Saturday, March 14, 2015

PIADAS SOBRE O CÂNCER DE DILMA

Há poucos dias, um colega de Facebook, Alexey Dodsworth Magnavita, de certo modo expressou sua condenação moral em relação a postagens de médicos “torcendo” ou fazendo piada com o câncer de Dilma ou de Lula. Para quem quiser ler o que ele escreveu sobre isso, eis o link, abaixo:


Acho que suas considerações são instigantes para se refletir sobre ética e moral. Fez com que eu pensasse uma série de coisas. Tento, abaixo, transcrever um pouco do que pensei sobre tudo isso.

Sou servidor do SUS, e tenho portanto muitos colegas médicos, assim como enfermeiros e outros especialistas da área de saúde. A minha percepção, pelo menos nos setores onde atuo, é a de que os médicos estão, em sua grande maioria, ou em boa parte, unidos contra o governo Dilma, contra o PT. Também tenho a impressão de que boa parte deles faz esse tipo de piada ou não se incomoda com isso.

Porém, o mais interessante é que um desses meus colegas (o qual considero um dos mais éticos, senão o médico mais ético com o qual convivo profissionalmente) não se cansa de fazer esse tipo de piada em relação ao câncer de Lula ou de Dilma.

Eis então a contradição: uma ética deontolológica talvez o condenasse, contudo uma ética consequencialista pondera os benefícios e malefícios de suas ações.

E, sinceramente, eu prefiro ele fazendo piada de mau gosto e tratando de modo humanizado os pacientes e seus familiares, do que o contrário. No caso dele acho que não ocorre nem mesmo incitação ao ódio, pois ele não tem poder de comunicação de massa pra isso.

Acho que talvez resida aí algo parecido com um dilema moral que li em Comte-Sponville. O sujeito está se afogando e o outro, com um remo de madeira, tenta acertar-lhe a cabeça para matá-lo. Contudo, erra e o remo serve como uma bóia salva-vidas. Assim, o sujeito que estava se afogando acaba salvo. A outra situação ocorre quando uma pessoa arremessa um remo de madeira para salvar essa pessoa que está se afogando. Porém, por uma infelicidade, esse remo acerta a cabeça do sujeito e ele acaba morrendo.

Comte-Sponville não hesita em deixar claro que a ação mais moral é a do segundo caso, apesar das consequências serem muito mais trágicas.

No entanto, o lugar comum a enunciar que “de boas intenções o inferno está cheio” talvez possa também servir para esse caso. Tenho a impressão de que a geração de benefícios para o outro (para todos, para o maior número possível de seres sencientes), “o caminho do bem” ou uma existência mais virtuosa, também devem se alertar para o autoconhecimento, “o julgar bem para fazer bem”, a importância da técnica no fazer ético. Sem perícia ou prudência, mesmo que sem dolo, a ética também tende a perder. Um altruísmo desesperado pode, em muitas situações, ser mais nefasto do que a consciência e um certo exercício sublimado de nossas pulsões destrutivas, já nos lembrava Freud.

Sinto que as piadas desse meu colega médico não produzem malefício algum. Na obra "Os chistes e sua relação com o inconsciente", Freud defende que os chistes (as piadas) atuam conciliando exigências do Isso (Id) com exigências do Supereu (Superego). Os chistes satisfazem, portanto, tanto nosso lado impulsivo, selvagem, quanto as exigências morais do Supereu.

Fazer piadas, em muitos casos, pode ser até mesmo mais saudável do que não reconhecer em nós mesmos muitos desejos ou propensões censuráveis pelos agrupamentos sociais dos quais fazemos parte. Invés de uma ética apriorística ou purista, atenção para as consequências, para os resultados práticos, concretos, de nossas ações no mundo.

A minha questão é: existe alguém que nunca desejou o mal de outras pessoas? Quem nunca sentiu ódio ou inveja? Quando Alexey fala em sacerdócio no exercício da medicina, penso em alguns conceitos próximos, talvez mais simples, sem que precisemos apelar para um exercício demasiadamente idealizado de uma determinada atividade profissional. Pode se falar, por exemplo, no conceito de vocação, de gostar realmente da profissão que escolheu, de exercê-la com gosto, com amor, e não simplesmente pelos ganhos financeiros ou pelo status que ela pode proporcionar, ou o exercício que deve se lançar em um altar sagrado de sacrifícios e abnegações duvidosas.

Outro dado de realidade é que no contexto brasileiro a medicina adquiriu uma aura muito glamourizada. É uma profissão almejada por quem deseja muito poder, prestígio, sucesso. Esses jovens, em sua maioria, provêm de famílias mais abastadas. É uma profissão que promete muito a esse jovem.

A glamourização produz promessas que se descolam da realidade. O resultado, sabemos, é uma frustração atrás de outra. E há também uma disparidade muito grande (tanto em relação aos ganhos financeiros quanto ao prestígio social) entre a medicina e as demais áreas da saúde, ou mesmo em relação à carreira acadêmica, por exemplo. A minha impressão, portanto, é que essa glamourização, e essas disparidades, mais têm feito mal do que bem para o exercício ético dessa profissão.

Conheço professores universitários e pesquisadores que estudaram muito mais, que se dedicaram muito mais à sua profissão do que a maioria dos médicos, e ganham muito menos, tendo inclusive um prestígio social muito menor, isso sem precisar se falar em sacerdócio e abrir as pernas para as alegações bizarras de um Cid Gomes da vida: “Quem quer dar aula faz isso por gosto, e não pelo salário”. Isso abre portas para o outro extremo: a exploração descarada, a qual, convenhamos, cientificamente não rima muito com motivação e bom desempenho em qualquer atividade que seja.

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