Eram mais ou menos duas horas da manhã . Marina (minha namorada à época ) e eu estávamos na sala , quando ouvimos alguns gritos e gemidos vindos do lado de lá da pista , de uma escuridão sem nome , de locais ermos , sobre os quais sempre deveríamos ter cuidado redobrado se de lá viéssemos. Eram gemidos sofridos, agonizantes e desesperadores.
“Você ouviu isso , Marina ?”
“Sim . Depressa , vamos abrir a janela para ver o que é!”
“Nossa , parecia alguém morrendo, sendo atacado .”
Ouvimos passos na brita , por detrás do prédio . Não sabíamos ao certo do que se tratava. Alguém andava a passos largos e gemia como um bicho , em direção ao prédio . Estávamos no terceiro andar e podíamos perceber que o bicho subia as escadas e estava cada vez mais próximo . De nosso apartamento , no fim do corredor , podíamos ver o início das escadas e o pátio aberto para o qual elas davam acesso . A coisa então irrompeu em nosso andar . Saiu das escadas e adentrou o pátio , de braços abertos , imitando um avião , o qual decolaria dali, do terceiro andar . Não adentrou o corredor dos apartamentos . Passou reto , continuando no pátio , era sua plataforma de decolagem. Deu a volta e finalmente estav em nosso corredor . Vinha em nossa direção , gemendo. Um avião que gemia com um bicho .
“Marina , prepare-se. É o Reginaldo. E parece que tá muito doido . Faça sinal de paz pra extraterrestre , é só isso o que nos resta .”
Ficamos lá , imóveis , com um sorriso suave no rosto , tentando nos comunicar , e transmitir aquele gesto de paz para Reginaldo. Ele não tinha palavras , somente uivos . Bem diante de nós , contorcia o rosto , o corpo e uivava alto . Estava tomado por algum outro ser . Eu poucas vezes na vida havia visto alguém com as feições e expressões corporais tão distorcidas. Era um bicho grande , gordo , babando, suado e exalando álcool e bicha-louquisse por todos os poros do corpo .
Há poucos dias nós dois havíamos nos desentendido de forma muito desagradável e agressiva . Reginaldo era de convivência absurdamente difícil e sempre que podia tentava impor seus padrões e neuroses aos outros . O clima entre nós estava péssimo . Não havia notícia naquela moradia de alguém que houvesse conseguido se relacionar bem com Reginaldo. Eu não estava entendendo nada . Sentia-me como em um presídio . Com Reginaldo os espaços ficavam muito reduzidos, pois ele ocupava todos os possíveis . Conviver com ele era muito opressivo . Para se ter uma idéia , tive várias vezes o ímpeto inconcluso de quebrar-lhe uma cadeira na cabeça e mandá-lo para o pronto-socorro . Era meio psicopata e despertava em nós impulsos violentos de auto-proteção. Nunca esse tipo de ato havia passado pela minha cabeça . Mas com Reginaldo isto era normal .
Edinho, nosso famoso Edinho Miranda Di Caprio, o goiano baixinho e barrigudo que era uma comédia absurda de ingenuidade, disse que havia dormido várias vezes com uma faca debaixo do colchão , na época em que dividia quarto com Reginaldo, e ninguém entendia. Agora que eu também dividia quarto com a louca , sabia do que ele estava falando.
“Eu queria que vocês soubessem de uma coisa . Eu gosto muito de vocês dois . Nós nos desentendemos ontem , Adriano. Não importa o que tenha acontecido. Quero que fique claro que gosto e respeito muito você e Marina .”
Foi para o banheiro . Bateu mais cabeça por alguns minutos e voltou, completamente nu . Carregava a calça nas mãos . Antes de adentrar o quarto , fez um aceno de cabeça , em uma espécie de boa noite .
Naquela noite não tive dúvidas . Dormi com uma faca debaixo de meu colchão .
5 comments:
Eh, pois eh, conheci Reginaldo, temi muito pela sua seguranca naquele tempos. Seu santo eh forte, meu caro!
Me parece que vc cunhou o primeiro conto de terror do inquilinos. Assustador...
Agora, por favor, coloque a faca de volta na gaveta, vai!
meu caro....
entendo perfeitamente o que vc sentiu.
tbem vivi momentos de terror com colegas de quarto.
ainda estou traumatizada, nça oconsegui escrever nada a respeito
rs.
se é q algum dia vou conseguir.
ainda bem q vc conseguiu se livrar deste ser...
bj
Caro Adriano,
Me parece que o cara sofria bastante. Não creio que alguém vá se deixar apedrejar socialmente à toa. Ele nunca foi encaminhado para tratamento ?
Grande abraço,
Yoda
Na verdade não, infelizmente, pois eu adoraria conhecer alguém que escreve tão bem assim.
Vi o link do seu blog no blog da Lidiane, o BARAKA.
Muito prazer!
A propósito, este aqui também é incrivelmente bom!
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