Tuesday, June 06, 2017

Valentões e terapia

Agressividade, força e coerção são modos de atuação viciantes. Os resultados, as gratificações, costumam aparecer rapidamente. As pessoas ficam com medo, obedecem ou devotam respeito, e até admiração, a quem assim se comporta.

Valentões, em uma terapia, costumam perceber os efeitos colaterais, e geralmente chegam até nós, psicoterapeutas, em virtude de algum sofrimento decorrente do uso constante e excessivo da força, da violência, de sua capacidade de ameaça e de intimidação.

Percebem uma série de danos que causam nas pessoas, e em si mesmos, em virtude de seu "vício". Mas relatam que não conseguem deixar de explodir, de usar da força, de apelar para a violência quando precisam resolver alguma questão ou alcançar algum objetivo. A maioria inclusive nem percebe que assim agindo estão alcançando seus objetivos, e que muito dificilmente mudarão seu comportamento se os resultados continuarem sendo os mesmos, se as pessoas continuarem demonstrando medo, obedecendo, fazendo exatamente o que eles querem.

Certa vez ouvi de um deles, o qual inclusive já se mostrava mais sensibilizado com isso tudo, demonstrando um pouco de culpa:

- Mas você tá querendo dizer o quê, Adriano, que eu escolhi ser assim, que eu, além de todos os prejuízos que tenho tido em minha vida, ainda sou culpado por tudo isso?

Sua culpa já era mais do que suficiente, e não alteraria muito a situação sentir ainda mais culpa do que já estava sentindo. Não basta ficar se sentindo culpado, e simplesmente não ter a menor ideia do que fazer, de como agir para poder começar a resolver seus problemas. Fora o fato de que ninguém tem culpa ou mérito por ser o que é. Culpa ou​ mérito talvez somente se apliquem a ações ou interações específicas, para as quais precisamos definitivamente apontar os responsáveis diretos. Cada um ser o que é, e ter ou não responsabilidade sobre isso, é outra história.

Mas aí, em terapia, não tem outro jeito: é necessário escuta e acompanhamento constantes, para que essa pessoa vá descobrindo quais são especificamente os contextos que despertam seus episódios de agressividade e violência, assim como também saber quais são as consequências desse tipo de comportamento.

E bastará essa pessoa ter conhecimento sobre os determinantes de seus comportamentos indesejáveis? O autoconhecimento será suficiente? Não, porque muitas pessoas também mudam sem simplesmente terem tido conhecimento sobre os determinantes de seus comportamentos. Autoconhecimento porém costuma ser importante porque facilita o autocontrole, se é que isso existe.

Mas o que estou tentando dizer, e que inclusive se relaciona com essa questão das responsabilidades sobre sermos o que somos, é que as consequências, os resultados, precisam ser alterados, e essas consequências somente serão alteradas por outras pessoas, e não pela própria.

Muitos terapeutas esperam que a própria relação com eles (com o terapeuta) seja um dos mecanismos dessa mudança. Esperam que o paciente passe a seguir algumas novas regras que são construídas durante a terapia, na relação do paciente com o terapeuta. Juntos elaboram algumas estratégias, para as quais são necessários​ o consentimento e a motivação do paciente para realizá-las. A partir disso espera-se que o paciente comece a cumprir o que foi planejado, e que as gratificações provindas do próprio terapeuta (e de suas novas relações com o mundo) sejam suficientes para que o paciente continue se esforçando.

O paciente sai do consultório e volta para a sua casa, para o seu mundo cotidiano, e começa a tentar se comportar de maneira diferenciada, assim como também procura se observar de modo mais detalhado, atentando-se às consequências desses novos comportamentos.

Feito isso, retorna às sessões posteriores para debater e analisar como essas mudanças estão impactando sua vida. Trata-se de fazer diferente e observar a consequência. E tudo isso será analisado e pensado de modo detalhado nas sessões posteriores. Há muito de tentativa e erro, de testagem, de esforço constante na direção das​ mudanças​, as quais geralmente vão se implementando de modo bastante gradual, não-linear e lento, com períodos inclusive de regressão.

Geralmente se avança alguns passos, e em um próximo momento se retorna alguns outros, ou mesmo esses passos acabam por serem completamente apagados. Ser terapeuta é saber lidar constantemente com a impotência e o fracasso, os quais estão e estarão sempre presentes. Vitórias e progressos sólidos e definitivos existem, mas não me arrisco a dizer que são a regra.

