CRÍTICA DO SENSO COMUM E PROSA - Quem quiser adquirir o livro, acesse o link do canto superior direito
Thursday, July 15, 2010
Projeto de lei que proíbe a palmada. Parte 2: O que a Psicologia tem a dizer sobre isso?
Monday, July 05, 2010
Deus e a questão do mal
A questão do mal é uma questão clássica em metafísica e filosofia cristã. Uma definição plausível para o mal é concebê-lo como toda e qualquer forma de sofrimento. Se algum ser sofre, eis o mal. Alguns objetarão: não, o mal diz respeito somente aos sofrimentos injustos ou injustificados. Pois “há males que vêm para o bem”, e estes seriam os justificados, os sofrimentos que possuem alguma utilidade. Exemplo: você vai ao dentista, sofre um pouco, mas previne males muito maiores. Mas a grande questão é que há males, sofrimentos, cuja utilidade não compreendemos, e cuja injustiça também é alarmante. E eis aí a questão: se Deus pode tudo e é absolutamente bom, por que permite injustiças incompreensíveis, irracionais e que causam tanto mal? Males inúteis, por que os permite?
Em termos lógicos, há uma resposta básica: não dá pra Deus ser ao mesmo as duas coisas. Ou pode tudo e não é absolutamente bom, ou é absolutamente bom e fraco. Como já vimos no texto anterior, a onipotência é racionalmente impossível, não tem cabimento. Mas, por ora, suponhamos que seja. Se assim o fosse, teríamos de lidar com uma possibilidade absurdamente assustadora: a de um Deus onipotente, absolutamente poderoso e que também possui maldade. Ou seja, pode castigar-nos quando bem quiser, e sem muita justificativa. Essa possibilidade gera muito medo. Imaginem só: um Deus tirânico, caprichoso. Um Deus que também é mau. Um cara absolutamente poderoso e que pode arruinar com sua vida e torná-la um pesadelo sem fim. Deus do céu, esse seria um Deus dos infernos para seus desafetos. Sim, pois se não é absolutamente bom, Ele também teria desafetos.
Esse Deus onipotente, e que não é absolutamente bom, submete a todos, por medo. A crença nele é forçada pelo medo de ser aniquilado. O ato de entrega e fé, é um ato de render-se a algo maior que você e que pode lhe destruir. Lembro do personagem de Tv, o médico Gregory House, assim dizendo aos crentes: “Vocês acreditam em Deus porque temem que Ele os esmague como formiguinhas”. É a fé motivada pelo medo. Pelo medo de desobedecer ao todo poderoso e ser castigado.
Porém, se continuarmos pela linha de raciocínio do texto anterior, a onipotência não tem cabimento. Então, esse ser todo poderoso não existe e nada precisamos temer de infalível e eterno. Assim nossa miséria fica menor, penso eu. Melhor saber que Deus, mesmo que existisse, não poderia tudo. Melhor, muito melhor. Quem pode tudo não dá alternativas a quem não pode nada, a não ser calar a boca, obedecer e fim de papo. Me sinto muito melhor com essa ideia de que ele não pode tudo. Isso me dá muito mais liberdade para continuar pensando e seguindo a trilha da lógica, da sensatez. Permite a liberdade e a responsabilidade, esses dois fundamentos tão importantes da maturidade. Se ele não pode tudo, temos liberdade. Do contrário, estamos eternamente amordaçados.
Como a onipotência é uma impossibilidade, somente nos resta a alternativa mais suave e sensata: ele não pode tudo e é absolutamente bom. É fraco, como nós, porém absolutamente bom.
Mas Deus como fraco e absolutamente bom, ainda nos deixa algumas questões. Como uma entidade absolutamente boa pode ter criado o homem, com todas suas imperfeições e injustiças? Comte-Sponville, no “Pequeno tratado das grandes virtudes”, levanta algumas questões interessantes, em belíssimas e instrutivas passagens (1995, p. 292 – 294):
“Por que Deus iria criar o que quer que seja, se ele mesmo é todo o ser e o todo o bem possíveis? Como acrescentar ser ao Ser infinito? Bem ao Bem absoluto? Criar só tem sentido, nessa lógica da potência, desde que para melhorar, pelo menos um pouco, a situação inicial. Mas é o que Deus, mesmo onipotente, não poderia fazer, pois a situação inicial, sendo o próprio Deus, é absolutamente infinita e perfeita! Alguns imaginam Deus, antes da criação, como insatisfeito consigo, como um aluno exigente que escrevesse, à margem de seu próprio dever ou de sua própria divindade: “Pode fazer melhor”… Mas não: Deus não pode fazer melhor do que ele é, nem mesmo igualmente bem (pois teria então de criar a si mesmo, portanto não criar absolutamente nada: é esse, talvez, o sentido da Trindade). Deus, se quiser criar outra coisa que não ele, isto é, criar, só poderá fazer menos bem que si mesmo. Melhor dizendo, ou pior: Deus, já sendo todo o bem possível e não podendo, por conseguinte, aumentá-lo, só pode criar o mal! Daí este nosso mundo. Mas então: por que cargas d’água tê-lo criado?
