Monday, July 05, 2010

Deus e a questão do mal

A questão do mal é uma questão clássica em metafísica e filosofia cristã. Uma definição plausível para o mal é concebê-lo como toda e qualquer forma de sofrimento. Se algum ser sofre, eis o mal. Alguns objetarão: não, o mal diz respeito somente aos sofrimentos injustos ou injustificados. Pois “há males que vêm para o bem”, e estes seriam os justificados, os sofrimentos que possuem alguma utilidade. Exemplo: você vai ao dentista, sofre um pouco, mas previne males muito maiores. Mas a grande questão é que há males, sofrimentos, cuja utilidade não compreendemos, e cuja injustiça também é alarmante. E eis aí a questão: se Deus pode tudo e é absolutamente bom, por que permite injustiças incompreensíveis, irracionais e que causam tanto mal? Males inúteis, por que os permite?

Em termos lógicos, há uma resposta básica: não dá pra Deus ser ao mesmo as duas coisas. Ou pode tudo e não é absolutamente bom, ou é absolutamente bom e fraco. Como já vimos no texto anterior, a onipotência é racionalmente impossível, não tem cabimento. Mas, por ora, suponhamos que seja. Se assim o fosse, teríamos de lidar com uma possibilidade absurdamente assustadora: a de um Deus onipotente, absolutamente poderoso e que também possui maldade. Ou seja, pode castigar-nos quando bem quiser, e sem muita justificativa. Essa possibilidade gera muito medo. Imaginem só: um Deus tirânico, caprichoso. Um Deus que também é mau. Um cara absolutamente poderoso e que pode arruinar com sua vida e torná-la um pesadelo sem fim. Deus do céu, esse seria um Deus dos infernos para seus desafetos. Sim, pois se não é absolutamente bom, Ele também teria desafetos.

Esse Deus onipotente, e que não é absolutamente bom, submete a todos, por medo. A crença nele é forçada pelo medo de ser aniquilado. O ato de entrega e fé, é um ato de render-se a algo maior que você e que pode lhe destruir. Lembro do personagem de Tv, o médico Gregory House, assim dizendo aos crentes: “Vocês acreditam em Deus porque temem que Ele os esmague como formiguinhas”. É a fé motivada pelo medo. Pelo medo de desobedecer ao todo poderoso e ser castigado.

Porém, se continuarmos pela linha de raciocínio do texto anterior, a onipotência não tem cabimento. Então, esse ser todo poderoso não existe e nada precisamos temer de infalível e eterno. Assim nossa miséria fica menor, penso eu. Melhor saber que Deus, mesmo que existisse, não poderia tudo. Melhor, muito melhor. Quem pode tudo não dá alternativas a quem não pode nada, a não ser calar a boca, obedecer e fim de papo. Me sinto muito melhor com essa ideia de que ele não pode tudo. Isso me dá muito mais liberdade para continuar pensando e seguindo a trilha da lógica, da sensatez. Permite a liberdade e a responsabilidade, esses dois fundamentos tão importantes da maturidade. Se ele não pode tudo, temos liberdade. Do contrário, estamos eternamente amordaçados.

Como a onipotência é uma impossibilidade, somente nos resta a alternativa mais suave e sensata: ele não pode tudo e é absolutamente bom. É fraco, como nós, porém absolutamente bom.

Mas Deus como fraco e absolutamente bom, ainda nos deixa algumas questões. Como uma entidade absolutamente boa pode ter criado o homem, com todas suas imperfeições e injustiças? Comte-Sponville, no “Pequeno tratado das grandes virtudes”, levanta algumas questões interessantes, em belíssimas e instrutivas passagens (1995, p. 292 – 294):

“Por que Deus iria criar o que quer que seja, se ele mesmo é todo o ser e o todo o bem possíveis? Como acrescentar ser ao Ser infinito? Bem ao Bem absoluto? Criar só tem sentido, nessa lógica da potência, desde que para melhorar, pelo menos um pouco, a situação inicial. Mas é o que Deus, mesmo onipotente, não poderia fazer, pois a situação inicial, sendo o próprio Deus, é absolutamente infinita e perfeita! Alguns imaginam Deus, antes da criação, como insatisfeito consigo, como um aluno exigente que escrevesse, à margem de seu próprio dever ou de sua própria divindade: “Pode fazer melhor”… Mas não: Deus não pode fazer melhor do que ele é, nem mesmo igualmente bem (pois teria então de criar a si mesmo, portanto não criar absolutamente nada: é esse, talvez, o sentido da Trindade). Deus, se quiser criar outra coisa que não ele, isto é, criar, só poderá fazer menos bem que si mesmo. Melhor dizendo, ou pior: Deus, já sendo todo o bem possível e não podendo, por conseguinte, aumentá-lo, só pode criar o mal! Daí este nosso mundo. Mas então: por que cargas d’água tê-lo criado?