Atuar em um CAPS de grande porte nos proporciona com mais clareza essa dimensão, porque podemos observar o trabalho de nossos colegas e o quanto também ralam com as imensas dificuldades que existem para que as pessoas consigam mudar de vida.

Minha maior gratificação não é a proporção de sucesso nessa empreitada de corpo e alma. Minha maior gratificação é a própria interação com quem está sofrendo, e perceber que essa interação é capaz de diminuir muito de seu sofrimento.

Ser terapeuta é atuar em uma profissão que dedica muito amor na relação com os pacientes. É o prazer de estar junto, de acompanhar, de cuidar, de conhecer histórias fascinantes, de saber que há uma riqueza muito grande na diversidade imensa das possibilidades de relação entre as pessoas, porque geralmente existe um mundo vasto e envolvente na história de cada pessoa para a qual dedicamos nossa escuta e companhia. É participar ativamente da construção, e da reconstrução, da vida e da história dessas pessoas.

Sunday, June 04, 2017

Histeria coletiva

Mesmo no caso da histeria coletiva há uma especificidade do contexto: algumas pessoas, em uma determinada comunidade, de repente apresentam sintomas que comprometem sua funcionalidade. A histeria coletiva diz respeito a um transtorno específico, o transtorno de conversão. É muito diferente, mas muito diferente mesmo, de tentar abusivamente afirmar que governistas ou não-governistas padeceriam de algum tipo de transtorno mental.
Se você quer afirmar de modo vulgar, ou como força de expressão, que um determinado grupo de pessoas, do qual você discorda, é simplesmente louco, fique à vontade. Não vejo muitos problemas nisso.

Somente não queira obter, de profissionais da área de saúde ou pesquisadores, algum diagnóstico de transtorno mental para essas pessoas. Seria antiético, abusivo. Isso é classificado como abuso psiquiátrico e já ocorreu com frequência, em nossa história, sempre que tentaram desqualificar, neutralizar, isolar ou exterminar pessoas que têm um posicionamento ideológico diverso daquele dominante em um determinado contexto.

É querer carimbar e colocar um rótulo (falso) de comprovação científica em adversários e assim exclui-los do debate político. Isso é, no mínimo, autoritário, antidemocrático.

Para quem quiser se aprofundar um pouco no debate, sugiro começar pela leitura do verbete sobre o tema, na Wikipedia:


Fiz também dois vídeos que tangenciam esse tema:

Equivocados ou loucos? Qual é o limite entre o equívoco e o delírio?

Existe loucura coletiva?


Como diminuir a desigualdade social no Brasil?

Sabemos que na Europa Ocidental e, de modo geral, no países ricos, um trabalhador, cuja mão-de-obra não é qualificada, recebe uma remuneração muito mais digna do que no Brasil. Sabemos que lá a distância entre um médico e um pedreiro não é tão grande como no Brasil. Há menos disparidade de salários do que aqui. Há menos desigualdade social.

E como fazer para diminuir as desigualdades sociais?

Há dois caminhos básicos. Um é ditado pelo mercado, pela lei da oferta e da procura. Se há um contingente muito grande de pessoas disputando vagas em postos de trabalho menos qualificados, logo o preço da mão-de-obra cai. No Brasil é isso o que ocorre, devido às nossas conhecidas deficiências no campo educacional. Formamos mão-de-obra qualificada ainda de modo bastante deficiente.

Contudo nos últimos 14 anos houve maior acesso ao ensino superior e técnico, além do fato de que o fortalecimento de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, também ajudaram incrementar o preço da mão-de-obra não qualificada. Programas como o Prouni, Pronatec e Bolsa Família tiveram um papel fundamental nisso. Remodelaram um pouco o mercado, produzindo maior concorrência em pontos mais altos da pirâmide do mercado de trabalho. Quanto maior a concorrência, menor o preço da mão-de-obra. Isso acirrou um pouco a concorrência na base dessa pirâmide. As empregadas domésticas e diaristas puderam, por exemplo, ter uma vida um pouco mais digna.

Um outro caminho para se diminuir as desigualdades sociais é a reforma tributária, a qual ainda não fizemos. O Brasil é um dos países em desenvolvimento onde os mais ricos são menos taxados. Segundo reportagem da BBC: “O que está por trás do tamanho da carga tributária brasileira é o grande volume de impostos indiretos, ou seja, tributos que incidem sobre produção e comercialização – que no fim das contas são repassados ao consumidor final. (...) O grande problema é que esses impostos indiretos são iguais para todos e por isso acabam, proporcionalmente, penalizando mais os mais pobres. Por exemplo, o tributo pago quando uma pessoa compra um saco de arroz ou um bilhete de metrô será o mesmo, independentemente de sua renda. Logo, significa uma proporção maior da remuneração de quem ganha menos.”

