnitude humana em contraste com o infinito cósmico...
― Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
― E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana. E isso me angustia.
― Pois vamos dar um jeito nisso agorita ― diz o analista de Bagé, com uma baforada.
― O senhor vai curar a minha angústia?
― Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
― Mudar o mundo?
― Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
― Mas... Isso é impossível!
― Ainda bem que tu reconhece, animal!
― Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
― Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
― Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta...
― Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
― Me alimento.
― Tem casa com galpão?
― Bem... Apartamento.
― Não é veado?
― Não.
― Tá com os carnê em dia?
― Estou.
― Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
― O Freud não me diria isso.
― O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
― Não.
― Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
― Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :
― É pior que joelhaço?"
A história termina assim, e quem já vinha lendo o livro entende muito bem que esse paciente, após a ameaça de um joelhaço, para imediatamente de blasfemar, de ficar fazendo racionalizações que não teriam relação alguma com problemas concretos a serem trabalhados em uma psicoterapia.
Outra história bastante conhecida é a do bode na sala. Havia um conselheiro ou terapeuta, em algum canto do mundo, que vez ou outra utilizava a intervenção do bode na sala. As pessoas chegavam até ele com várias queixas, e ele dizia que a cura estava em pegar um bode para criar dentro da sala de casa. O problema é que a vida dessas pessoas piorava bastante com esse bode. Porque imagine o estrago que faz um animal desses dentro de uma casa.
Aí obviamente a coisa chegava em um ponto em que as pessoas diziam que a vida delas havia piorado bastante, e o conselheiro então pedia para que elas retirassem o bode da sala. Após a retirada do bode, essas pessoas sentiam um alívio tão grande, a ponto de dizer que a vida delas havia melhorado, e que não havia mais motivos para reclamar do que antes reclamavam.
Todas essas intervenções, fictícias ou até bem próximas da ficção, têm algo de surpreendente, contraditório e até mesmo risível. São irônicas.
Então a terapia estratégica tem algo que é da ordem da ironia. E o que é a estratégia? O que significa esse termo? É estratégico tudo aquilo em que se age de uma maneira totalmente diferente do esperado, do trivial, para se obter um resultado. Então, se somos muito irritadiços, é estratégico atuar, mesmo que disimuladamente, de modo calmo.
Se o inimigo espera um combate franco, encontrará o silêncio e um terreno vazio. O blefe, a mentira, a dissimulação e o fingimento são elementos muito comuns quando se fala em estratégia. Porque é importante agir de modo completamente imprevisível, para contornar um problema ou resolver uma determinada situação.
Então, nesse sentido, vários artifícios podem ser utilizados. E os artifícios, o que são? Muitas vezes é ludibriar, iludir, mentir. Mas tudo de um modo muito eficaz, para que o outro não tenha como saber que isso foi feito. A pessoa que foi envolvida em uma estratégia pode até desconfiar, mas ela está de tal modo em contato com a duplicidade da ironia de quem a manipula, que ela nunca vai saber de fato o que aconteceu. Porque na relação com uma pessoa irônica a nossa desconfiança às vezes se mostra acertada, e aquela pessoa está de fato falando uma coisa que não corresponde à realidade. Porém, em outros momentos não é assim, e tudo parece circular em torno de um clima muito forte de indefinição e ludicidade sedutora. O que às vezes confere uma aparência de suavidade para a interação.
A guerra demanda bons estrategistas, assim como a política. Porque não é político somente quem sabe conversar ou fechar bons acordos. É também aquele que age constantemente com uma perspectiva estratégica. Sabe que diferentes interlocutores precisam de diferentes abordagens, e que nem todo mundo merece a verdade. E que esta, a verdade, precisa de momentos muito específicos para poder ser proferida, e às vezes esses momentos se encontram em um futuro não tão próximo, que precisa ir aos poucos sendo construído.
Essa foi somente a primeira parte. Escreverei por aqui mais textos sobre estratégia. Mas antes preciso ler "A arte da guerra", que não li ainda...
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