Esse problema é tradicional. Mas talvez ninguém o tenha percebido melhor, nem resolvido melhor, se é que se possa fazê-lo, do que Simone Weil. O que é este mundo, pergunta ela, senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)? Deus só pôde criar o mundo retirando-se dele (senão só haveria Deus); ou, se nele se mantém (de outro modo não haveria absolutamente nada, nem mesmo o mundo), é sob a forma da ausência, do segredo, da retirada, como a pegada deixada na areia, na maré baixa, por um passeante desaparecido, única a atestar, mas por um vazio, sua existência e seu desaparecimento… Temos aí uma espécie de panteísmo em negativo, que é a recusa de qualquer panteísmo verdadeiro ou pleno, de qualquer idolatria do mundo ou do real. “Esse mundo enquanto totalmente vazio de Deus é Deus mesmo”, e é por isso que “Deus está ausente, sempre ausente, como indica de resto a famosa prece: “Pai nosso que estás no céu…” Simone Weil leva a expressão a sério, e tira dela todas as conseqüências: “É o Pai que está no céu. Não em outra parte. Se acreditamos ter um Pai aqui na terra, não é ele, é um falso Deus.” Espiritualidade do deserto, que não encontra ou não prega mais que “a formidável ausência, por toda parte presente”, como dizia Alain, a que responde, em sua aluna, esta fórmula surpreendente: “É preciso estar num deserto. Pois aquele que é preciso amar está ausente.” Mas por que essa ausência? Por que essa criação-desaparecimento? Por que esse “bem feito em pedaços e espalhado através do mal”, estando entendido que bem possível já existia (em Deus) e que o mal só existe por essa dispersão do bem, pela ausência de Deus – pelo mundo? “Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a como uma distância”, escreve ainda Simone Weil. Que seja. Mas por que essa distância? E, já que essa distância é o próprio mundo, enquanto ele não é Deus (e ele só pode ser o mundo, evidentemente, desde que não seja Deus), por que o mundo? Por que a criação?

Simone Weil responde: “Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou outra coisa que não o próprio amor e os meios do amor.” Mas esse amor não é um mais de ser, de alegria ou de potência. É exatamente o contrário: é uma diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. O texto mais claro, mais decisivo, é sem dúvida este:

“A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.

As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras.” “

E isso tudo Comte-Sponville escreveu somente para tentar compreender um pouco melhor o amor como ágape (caritas), o amor de Deus, uma das três grandes classificações antigas do amor.

Como minha linha de raciocínio contemplava a ideia de um Deus fraco e absolutamente bom, pretendo encerrar esse texto com ela. Se ele é absolutamente bom, porém fraco, também morre?

Referência:

Comte-Sponville, A. (1995). Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes.

5 comments:

MARLANA's studio de ilustrações said...

O texto é extremamente relevante, no sentido de compreender a formação e estruturação filosófica e psíquica dos povos ocidentais depois da era Cristã. A existência de um Deus onipotente, punitivo e opressor é uma crença compartilhada por todos nós, ocidentais. Até mesmo, quando tentamos negá-la, partimos deste princípio incial, que é a nossa etimologia, é onde estamos mergulhados.

Muitas vezes me pego pensando em questões religiozas e pensando em Deus... O que ele significa na "realidade". Acabo na seguinte conclusão:

Acredito que Deus e Religião é igual "O segredo de tostines: Vende mais por que é fresquinho, ou é fresquinho por que vende mais?"

Será que Deus surgiu primeiro e criou os homens????
Ou será que os homens criaram Deus????

Eu fico com a segunda opção. Acredito que nós seres humanos precisamos, desde que tínhamos consciência e desenvolvimento cognitivo bastante rudimentares,
dar sentido para a vida...
Dar um significado para o vazio existencial...
E desde os homens das cavernas já havia alguma forma simbólica ou mágica de adoração, ou ainda crença em algo "extra-humano" que pudesse realizar o que eles acreditavam não conseguirem sozinhos.
Portanto acredito que esse Deus que vc descreve em seu texto, foi(e ainda é ) de alguma forma, necessário para algumas pessoas, acreditos que estas mesmas o mantém vivo. Pois ele foi criado e aceito a partir da demanda desse grupo, portanto atende às suas expectativas.
Também imagino que existam pessoas com demandas diferentes que resolvem acreditar em outros tipos de Deuses, com infinitas outras qualidades, dada a grande variedade de tipos humanos.
Percebo também que hoje com a globalização, o acesso a diferentes tipos de filosofias, culturas e RELIGIÕES está bem mais fácil, o que permite essa "liberdade" de escolha.
Estou certa no entanto, que a crença em algo "MAIOR", traz uma paz, um chão, que só mesmo o simbólico pode trazer. A vivência do sagrado acredito ser de extrema importancia , é uma forma de se "RELIGAR" com o próprio self, seu "Deus" individual.