Esse problema é tradicional. Mas talvez ninguém o tenha percebido melhor, nem resolvido melhor, se é que se possa fazê-lo, do que Simone Weil. O que é este mundo, pergunta ela, senão a ausência de Deus, sua retirada, sua distância (a que chamamos espaço), sua espera (a que chamamos tempo), sua marca (a que chamamos beleza)? Deus só pôde criar o mundo retirando-se dele (senão só haveria Deus); ou, se nele se mantém (de outro modo não haveria absolutamente nada, nem mesmo o mundo), é sob a forma da ausência, do segredo, da retirada, como a pegada deixada na areia, na maré baixa, por um passeante desaparecido, única a atestar, mas por um vazio, sua existência e seu desaparecimento… Temos aí uma espécie de panteísmo em negativo, que é a recusa de qualquer panteísmo verdadeiro ou pleno, de qualquer idolatria do mundo ou do real. “Esse mundo enquanto totalmente vazio de Deus é Deus mesmo”, e é por isso que “Deus está ausente, sempre ausente, como indica de resto a famosa prece: “Pai nosso que estás no céu…” Simone Weil leva a expressão a sério, e tira dela todas as conseqüências: “É o Pai que está no céu. Não em outra parte. Se acreditamos ter um Pai aqui na terra, não é ele, é um falso Deus.” Espiritualidade do deserto, que não encontra ou não prega mais que “a formidável ausência, por toda parte presente”, como dizia Alain, a que responde, em sua aluna, esta fórmula surpreendente: “É preciso estar num deserto. Pois aquele que é preciso amar está ausente.” Mas por que essa ausência? Por que essa criação-desaparecimento? Por que esse “bem feito em pedaços e espalhado através do mal”, estando entendido que bem possível já existia (em Deus) e que o mal só existe por essa dispersão do bem, pela ausência de Deus – pelo mundo? “Só se pode aceitar a existência da infelicidade considerando-a como uma distância”, escreve ainda Simone Weil. Que seja. Mas por que essa distância? E, já que essa distância é o próprio mundo, enquanto ele não é Deus (e ele só pode ser o mundo, evidentemente, desde que não seja Deus), por que o mundo? Por que a criação?
Simone Weil responde: “Deus criou por amor, para o amor. Deus não criou outra coisa que não o próprio amor e os meios do amor.” Mas esse amor não é um mais de ser, de alegria ou de potência. É exatamente o contrário: é uma diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. O texto mais claro, mais decisivo, é sem dúvida este:
“A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. Esta resposta, este eco que depende de nós recusar é a única justificativa possível à loucura de amor do ato criador.
As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras.” “
E isso tudo Comte-Sponville escreveu somente para tentar compreender um pouco melhor o amor como ágape (caritas), o amor de Deus, uma das três grandes classificações antigas do amor.
Como minha linha de raciocínio contemplava a ideia de um Deus fraco e absolutamente bom, pretendo encerrar esse texto com ela. Se ele é absolutamente bom, porém fraco, também morre?
Referência:
Comte-Sponville, A. (1995).
Sunday, July 04, 2010
Onipotência divina
O que não é a felicidade
Segundo Comte-Sponville, “a felicidade não é nem a saciedade (a satisfação de todas as nossas propensões), nem a bem-aventurança (uma alegria permanente), nem a beatitude (uma alegria eterna).” Comte-Sponville.
Ou seja, neste sentido, todas estas três concepções acerca do que seja a felicidade são equivocadas. A primeira e a segunda concepção são as mais comuns. São talvez também (vejam a ironia) as que produzem mais infelicidade. Produzem infelicidade, primeiramente, pelo simples fato de serem equivocadas. Assim, geram falsas expectativas, o que, por sua vez, é mais do que suficiente para a ocorrência de alguns desastres e surpresas desagradáveis. Quem não se prepara com perspectivas realistas está sujeito a surpresas desagradáveis.
As concepções de felicidade como a satisfação de todos os nossos desejos ou uma condição de alegria permanente são pouco refletidas, sensatas ou até mesmo infantis. Há o pensamento mágico implícito aí, de que diversas situações complexas podem ser resolvidas com atos simples e instantâneos, os quais dispensam qualquer explicação, esforço ou processo. Em termos psicanalíticos seria a fantasia de retorno ao estado original do recém-nascido que se satisfaz e se ilude acerca de sua própria condição de ser. Tendo suas necessidades satisfeitas, é tomado por sentimentos de onipotência, plenitude e invulnerabilidade (o narcisismo primário). Onde nem mesmo o mundo externo (incluído aí o outro) se configura como perceptível (como outro) e capaz de aniquilá-lo.
Seguindo as pistas dadas por Freud em “O mal-estar na civilização” (1930), podemos dizer que a busca por esse tipo de felicidade é um modo de se apartar da realidade. Acreditando nesta possibilidade absurda, o sujeito nega a realidade que o circunda, e passa a se devotar a uma fantasia infeliz. Trata-se de uma fantasia que abre mão da consciência e instala o sujeito em um terreno sem qualquer sustentação. Sim, constrói castelos no ar. São concepções bastante otimistas acerca do que seja a felicidade. Otimistas e míopes. Otimistas e bem pouco esclarecidas. Aliás, como todo otimismo extremo e equivocado.