Então continuemos lutando por algumas coisas importantes: manutenção de programas como Prouni, Pronatec e Bolsa Família, e que haja reforma agrária e uma reforma tributária, no Brasil, a qual faça com que nossos impostos sejam mais progressivos e menos focados na produção. Porque de pouco adiantará acreditar que essa mudança se dará simplesmente pela via moral ou cultural. É preciso de lei porque somos, de modo geral, pouco capazes para o amor.

Fontes:
Rico é menos taxado no Brasil do que na maioria do G20 (BBC)
Redução da desigualdade requer reforma tributária (IPEA)

Thursday, June 01, 2017

Matar, fazer sofrer e veganismo

Para você que gosta de comer carne e fica incomodado com a superioridade moral dos veganos, a qual é um fato, a qual realmente existe, posso lhe dizer uma coisa que talvez o tranquilize um pouco: sob determinadas condições não é antiético comer alimentos de origem animal. Sim, você tem o direito moral de matar, e pode exercê-lo com gosto, com tranquilidade.
Há seres que sofrem (sencientes) e que não tem o direito à vida: não faz sentido ético que o tenham. Talvez somente alguns primatas e cetáceos devam ter o direito à vida. Isso quer dizer que podemos matar a maioria dos seres sencientes para sobrevivermos ou satisfazermos nossas necessidades e desejos.
Mas não podemos torturá-los, prolongar seu sofrimento. Não podemos, por exemplo, criá-los em espaços minúsculos, insalubres, em ambientes que no final das contas são torturantes. Isso é impor-lhes uma vida miserável, extremamente sofrida.
Que os métodos de criação se tornem menos sofridos e mais próximos do ambiente natural desses animais, e que o abate seja rápido e, na medida do possível, indolor. É isso. Podemos matar dezenas de bilhões de animais, como já o fazemos todos os anos. Só não podemos torturá-los, que é o que infelizmente ainda ocorre, devido principalmente às formas de criação e abate.
Matar não é necessariamente antiético. É muitas vezes um dever, uma necessidade. Antiético é fazer sofrer, ou permitir o sofrimento, sendo que isso poderia ser evitado.

O relativismo moral é irracional e contra os direitos humanos

Os códigos morais variam conforme o contexto sócio-histórico-cultural. Mas defender que não existe a possibilidade de uma ética objetiva (de que é impossível definir objetivamente o que é bom ou mau, após a análise criteriosa e sistemática de alguns contextos específicos das interações entre os seres que sofrem) é definitivamente jogar todo empenho, história e utilidade da Ética e da Bioética no lixo. E mais: se a ética é subjetiva, definir o que é bom ou mau depende somente de uma guerra de umbigos. Isso é irracional: afirma a força como mais importante do que a razão. Afirma que no final das contas o veredito será dado em favor do mais forte. É permitir a ditadura da maioria. É ser contra os direitos humanos.

A minha impressão é existe uma certa confusão conceitual nesse debate. Penso que existem dois níveis conceituais envolvidos. O primeiro diz respeito aos códigos morais, os quais variam em termos temporais, geográficos, culturais e sociais. O segundo nível diz respeito à questão da existência do bem e do mal. E aí talvez seja necessária a restrição ao que é fundamental. Na minha concepção é fundamental se pensar sobre a essência do mal. Penso que o mal existe sim e, claro, a experiência do mal irá variar de sujeito para sujeito, mas isso não quer dizer que não exista. Varia, mas não deixa de existir. Objetivamente existe. O mal é o sofrimento.

Desde a formulação do paradoxo de Epicuro, séculos antes de Cristo, isso é bem sabido. O mal objetivamente existe porque o sofrimento objetivamente existe. Os seres sencientes sofrem. Os seres humanos sofrem. E boa parte do empreendimento humano visa a construção de dispositivos, estruturas ou realidades para que esse sofrimento seja diminuído. E o bem se refere a toda ação que diminui ou extingue sofrimentos evitáveis, ou toda ação que vise à compreensão de como transformar sofrimentos inevitáveis em evitáveis.