Jung ao ser perguntado se acreditava em Deus ele respondeu:

"Eu não acredito...
Eu SEI!"

Marlana Silveira e Silva

MARLANA's studio de ilustrações said...

O texto é extremamente relevante, no sentido de compreender a formação e estruturação filosófica e psíquica dos povos ocidentais depois da era Cristã. A existência de um Deus onipotente, punitivo e opressor é uma crença compartilhada por todos nós, ocidentais. Até mesmo, quando tentamos negá-la, partimos deste princípio incial, que é a nossa etimologia, é onde estamos mergulhados.

Muitas vezes me pego pensando em questões religiozas e pensando em Deus... O que ele significa na "realidade". Acabo na seguinte conclusão:

Acredito que Deus e Religião é igual "O segredo de tostines: Vende mais por que é fresquinho, ou é fresquinho por que vende mais?"

Será que Deus surgiu primeiro e criou os homens????
Ou será que os homens criaram Deus????

Eu fico com a segunda opção. Acredito que nós seres humanos precisamos, desde que tínhamos consciência e desenvolvimento cognitivo bastante rudimentares,
dar sentido para a vida...
Dar um significado para o vazio existencial...
E desde os homens das cavernas já havia alguma forma simbólica ou mágica de adoração, ou ainda crença em algo "extra-humano" que pudesse realizar o que eles acreditavam não conseguirem sozinhos.
Portanto acredito que esse Deus que vc descreve em seu texto, foi(e ainda é ) de alguma forma, necessário para algumas pessoas, acreditos que estas mesmas o mantém vivo. Pois ele foi criado e aceito a partir da demanda desse grupo, portanto atende às suas expectativas.
Também imagino que existam pessoas com demandas diferentes que resolvem acreditar em outros tipos de Deuses, com infinitas outras qualidades, dada a grande variedade de tipos humanos.
Percebo também que hoje com a globalização, o acesso a diferentes tipos de filosofias, culturas e RELIGIÕES está bem mais fácil, o que permite essa "liberdade" de escolha.
Estou certa no entanto, que a crença em algo "MAIOR", traz uma paz, um chão, que só mesmo o simbólico pode trazer. A vivência do sagrado acredito ser de extrema importancia , é uma forma de se "RELIGAR" com o próprio self, seu "Deus" individual.

Jung ao ser perguntado se acreditava em Deus ele respondeu:

"Eu não acredito...
Eu SEI!"

Marlana Silveira e Silva

marco aurélio said...

O bem e o mal são dualidades, portanto ilusão. Não existe uma cara sem a coroa, uma noite sem o dia, um alto sem o baixo ou uma frente sem costas.
A percepção limitada do ser humano faz parecer que não estamos tratando de moedas, dias, alturas ou objetos.
Tecer teorias a partir de ilusões só podem nos levar a mais ilusões.
O bem e o mal são duas faces da mesma moeda, do mesmo dia, altura ou objeto!
Ter esta percepção nos liberta.
Um abraço;
marco aurélio
http://gruponossacasa.wordpress.com

Anonymous said...

Dri, acho que ainda acredito mais no Deus do Dostoievsky do que do Kafka... bj
Prima Dani

Marcos Siqueira said...

As análises das características de Deus sempre serão insuficientes, pois se levarmos em consideração a sua existência, temos que aceitar a falta de parâmetros de estudo.

Dentro da própria natureza temos pálidos exemplos de análises insuficientes: o ser-humano com seu raciocínio superior, é capaz de estudar e conhecer as outras espécies de animais, mas falta aos animais parâmetros para entender e avaliar a raça humana. E estamos considerando seres bem similares. Mesmo assim faltam parâmetros para a maioria dos mamíferos avaliar a raça-humana, suas motivações e a complexidade de suas relações.

O que dizer então quando usamos o nosso raciocínio, tomando parâmetros humanos para falar sobre onipresença, onipotência, eternidade, bondade, força e fraqueza? Toda a análise será limitada, pois estamos qualificando algo que nunca vimos. Não temos idéia de sua forma, característica, personalidade e natureza, além do reflexo desse dito Deus naqueles que dizem que O conhecem ou escreveram sobre Ele.

Avaliamos "cientificamente" pelas qualidades humanas que admiramos e desejamos que Deus as tenha, e pelos relatos daqueles que afirmam O terem visto de alguma forma. Mas em se tratando de Deus, repito, levando em consideração sua existência, essa avaliação é insuficiente, pois revela apenas nossos melhores anseios, como raça humana.

Se de fato Ele existe, não conseguiremos quantificá-lo, qualificá-lo, julgar suas intenções e seu erros, se de fato existem. O máximo que teremos é o conhecimento daquilo que Ele desejou revelar a nós, nada mais.